Neymar da Silva Santos Júnior, atacante, 19 anos, tratado por todos como o próximo “bola cheia” do futebol mundial, é temido pelos adversários e cobiçado pelos magnatas russos e afins do velho continente, cujos olhos cresceram tanto que já cruzam o Atlântico para espiar os gramados da Baixada Santista, onde o jogador desfila seu talento com a mesma camisa que um dia vestiu o Rei do futebol, Pelé.
Apesar de fama, respeito e dinheiro, aliás, muito dinheiro, o promissor atleta ainda trabalha para atravessar o tortuoso caminho que separa grandes promessas de grandes craques, oferecido para muitos, mas alcançado por pouquíssimos.
Cristiane Rozeira de Souza Silva atravessou esse caminho. Ela já pode ser considerada uma lenda do futebol mundial e foi premiada duas vezes, em 2007 e 2008, com o título de terceira melhor jogadora do planeta, segundo a FIFA. Artilheira nata, fez mais gols que boa parte dos grandes atacantes do futebol masculino.
Apesar de tudo isso, Cristiane não tem carro importado, sua cara não está estampada em propagandas das grandes corporações esportivas e as crianças não copiam seu corte de cabelo. Cristiane também veste a camisa um dia usada por Pelé, a mesma também de Neymar. Ou melhor, a dela é um pouco diferente da de Neymar, já que a equipe feminina do Santos ainda tenta seduzir parceiros e hoje não estampa patrocínios no peito.
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A realidade da modalidade feminina e da masculina no Brasil é muito diferente. Sem investimento, visibilidade e apoio efetivo das federações, o futebol de saias vive um semiamadorismo eterno, tirando raras exceções.
O time da Cristiane, do Neymar e do Pelé – o Santos – é o grande incentivador da modalidade no País. Além da matadora, outras seis jogadoras do alvinegro praiano foram convocadas para a temporada de treinos da Seleção Brasileira que começou no dia 18 de abril na Granja Comary, no Rio de Janeiro. Murilo Barletta, diretor de futebol da categoria feminina do Santos, explicou o segredo do sucesso da equipe: “Aproveitamos a mesma estrutura oferecida aos homens. Temos um centro de treinamento, fisioterapeutas, fisiologistas, nutricionistas, comissão técnica, toda essa retaguarda”.
No ano passado, as Sereias da Vila, apelido dado ao esquadrão, sagraram-se vencedoras do Campeonato Paulista, dos Jogos Abertos do Interior, do Torneio Internacional Interclubes e da Copa Libertadores da América, com o reforço da Rainha Marta (veja página 65).
Infelizmente, mesmo um clube como o Santos não tem condições de segurar uma jogadora desse calibre e acaba fazendo contratos com curto prazo, de no máximo quatro meses, para que ela dispute apenas torneios de grande visibilidade. “Quando a Marta vem, já temos o pacote de patrocínio fechado. É preciso trabalhar com os pés no chão. O salário de uma jogadora de futebol no Brasil gira em torno dos R$ 300 até uns R$ 5.000. Lá fora, a Marta ganha muito mais do que isso e em dólar”, diz Rubens Quintas Ovalle Júnior, supervisor administrativo do departamento feminino, chamado carinhosamente de Rubinho pelas meninas.
O plantel do Santos conta hoje com 34 jogadoras, desde a experiente Andreia, 33 anos e goleira da seleção há 12, até a ala Babi, 15 anos, brinco no nariz e cabeça de gente grande. Mulheres trabalhadoras e conscientes das dificuldades que enfrentaram para hoje vestir uma das camisas mais importantes da história do futebol mundial. “Antigamente, o futebol feminino era muito marginalizado. Acho que a gente, aqui, está tentando mudar isso”, torce Andreia.
A zagueirona Pellê não é Rei por conta de um acento, mas já conseguiu uma coisa que seu quase xará nunca alcançou: é a atual capitã da Seleção Brasileira. A atleta de 28 anos revela que começou no futebol meio que por acaso. Cursando Educação Física na UniSantana, em São Paulo, ela jogava futebol pela equipe da faculdade em troca da bolsa de estudos. Na época, foi convocada pela primeira vez e acabou abraçando de vez o esporte. Uma das mais experientes do Santos, ela fala com propriedade sobre os problemas que impedem o crescimento do futebol feminino no Brasil. “Falta o espaço na televisão que é cedido para a Liga de Basquete e para a Liga de Vôlei, por exemplo. Sem o devido espaço na mídia, o patrocinador não tem retorno”, lamenta. Ela lembra que o Santos, no momento, banca o departamento feminino do próprio bolso.
“Fui jogar em Marília para disputar principalmente o Campeonato Paulista, aí fiquei dois anos por lá, quatro anos em Botucatu, ano passado fui para Foz do Iguaçu e agora estou em Santos. Vim para cá em fevereiro. Hoje em dia, é o Santos e outras poucas equipes que permitem à jogadora apenas jogar futebol.” Quem escuta essa trajetória logo imagina se tratar da história de um veterano, mas essa é a vida de Rafinha, 22 anos, ala das Sereias, que oferece um retrato do futebol feminino no Brasil. Ela já foi ala da seleção sub-20 e sonha com a primeira convocação para a seleção principal.
A miúda Babi, aparentemente tímida, se transforma em uma mulher de atitude na hora de colocar sua opinião: “Só porque você está no meio, acham que você é macho. Hoje, isso ainda melhorou bastante, mas sempre tem os ‘cabeça fraca’ que acham que futebol é só para homem. Muitas mulheres jogam melhor que os homens e continuam sendo femininas”.
Falando em preconceito, a craque Cristiane revelou que, para chegar onde está, teve de dar muitos chutes de bico e bater de frente com quem ria ou não acreditava em sua vocação, inclusive a própria mãe. “Eu sempre tive vontade de entrar em escolinha, e coisas assim, mas havia a proibição da minha mãe. Ela nunca gostou, nunca aceitou o fato de a filha dela jogar futebol”, diz. Após muita insistência, quando completou 12 anos, Cristiane foi matriculada em uma escola de futebol, porém, era a única menina no meio de centenas de meninos.
A RAINHA
“Se Pelé não tivesse nascido gente, teria nascido bola”, diz uma das mais célebres frases do eterno Armando Nogueira. Hoje, ela mereceria um adendo: “E se tivesse nascido mulher, teria nascido Marta”. Eleita cinco vezes a melhor jogadora do planeta, Marta Vieira da Silva defende atualmente o Western New York Flash, nos Estados Unidos.
Alagoana de Dois Riachos, a jogadora começou a carreira no juvenil do CSA, um dos mais importantes clubes do Estado, em 1999. Menos de um ano depois, já despertava o interesse do Vasco da Gama, quando tinha apenas 14 anos. Buscando oportunidades, Marta transferiu-se dois anos depois para o Santa Cruz, de Recife, a fim de, em 2004, dar o grande salto de sua carreira: ser contratada pelo Umea IK, da Suécia. No time nórdico, ela apareceu para o mundo, vencendo o campeonato nacional por quatro vezes consecutivas, entre 2005 e 2008, e também levantando a Taça da Liga dos Campeões da Uefa em duas ocasiões.
Após conquistar a fama no velho continente, Marta seguiu para os EUA, país que sempre apoiou de maneira muito efetiva o futebol feminino. Firmando contrato de três anos com a Federação Americana, em 2009, Marta alcançou a artilharia da Liga Nacional, porém, seus gols não foram capazes de dar o título para a equipe de Los Angeles. Em agosto do mesmo ano, a rainha do futebol foi contratada por empréstimo pelo Santos, a primeira de suas duas passagens pela equipe da Baixada, porém, apenas por três meses, para a disputa da 1a edição da Copa Libertadores de Futebol Feminino.
Em 2010, ela já estava de volta aos EUA para defender o FC Gold Pride. Artilheira da liga pelo segundo ano consecutivo, desta vez, ela conquistou o título. No fim do ano passado, com a Libertadores da América, mais uma vez Marta veio reforçar o Santos para a conquista do segundo título consecutivo. Três meses mais tarde, voltou aos EUA para defender o Western New York Flash, onde ela cumpre o último ano de contrato com a liga norte-americana.
Foi pensando em dar um basta no preconceito que o Santos apresentou, no dia 13 de abril, o Calendário do Centenário. As Sereias ilustram as páginas em um ensaio sensual e, acima de tudo, bem feminino. O lançamento desse calendário, que vai de abril de 2011 a abril de 2012, contou até com desfile das jogadoras de biquíni, o que marcou, além de uma justa homenagem ao time campeão de tudo no ano passado, a contagem regressiva para a comemoração do aniversário do clube, em 14 de abril de 2012, último dia do calendário. “Elas são meninas, mulheres e também podem ser sensuais, conseguindo fugir do estereótipo de mulher masculinizada, ainda propagado por alguns. É importante sempre sabermos fazer a divisão entre a jogadora dentro de campo e a mulher fora dele”, lembra Barletta. Entre as atletas, o convite para posar para o calendário foi bem-vindo. No momento do clique, todas encarnaram o espírito e se divertiram com o inusitado “dia de modelo”, torcendo também para que a iniciativa atraia algum patrocinador.
É preciso dar um tiro de meta no preconceito, afinal, assistiremos a muito futebol feminino nos próximos dois anos. Os jogos Pan-Americanos acontecem em outubro desse ano, em Guadalajara (México), onde nossas meninas terão a responsabilidade de defender o título conquistado na última edição, no Rio de Janeiro.
2012 será o ano da Olimpíada de Londres e há grande chance de o time feminino conquistar a primeira medalha de ouro do futebol brasileiro na história dos Jogos Olímpicos, após bater na trave com a derrota para os EUA na final em 2008, em Pequim.
Muita bola ainda vai rolar, porém, o torneio mais aguardado já está bem próximo. Agora em junho acontecerá a 6a edição da Copa do Mundo de Futebol Feminino, organizada pela FIFA e sediada na Alemanha, a grande potência da modalidade e atual bicampeã mundial, vencendo justamente as brasileiras na última final, em 2007, por 2 x 0.
Favoritíssimas ao título são elas que treinam em complexos de dar inveja aos grandes do futebol masculino, além de receberem respaldo da Federação e apoio da torcida. Foi essa a combinação responsável pela conquista dos últimos dois mundiais. Se elas têm dois títulos, nós temos Marta, Cristiane, Andreia e mais um monte de guerreiras representando uma classe praticamente muda no País, sedentas para mostrar ao mundo que são mulheres de peito e vencedoras de ouro, independentemente de qualquer medalha.
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