Fragmentos do guru tropicalista

Um cronópio, como definiu o escritor argentino Julio Cortázar, é um indivíduo que vive fora do eixo do esperado. Desse desencaixe imanente resulta uma faísca que o mundo traduz em poesia. A obra variante, não linear, de José Agrippino de Paula é revista na caixa Exu 7 Encruzilhadas – José Agrippino de Paula, do selo SESC, que traz registros em áudio e dois curtas inéditos. O lançamento reitera a importância desse cronópio brasileiro, que morreu em consequência de um infarto, em 2007, às vésperas de completar 70 anos.

Excêntrico e visionário, Agrippino usufruiu organicamente de diversas disciplinas criativas e foi um artista multimídia na acepção mais ampla do termo. Autor de PanAmérica, romance divisor para a literatura brasileira, que completa 45 anos de sua primeira publicação, influenciou ícones da Tropicália, como Gilberto Gil e Caetano Veloso, que depõe na caixa. Amigos, estudiosos e admiradores, como Carlos Reichenbach, Jô Soares, Jorge Bodanzky, Jorge Mautner, Tom Zé e Stênio Garcia, também prestam homenagens a esse guru da contracultura brasileira no libreto que integra a coletânea.

Reunindo produções obscuras, Exu 7 Encruzilhadas traz um CD com dez faixas de áudio, criadas a partir de colagens em fita magnética por Agrippino e amigos. Pulsações, uivos, ragas indianos e batuques mântricos são sobrepostos e sequenciados. Tudo na mais baixa fidelidade e mais alta ambição: “Não ouça música, bicho, faça o seu barulho!”. É a recomendação deixada por Agrippino na embalagem da fita que semeou a ideia. Doada pelo cineasta Hermano Penna, diretor do premiado longa Sargento Getúlio e digitalizada pela videoartista Lucila Meirelles, a produção musical de Agrippino é seguida da reação do amigo Caetano Veloso, na última faixa do CD.

Nos anos 1970, Lucila frequentou o ateliê de José Roberto Aguilar, amigo íntimo de Agrippino, que desenhou a capa da reedição de 2001 de PanAmérica (Editora Papagaio) e atuou em muitos de seus vídeos. Na década seguinte, teve custódia sobre a obra audiovisual do escritor, fato consolidado em 1988, quando organizou a instalação Sinfonia Panamérica, simultaneamente na Galeria Fotóptica e no Museu da Imagem e Som de São Paulo. Lucila acumulou horas de conversas gravadas na casa de Agrippino, em Embu, São Paulo, onde ele viveu isolado por anos, diagnosticado esquizofrênico. Desses encontros, ela montou a entrevista Lero Lero Agrippínico, apresentada na caixa, com Áfricas Utópicas, que relata encontros do artista com a psicanalista Miriam Chnaiderman, em 2005 e 2006.

Os dois registros revelam um homem de palavras calculadas, dócil e bem articulado que, apesar da esquizofrenia, tem plena consciência de sua importância. Sua fala tem uma métrica hipnótica que lembra a narrativa do “eu”, protagonista de PanAmérica.

Outras boas surpresas são os dois curtas-metragens. Rodados em super 8, na África, em 1972, retratam ritos de Candomblé no Togo e Dahomey, e o relato fascinante da viagem que Agrippino fez com sua então companheira, a bailarina Maria Esther Stockler. Fragmentos de um legado singular, impactante e ousado.


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