Forrest Gump à brasileira

Jornalistas, desde os tempos em que o celebrado escritor Rudyard Kipling inventou as cinco perguntas básicas do lead para conseguir extirpar as longas introduções nos textos e garantir mais objetividade nas reportagens que seu jornal na Índia (editado em inglês, for sure) publicava, sempre tiveram o tempo, a urgência dos fechamentos, como senhor supremo de seu trabalho. Mas quando um jornalista, considerado um dos melhores textos da imprensa brasileira, fica mais livre dessa pressão de prazos (em termos, claro), e coloca sua criatividade na elaboração de um romance histórico contando as venturas e desventuras de um brasileiro de Blumenau, filho de alemães, a bordo de submarinos alemães durante a Segunda Guerra, o leitor pode esperar uma boa leitura e muitos momentos de satisfação. É exatamente isso que Roberto Muylaert, hoje um verdadeiro multimídia, consegue, de forma magistral, com Alarm!, seu romance histórico.

Calçado em ampla pesquisa histórica, Muylaert coloca o “Catarina” Werner Hoodhart como personagem singular, capaz de reter a atenção do leitor, enquanto desfia suas memórias sobre os tempos da guerra. As lembranças de Werner, “contadas” a Rodrigo, um escritor paulista décadas depois, envolvem desde ataques bem-sucedidos a dezenas de navios americanos em frente a Nova York, até o desembarque, totalmente insólito, na Praia Grande, no litoral paulista, em pleno 1943, com a tripulação, guiada pelo nosso herói, chegando de madrugada ao Hotel dos Alemães, que por incrível que pareça realmente existia (confira na foto da quarta capa), com o prosaico objetivo de tomar umas cachaças.

Como uma espécie de Forrest Gump teuto-brasileiro, o jovem marinheiro Werner descreve, além das peripécias da guerra, as principais partidas da Copa de 1938, na França, que viu ao vivo acompanhado do pai Günter, mostrando seu entusiasmo pelas proezas de Leônidas da Silva. E conta ainda todo o treinamento para ser um submarinista, destacando as condições claustrofóbicas e insalubres dos U-Boot de então durante missões no alto-mar (bem diferentes dos modernos submarinos de hoje) na caça dos navios que levavam mercadorias de todo tipo para a Inglaterra até, finalmente, a “missão” nas costas brasileiras, na deserta Praia Grande no litoral paulista, onde Werner decide, em uma crise de consciência, abandonar o barco, ao saber que por ordem do almirante Doenitiz os submarinos alemães passariam também a afundar navios brasileiros. Do litoral, as aventuras do rapaz prosseguem em São Paulo, onde encontra importantes simpatizantes dos alemães e é apresentado a um garoto que gosta de ouvir suas histórias sobre a guerra. Esse garoto, em uma sacada genial de Muylaert, se transforma décadas depois no escritor Rodrigo Sessentão, espécie de alterego do nosso jornalista. Nesse périplo paulistano, em uma cidade onde se andava a pé pelos Jardins, o suboficial de submarinos conhece os carros movidos a gasogênio, fica espantado ao testemunhar o blecaute em uma cidade longe do litoral e já adaptado chega até a descer a Serra do Mar para ver a partida entre Santos e São Paulo, segundo jogo de Leônidas após ter sido comprado do Flamengo pelo São Paulo, então clube do Canindé, por 200 contos de réis, uma fortuna para a época.

Nosso Werner Gump, em um vaivém das memórias, fala da Paris ocupada pelos nazistas, de uma visita feita por Hitler à cidade conquistada, dos campos de concentração, que veio a conhecer já velho – uma maneira de expiar as culpas de um povo -, da bela espiã alemã Berta Muller, que trabalhava dentro do Palácio do Catete, e era a paixão de Lutero Vargas, filho de Getúlio, e até de seu retorno de lancha à Ilha Grande, onde acaba testemunhando o afundamento do U-199, o último dos submarinos que tripulou, o do desembarque da cachaça. Aliás, o desembarque na Praia Grande não rendeu ao nosso Forrest Gump apenas um porre, um belo almoço e uma deserção. Muylaert nos faz saber que Werner, ainda durante a guerra, regressa para Blumenau acompanhado da moça por quem teve uma paixão fulminante.

Na verdade, um dos maiores méritos de Muylaert é conseguir, durante todo o tempo, manter a atenção do leitor com as peripécias vividas pelo herói improvável, mesclando fatos e experiências verídicas com a ficção, sempre com um texto impecável. Mas talvez o momento mais criativo do autor seja o capítulo no qual Werner deixa suas memórias fluírem. O capítulo causaria inveja a Thomas Mann e James Joyce, especialistas em parágrafos gigantescos que desafiam o leitor. Muylaert ousa e nos oferece 20 páginas com apenas um único parágrafo angustiante e desafiador. E fica uma sugestão: a leitura deve ser feita sem pausas, como se o fluxo de pensamento do então respeitável senhor de 79 fosse o do leitor. Vale a pena tentar.

Nosso submarino nuclear

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