À frente do seu tempo

O ex-ministro da Fazenda no governo do general João Baptista Figueiredo, Karlos Rischbieter, acaba de lançar o livro Fragmentos de Memória, da Travessa dos Editores, no qual conta sua trajetória pessoal e, principalmente, profissional. Esse neto de alemães, nascido em Blumenau (SC), graduado pela extinta Escola de Engenharia da Universidade do Paraná, hoje Universidade Federal, ocupou importantes cargos na vida pública brasileira, e são os fatos que ajudam a montar parte do quebra-cabeça político deste País que estão detalhadamente contados nas páginas de sua obra. Ao receber a reportagem de Brasileiros, em Curitiba, Rischbieter convalescia de uma cirurgia realizada oito dias antes e, apesar de abatido, mantinha um semblante tranqüilo. Numa ampla sala de sua residência, na companhia da filha Monica, assistia tranqüilamente a uma partida de tênis pela televisão.

Aos 80 anos, Rischbieter mantém-se fiel aos seus princípios. Segundo o filho Luca, ele continua ligado no mundo. “Gosta de falar de tudo, cultura, televisão, China, Barack Obama, e uma de suas leituras prediletas são as crônicas de Luis Fernando Verissimo”, diz. Mesmo assim, o ex-político confessa que anda um pouco pessimista. “Quando leio nos jornais anúncios da venda de apartamentos onde o banheiro do casal é o dobro do das dependências da empregada, penso que um país com tamanha injustiça social não pode dar certo. Aí me invade um certo pessimismo”, diz. Mas nem sempre foi assim. Após uma carreira bem-sucedida no Paraná, onde foi presidente do Banco de Desenvolvimento do Estado, foi convidado a assumir, no governo do general Ernesto Geisel, a presidência da Caixa Econômica Federal. Em 1977, assumiu a presidência do Banco do Brasil.
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Apesar do reconhecimento como presidente de ambas as instituições, o panorama político, econômico e social do país muito pouco mudara desde sua chegada a Brasília. O otimismo que trouxera na bagagem começava a dar lugar ao ceticismo. A abertura política “lenta e gradual” inaugurada pelo general Geisel era, para ele, demasiadamente “lenta e gradual” em todos os aspectos. Defendia um modelo econômico que privilegiasse o desenvolvimento nacional com uma distribuição de riqueza mais justa. Insistia que a gênese desse processo fosse um gesto de vontade política, em que não apenas governo e empresários se sentassem à mesa para decidir, mas achava fundamental convocar as lideranças sindicais emergentes. “Nessa época, eu já começava a pensar em deixar o governo. Não podia conviver com aquilo com que não concordava.” O jornalista Aloysio Biondi, numa matéria para a revista IstoÉ, sintetizou em uma frase o motivo de sua demissão: “O ex-ministro deixou o governo pela tentativa de ‘jogar limpo’ dentro do jogo sujo do poder”.

Democracia e liberdade de opinião
Um fato, porém, em 1978, o fez sonhar novamente. O então chefe do Serviço Nacional de Inteligência (SNI), general João Baptista Figueiredo, fora indicado pelo Alto Comando do Exército para ser o sucessor de Geisel e passou a utilizar, já na condição de futuro presidente da República, um andar na sede do Banco do Brasil. Pelas circunstâncias, Rischbieter passou a ter um relacionamento mais próximo com Figueiredo, inclusive porque diversas vezes almoçavam juntos no restaurante da instituição. “A impressão que tive dele foi muito boa. Era um homem afável e manifestava interesse pelos assuntos mais diversos. Lembro que insistia na questão da abertura política, chegando a afirmar que Geisel tinha sido muito lento neste processo”, lembra no livro. No fim desse mesmo ano, o futuro chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto Silva, convidou a “parelha” – Mário Henrique Simonsen no Planejamento e Rischbieter na Fazenda – para compor o governo sob o argumento de que “agora poderão fazer as coisas que sempre quiseram”. Em 15 de março de 1979, Karlos Rischbieter assumiu o ministério da Fazenda.

Ele lembra que, alguns dias antes da sua posse, a revista Veja publicou uma entrevista com algumas de suas posições pessoais. “Eu dizia, por exemplo, que uma regra clara em qualquer governo é a democracia e a essência da democracia é a liberdade de opinião. Falava sobre os problemas sociais, o desemprego e apregoava a necessidade de sindicatos livres no Brasil”. Para demonstrar sua confiança no projeto de “abertura sem subterfúgios”, surgiu a idéia de convidar representantes da sociedade organizada para discutir, dentro do ministério da Fazenda, temas de política “econômica ou eventualmente outras políticas” para o Brasil. Entre os nomes que foram lembrados estavam o do cardeal dom Paulo Evaristo Arns e o de um certo sindicalista do ABC paulista, Luiz Inácio da Silva, o Lula. “À época, estava muito motivado e achava que teria o apoio do presidente para essas novas idéias. Mas não foi o que aconteceu”, lembra. Afinal, o que teria contribuído para uma mudança de pensamento tão brusca em tão pouco tempo? O ex-ministro reflete e não encontra resposta. “Não sei, mas alguma coisa aconteceu, pois o Figueiredo candidato era uma coisa e o Figueiredo presidente era outra. Analisando hoje eu penso que ele não estava preparado para ser presidente.”

Em agosto, menos de cinco meses após a posse, Rischbieter deu uma entrevista ao Jornal da Tarde, de São Paulo, dizendo que o ciclo militar iniciado em 1964 deveria acabar em 1985, com a escolha do novo presidente da República. “Serão 21 anos de um só grupo no poder e isso não é bom para o País, por mais que esse grupo acerte.” Com essa postura, era cada vez mais evidente o seu distanciamento do governo. Figueiredo ainda tinha pela frente mais de quatro anos e meio de mandato e ninguém, exceto a oposição, ousara desafiar o regime. Suas posições ostensivamente contrárias ao sistema faziam eco no Planalto. “Eu costumava manifestar minhas opiniões ao ministro Golbery. Insistia que naquele momento o governo deveria abrir alguns canais de negociações com a sociedade, principalmente com os sindicatos dos trabalhadores que já se organizavam em São Paulo.” Pois foi num desses despachos de rotina que o “bruxo” – como era conhecido Golbery por sua condição de alquimista do regime militar – o surpreendeu com uma proposta, no mínimo, inusitada. “Ele me olhou com aqueles olhos ao mesmo tempo sérios e irônicos e perguntou: ‘Dr. Rischbieter, o senhor, que às vezes tem umas idéias estranhas, não se disporia a bater um papo com este tal de Lula para saber as suas opiniões?’.”

Apesar das dificuldades, Rischbieter resolveu jogar a última cartada. Junto com um grupo de assessores, preparou um documento denominado “Abertura Política e Crise Econômica – Notas do Ministro da Fazenda ao Senhor Presidente da República”. “Nele”, diz o ex-ministro, “expunha a minha concepção do que chamo de política econômica e social para aquele período. Na verdade, nada do que estava escrito era muito diferente do que discutíamos em nossos almoços no Banco do Brasil”. O texto, entre outras medidas, propunha o estabelecimento de um novo contrato entre o governo e a sociedade, principalmente com as lideranças empresariais e sindicais, em torno de objetivos comuns como a redução da inflação, a preservação de uma razoável taxa de desenvolvimento e a solução dos desequilíbrios nas balanças de comércio e serviços. Sugeria também o combate à tutela do Estado na economia, além do fim dos subsídios e incentivos não adequados. Mas reiterava que era uma condição indispensável incluir na mesa de negociações não só governo e empresários, mas as autênticas lideranças sindicais. “Eu insistia na questão dos sindicatos porque o desemprego, a corrosão dos salários e a inflação atingiam diretamente a todos os trabalhadores. Os assalariados eram os mais penalizados.”

Encontro com Lula
Em 9 de janeiro de 1980, entregou pessoalmente o documento ao general Figueiredo, ocasião em que fez um breve resumo do conteúdo. “O presidente me disse que era ‘isso mesmo’ e pediu que entregasse ao ministro Golbery, o que fiz prontamente. Viajei para Curitiba convencido de que seria o meu último final de semana como ministro.” Na segunda-feira, num despacho de rotina com Golbery, foi informado de que seu relatório fora considerado “muito pessimista” pelo governo – “ao que respondi com meu pedido de demissão”. Não havia mais condições, nem mesmo ambiente, para permanecer no governo. Apesar da decisão, a medida não havia sido oficializada. Como sempre acontece nessas situações, ainda mais em se tratando do ministro da Fazenda, Brasília foi tomada por um enorme burburinho de fofocas e Rischbieter decidiu retornar a Curitiba. Antes de deixar Brasília, ele lembrou da frase de Golbery: não se disporia a bater um papo com aquele tal Lula? Telefonou para o jornalista Mino Carta, em São Paulo, pedindo que intermediasse o encontro, afinal, havia tempos queria conhecê-lo pessoalmente. Só fez uma exigência: que fosse uma reunião reservada. Naquele mesmo dia o ministro e o operário sindicalista se encontraram pela primeira vez. Esse foi um dos últimos encontros que Rischbieter teve como ministro da Fazenda. Dias depois entregaria o cargo. “Com isso”, lembra, “eu encerrava um período de 70 meses em Brasília.”

“Nosso encontro foi engraçado”, recorda o ex-ministro, com um ar nostálgico. “Lembro do Lula com uma barba muito grande, assustado. Afinal, eu ainda era ministro da Fazenda de um governo militar. Quando chegou, parecia desconfiado. Mas foi uma conversa agradável, tranqüila, falamos longamente sobre o desemprego, a necessidade de sindicatos fortes e comentamos sobre o papel de Lech Walesa na Polônia. Senti nele desprendimento e disposição.” A empatia parece ter sido recíproca. No dia seguinte, Lula telefonou para Mino e comentou que “esse seu amigo Karlos é um cara legal, um idealista sincero”. Rischbieter conta que “Lula era detestado” no governo, principalmente pela chamada linha dura dos militares. Nessa época, Lula começava a surgir nacionalmente como uma liderança sindical na região do ABC paulista, fazendo reuniões nas portas de fábricas e campos de futebol para discutir e debater as questões da classe. “Sempre defendi a liberdade de expressão e naquele momento não havia nenhum canal de negociação. Eu defendia o diálogo com os trabalhadores, caso contrário eles seriam obrigados a agir desta forma.” Sua visão sobre o papel de Lula durante o período da abertura vai além do líder sindical. Segundo Rischbieter, ele merece uma estátua, pois poderia simplesmente ter ido para o exílio, para a clandestinidade, e com a liderança que exercia sobre milhões de trabalhadores certamente teria incendiado o país. “Ele escolheu ficar no Brasil e lutar pela democracia. Por isso, sempre o considerei uma pessoa confiável. Agiu durante todos estes anos às claras, em aberto. Provavelmente salvou o país de uma grande tragédia.” Enalteceu a postura democrática como político, lembrando que, “em 1989, perdeu para o Collor por causa da Rede Globo, mas mesmo assim aceitou a derrota. Voltou a perder duas outras vezes e novamente manteve-se submisso às urnas”.

FHC, Lula, PAC…
Depois de quase três décadas longe da administração pública – desde 1980, só trabalhou na iniciativa privada como conselheiro de diversas empresas, como a Volvo, onde atuou por 15 anos -, Rischbieter parece continuar na vanguarda do tempo. Ao contrário da quase totalidade da “elite branca”, como o ex-governador de São Paulo Cláudio Lembo definiu a nobreza verde-amarela, ele não só apóia como votou no candidato do PT para presidente. “E votaria de novo”, mas apressa-se em justificar que não o fará porque é contra o terceiro mandato. “Sou contra até a reeleição, pois todos os segundos mandatos foram ruins. Veja o Fernando Henrique, foi um belo presidente no primeiro e péssimo no segundo.” Quanto a Lula, tem a sensação que “o segundo mandato é o mesmo”. Convicto, afirma que o presidente acertou ao dar continuidade à política econômica e financeira que herdou e ao implementar um projeto social forte. Rasga elogios ao Bolsa Família, pois, segundo ele, “pela primeira vez o Brasil começou a fazer distribuição de renda. Claro que as desigualdades continuam, mas essa foi a primeira grande tentativa que deu certo”. Num tom de quase ironia, fala do preconceito contra o presidente. “Se existe? Claro que existe… e como existe. Digamos que eu tenha uma dúzia de amigos. Todos são anti-Lula. Por puro desprezo. Justificam com argumentos do tipo ‘ele não sabe falar, erra o português…’. Eu costumo responder que o Lula é o Brasil. Aliás, ele tem a cara deste país, com todos os seus defeitos e virtudes.”

Reconhece nele um líder carismático, um homem com visão estratégica, porém, lamenta não existir no governo a figura de um “primeiro-ministro”. “A começar porque o PT não é eficiente, não sabe lidar com as coisas práticas. E seus programas são muito emocionais.” Avalia que o governo poderia “ir melhor”, mas falta imaginação. “O país tem hoje uma massa de recursos que poderia ser utilizada para investimentos em infra-estrutura. Veja o PAC… até agora é só discurso, de prático não aconteceu nada!” Critica a política demasiadamente ortodoxa do Banco Central, reclama da política fiscal fraca e lamenta que não se faça nada para mudar o panorama. Diz que a política de câmbio é “uma loucura” por estar destruindo a indústria brasileira, e o crédito ao consumidor, “um exagero”. “Estamos cometendo um erro que os EUA sempre cometeram, ou seja, o de crescer pelo crédito.” Critica a postura da oposição no Congresso por se portar de forma raivosa e se prender a coisas pequenas, assim como as instituições do setor privado. “A Fiesp e os bancos estão sempre contra o governo, acham tudo ruim, mas continuam ganhando rios de dinheiro”, diz. Como parlamentarista, credita boa parte da corrupção ao sistema presidencialista, uma vez que os partidos só aceitam alianças políticas ou aprovam as medidas do governo mediante verbas ou cargos.

E o futuro? Ele responde com outra pergunta: “O que será do Brasil pós-Lula? Eu não vejo ninguém, tanto no PT como na oposição, com perfil para dar continuidade ao seu governo”. “A ministra Dilma não tem nenhum carisma…” E que nota ele daria ao governo Lula? “Sete… nota 7. Um conselho? Ah… não quero ser prepotente para ensinar nada, mas diria que tomasse cuidado, pois os anos de 2009 e 2010 não serão tão prósperos como agora.” Os amigos costumam dizer que Rischbieter é um excelente conselheiro.


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