Fukushima

Século XXI: a região assiste a um dos piores acidentes nucleares da história

Século XVII: o pai do haicai Matsuó Bashô registra sua passagem pelo local

Virando para a direita de Nihonmatsu, fomos dar uma olhada na gruta de Kurozuka. Hospedamo-nos em Fukushima.” Este é um trecho de Sendas de Oku (Oku no hosomichi), a obra mais conhecida de Matsuó Bashô (1644-1694), poeta japonês que é tido como o pai do haicai. Sendas de Oku é uma narrativa de viagem que descreve a jornada de Bashô, iniciada em 1689, de Edo (hoje Tóquio) até o norte do Japão.
Em Fukushima, o que o encantou foi a descoberta de uma pedra que o povo do lugar usava para imprimir estampas em tecidos. Essa impressão era feita de forma simples, esmagando-se folhas ou flores, com a pedra, sobre o tecido. Segundo o texto, os camponeses haviam lançado fora a pedra, porque os que a usavam cortavam a cevada das plantações para obter dela suas estampas.

Mãos que hoje plantam o arroz,
Ontem, hábeis, desenhos
imprimiam com uma pedra

Com esse poema curto e simples, Bashô registrava sua passagem por Fukushima.
Em sua forma tradicional, o haicai apresenta uma estrutura bem definida quanto a seu conteúdo: o primeiro verso como que define um contexto universal, cósmico (a que se chama kigo) para o poema, muitas vezes, aludindo a uma estação do ano; o segundo verso, em contraste, se refere a um evento fugaz, uma interferência mais ou menos sutil do acaso no imutável (ou cíclico); o terceiro verso, por fim, nos dá o resultado, por vezes inesperado, da interação entre os dois primeiros.
Um exemplo clássico dessa forma, em Bashô (em uma versão para o português de Olga Savary, a partir da tradução do japonês para o espanhol, de Octávio Paz e Eikichi Hayashiya):

Vai-se a primavera,
queixas de pássaros, lágrimas
nos olhos dos peixes

Nem sempre tal forma é seguida rigorosamente, mesmo porque, na transposição, tanto da oralidade quanto da “pictoescrita” japonesas para o Ocidente, muitas das regras originais,
bastante enraizadas no zen-budismo, adaptam-se ao novo mundo em que ingressam: alfabético, judaico-cristão, horizontal. E mesmo quando essa estrutura é seguida, não fica assim tão óbvia. Como no haicai de Buson (1716-1783):

Passa o carvoeiro.
Uma olhadela no espelho:
a serva se faz bela

Embora a passagem do carvoeiro determine uma época do ano – o inverno -, o contraste mais evidente é entre o negrume de quem carrega carvão e a palidez da serva à beira da estrada, e até do pequeno traço preto sobre a pálpebra. A beleza é o resultado do contraste. Mas há também a presença do humor. Como na anedota que contam sobre Bashô, na qual um discípulo teria recitado, em uma roda:

Libélula vermelha.
Tirem-se-lhe as asas:
uma pimenta.

Ao que Bashô teria respondido, em verso:

Uma pimenta.
Ponham-se-lhe asas:
libélula vermelha.

Bashô nos conta, em Sendas de Oku, que pouco tempo depois de passar por Fukushima, alojou-se por quatro ou cinco dias em uma cidade pouco mais ao norte, Sendai, que o mundo viu ser arrasada pelo maremoto recentemente. Cabe o contraponto do poeta: “… chegamos a Sendai. Era o dia em que adornam os telhados com folhas de lírios cárdeos“. Cobrir os telhados com lírios era uma forma de espantar demônios. Ao ir embora da cidade, ganhou de um pintor dois pares de sandálias. O haicai:

Pétalas de lírios
atarão meus pés:
correias de minhas sandálias

A primavera está chegando ao Japão. Boa hora para espantar os demônios.


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