Um dos subprodutos mais marcantes do exílio, seja ele voluntário ou imposto, é a aguçada capacidade perceptiva que todo exilado desenvolve para detectar, durante suas andanças por novos mundos e culturas, uma variedade de sinais, não importa quão minúsculos ou pueris, que permite a ele recordar tudo aquilo que foi deixado para trás. Notoriamente, à medida que os anos de desterro se acumulam, tal capacidade se aprimora, se depura, a ponto de um mero desvio de olhar, emitido inconscientemente para uma rua ou praça até então desconhecida, ser capaz de identificar diminutos sinais, misturas de cores, cheiros e ruídos que imediatamente libertam ondas de memórias de um passado que sobrevive na mente a duras penas, visto que para tanto precisa fazer frente ao algoz e inclemente passar do tempo.
Acredite-me, eu falo por experiência própria. Depois de quase 25 anos percorrendo o mundo como camelô da ciência, o apuro desse sexto sentido de exilado me proporcionou momentos inesquecíveis, emocionantes, que demonstraram, sem sobra de dúvida, que a nossa diáspora tropical semeou fragmentos quase aleatórios, por vezes desconexos, mas quase sempre enebriantes, não de um, mas de inúmeros “Brasis”, que hoje florescem, milhares de quilômetros distantes das raízes tupiniquins que lhe deram energia e vitalidade para sobreviver.
Talvez, mais do que alimentar mares de nostalgia e saudade aos olhos exilados, que a percorrem há muitos anos, essa colcha de retalhos verde-amarela, que hoje se desenrola por todo o mundo, sedimenta a sensação de que o mosaico genético, linguístico e cultural que nós chamamos, por falta de termo melhor, de brasilidade, deixou de ser propriedade exclusiva dos brasileiros natos e residentes de pindorama para se transformar em um bem mundial, em um dos símbolos incipientes de uma globalização do bem, que é consumido de bom grado, pelos quatro cantos do planeta.
Evidentemente, existem muitas formas de descrever a história do espalhamento dessa onda verde-amarela pelo globo. Depois de quase duas décadas colecionando pequenos episódios que ilustram esse fenômeno, a melhor forma que eu encontrei para contar tal saga foi simplesmente encadear algumas das mais fascinantes experiências passadas nesse quarto de século coletando fragmentos do Brasil a dez mil quilômetros de casa.
Como era de se esperar, essa minha coleção inaugurou-se de forma inesperada, durante a minha primeira viagem à Europa. Munido de parcos recursos e muita curiosidade, eu cheguei à Roma para apresentar um dos meus primeiros trabalhos em um encontro científico. Depois do sufoco da apresentação, fui conhecer Roma a pé. Partindo do meu albergue, localizado ao lado da grande estação de trem, a Stazione Termini di Roma, eu vasculhei toda a cidade, até chegar, no final de uma linda tarde de verão, a uma aconchegante praça, a Piazza Navona.
Ao entrar na Piazza Navona por uma das suas estreitas ruas laterais, eu imediatamente a avistei. Tal qual uma linda mulher que sequestra o nosso olhar sem piedade, meio escondida no meio das fontes, obeliscos e barracas de artistas, uma sedutora bandeira brasileira, tremulando solitária e silenciosa na fachada imponente do Palazzo Pamphilj, capturou primeiro minha atenção, para logo a seguir, sem misericórdia alguma, aprisionar meu coração. Petrificado ao lado de uma das fontes dessa praça italiana, eu senti pela primeira vez a força do que é sofrer de uma saudade profunda, uma sensação que eu voltaria a experimentar dezenas de outras vezes em muitas outras terras desconhecidas, nos anos que se seguiram. Naquele instante, porém, eu confrontava pela primeira vez a sensação assustadora de estar longe, de ter deixado para trás tudo e todos que definiam a minha existência. Enfeitiçado pelos delicados movimentos da bandeira do Brasil, conduzida pela brisa romana, eu só pude imaginar a dor que seria não poder um dia retornar para casa. Ali, na frente do Palazzo Pamphilj, aprendi como um simples pedaço de pano colorido, bailando no ar, pode fazer desabrochar em cada um de nós um universo de sensações e memórias acumuladas por toda uma vida, e nos fazer lembrar vividamente de onde somos, de onde viemos e para onde sempre desejaremos retornar, não importa quão longa e árdua seja a viagem de volta a nossa Ithaca.
*Paulistano e palmeirense de nascença, é professor titular de Neurobiologia, codiretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA), e idealizador e diretor do Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra em Natal (RN). Faz parte do Conselho Editorial da Brasileiros.
Deixe um comentário