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Foto: Luiza Sigulem

São 13h47 do penúltimo domingo de 2010. Acompanhado de Egídio, dono da Editora Uirapuru, que acaba de publicar A Velha Sentada, a estreia de Lázaro Ramos como autor infantil, o agora escritor e celebrado ator chega esbaforido à Biblioteca de São Paulo, espaço público fundado sobre os escombros do antigo Complexo Penitenciário do Carandiru. Carregando uma pequena valise vermelha, ele entra às pressas no camarim. Em dois minutos está de volta, vestindo um colete preto que cobre uma camiseta promocional de A Velha Sentada que, em instantes, será lançado na biblioteca.

Não se deixem enganar. Como veremos adiante, muito além de estar ali por mera estratégia comercial, ele tem “mercadorias” muito mais valiosas a oferecer. Figura rara nesse meio de celebridades frívolas – cercadas por seguranças e assessores de imprensa com suas interlocuções e restrições -, Lázaro é extremamente acessível e tem muito a dizer. Personifica como poucos de seu meio a figura do “rapaz de bem”, cantado por Johnny Alf. Sua onda também é do vai e vem. Boas ações que provocam boas reações.

Restam dez minutos para o início do bate-papo com os leitores, e ele sugere que eu aproveite para também iniciarmos nossa prosa. Tem outro compromisso de lançamento do livro, às 16 horas, em uma livraria de um dos maiores shoppings da Zona Norte da cidade, e está preocupado em não termos tempo para conversar, depois do papo com os leitores. Quatro dias mais tarde, no fechamento desta edição, a notícia da gravidez da atriz Taís Araújo, sua esposa, bombardeou os portais da internet espalhados pelo Brasil. 2011 promete.

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Um grande brasileiro na estreia da Brasileiros
De óculos escuros e tranças jamaicanas, Lázaro foi o personagem que estampou a capa da primeira edição da Brasileiros. Em reportagem de Chico Silva, que investigava as diversas facetas do preconceito, ele deu seu testemunho e falou sobre sua trajetória de superação. Quarenta e dois meses depois, volta à capa da revista.

Questionado sobre suas impressões das diferenças acentuadas entre o Brasil de 2007 e o de hoje – e também o que mudou em sua vida nesse mesmo período -, ele, muito articulado, tem as respostas na ponta da língua: “Para falar do País, nesses três últimos anos, é inevitável falar do presidente Lula, e também concluir que nossa autoestima melhorou muito. É inegável que houve uma grande ascensão social em determinadas classes, e que mudou muito o modo como as pessoas encaram o Brasil, mas ao mesmo tempo isso tudo veio junto com uma grande perda da inocência política. Sou um cara que sempre votou no Lula e confiava cegamente nele. Acreditava que seu governo seria mesmo um governo com o povo no poder e esperava que ele acabasse com o fisiologismo, mas ele fez o contrário. Fez várias parcerias questionáveis e acordos que talvez até tivessem de ser feitos, mas que ignoravam o senso crítico. O Lula tirou essa inocência da gente. Mostrou que, infelizmente, certos conchavos ainda são necessários para conduzir o País. Ao mesmo tempo, várias coisas boas aconteceram. Essa ascensão de classe social experimentada por milhões de pessoas, o acesso a bens de consumo e a estabilidade econômica são méritos inegáveis. Acho muito saudável, também, termos dado o passo seguinte de colocar uma mulher no poder. Pessoalmente, acho que fiquei mais confiante. Aprendi a coordenar melhor o que o meu desejo de criador propunha. Em 2007, queria fazer muito do que faço hoje, mas não tinha organização, estrutura, e nem sabia como adequar aos formatos aquilo que eu queria fazer. O Espelho (programa dirigido e idealizado por ele no Canal Brasil, onde discute a identidade brasileira) é um bom exemplo desses resultados. Queria levar à televisão alguns temas que me são caros, mas não sabia como. Quanto mais o tempo foi passando, mais foram ficando concretos meus desejos e o programa está hoje em sua sexta temporada. O livro também é fruto disso. Ficava me questionando: por que não é possível um livro para crianças contemplar questões como a diversidade? A menina Edith dá uma guinada em sua infância, quando descobre que tinha uma velha sentada dentro de sua cabeça e, fazendo um paralelo da minha vida, acho que nos últimos anos também encontrei minha velha sentada. Foi a partir daí que o livro explodiu e muitas outras coisas boas aconteceram”.

São 14 horas, e Lázaro tem de correr até a biblioteca infantil. Uma plateia de 50 a 60 pessoas o aguarda para o lançamento de A Velha Sentada, um debate sobre sua atuação como embaixador do UNICEF e, naturalmente, relembrar personagens que não saem do imaginário popular – como o astuto e brasileiríssimo Foguinho -, além de ouvir grandes lições de superação.

O menino do Garcia
A febre da axé music e a onipresença de grupos, como É o Tchan e Gera Samba, coincidiram com outro fenômeno popular da nossa cultura de massas da década de 1990. A retomada do cinema brasileiro e o renascimento da indústria. Namoradinha do Brasil naquele segundo quinquênio de década, em um surto de egolatria, a “loura” Carla Perez decidiu ter a vida retratada, em 1998, no longa metragem Cinderela Baiana. Fracasso retumbante e previsível, o filme promoveu uma revolução na vida do jovem Luiz Lázaro Sacramento Ramos que, três anos antes, por conta de seu trabalho como ator do grupo Bando de Teatro Olodum, havia sido convidado pela cineasta Monique Gardenberg para uma ponta em Jenipapo, e por meio desses novos contatos, receberia o convite para interpretar o melhor amigo da dançarina. Na época, o jovem de 20 anos exercia, há quase três, o cargo de técnico patológico, e fazia coletas de sangue, fezes e urina em um hospital público da capital baiana. Começou a estudar o ofício de ator aos 15 anos no Olodum e dedicava o pouco tempo excedente para o teatro. O mico cinematográfico rendeu um cachê de algo em torno de 30 salários mínimos e ele não hesitou em interromper as atividades no hospital. Ganhava um salário mínimo mensal, e o cachê equivalia a mais de dois anos de trabalho.

Antes de narrar ao público da Biblioteca de São Paulo esse momento divisor de sua vida, Lázaro faz questão de manifestar sua grande felicidade em pisar novamente naquele chão. Da última vez, em 2003, ele era parte do elenco de Carandiru, o longa de Hector Babenco que reconstituiu o massacre de 1992. Comparando os dois momentos, diz que estão todos de parabéns e merecem uma salva de palmas, pois estão prestigiando um lugar que simboliza o extremo oposto de um presídio. Onde antes havia um ambiente destinado a repreender a liberdade, há agora um lugar onde a liberdade e o pensamento não encontram fronteiras. Defende que o poder da imaginação e a capacidade de transcendência são fundamentais para superar as dificuldades da vida e lembra a própria infância: “Nasci e fui criado no Garcia. Um bairro humilde de Salvador. Um lugar sem muitos recursos, mas eu também tinha muitos vizinhos e um quintal em minha casa. Acho que foi ele que me estimulou a ser ator. O quintal era um signo de proteção, mas ao mesmo tempo um mundo onde eu, dentro daquele terreninho, podia ser tudo o que eu quisesse. Morava com meus primos e fui criado por Helenita, uma senhora que hoje tem 86 anos de idade e é minha tia-avó. Meus pais não tinham condições de me dar uma boa educação e fui muito bem criado por ela, que nunca teve filhos, mas que chegou a cuidar de 16 crianças. A casa dela estava sempre aberta para quem precisasse de ajuda. Mesmo que não tivesse comida para todos, ela estava sempre disposta a ajudar mais um. Foi assim que vivi minha infância. Criado por essa mulher generosa e aprendendo a dividir, a ter bom humor para enfrentar a vida, amar a mim mesmo e a cuidar do outro. Os anseios desse artista famoso estão muito misturados com os anseios do cara que veio desse bairro pobre de Salvador. Ao receber o “microfone” da fama, percebi que não valia muito a pena ter esse microfone simplesmente para ficar ganhando roupa de graça e outros privilégios – que é o que muita gente famosa prefere fazer. Quem sempre fala por mim, mesmo quando me posiciono como ator, é aquele menino do bairro do Garcia”.

O tema infância rende o gancho sobre sua atuação como embaixador do UNICEF. Desde julho de 2009, ao lado do humorista Renato Aragão, da cantora Daniela Mercury e da personagem Mônica, de Mauricio de Sousa, Lázaro é um dos quatro brasileiros a representar o UNICEF em defesa das crianças. Um trabalho sem agenda definida, mas que cobra uma postura frequente: “É muito prazeroso, pois posso representar uma causa das mais importantes que é a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. Não existe um estatuto que diga o que o embaixador tem de necessariamente fazer. Cada um opta pelo formato que quer trabalhar, dentro de sua agenda e das suas possibilidades. Como sou mais abusadinho, optei por estar mais presente e, sempre que possível, me envolvo em ações diretas. Recentemente, fui até uma tribo indígena de Porto Seguro, para ensinar alguns jovens índios a usarem preservativos. Em Brasília, visitei um grupo de adolescentes com AIDS e propus a eles diversos exercícios teatrais. Nos divertimos muito”.

O QUE PENSA LÁZARO SOBRE DEZ CONTERRÂNEOS ILUSTRES
– João Gilberto Um gênio. Como muitos gênios, um incompreendido. João é para poucos. Sorte deles.
– Gilberto Gil Rei. Sou fã desse cara. O domínio rítmico, melódico e as letras que ele escreve são impressionantes! Se tem um cara que eu gostaria de ser é ele.
– Wagner Moura Irmão. Não tenho outra palavra para descrevê-lo. Um artista brilhante e um irmão para todas as horas. 
– Dorival Caimmy
Um lado muito belo e poético da Bahia. 
– Jorge Amado
Revelador da alma baiana. Um visionário no que diz respeito à maneira de se contar a Bahia. 
– Glauber Rocha
Ele é o cara! Muito corajoso em colocar todas as suas convicções dentro de uma estrutura louca e muito necessária para a transformação do que é o cinema nesse País. 
– Gal Costa
A maior memória que tenho dela é aquela sensualidade e aquela voz deliciosa no documentário Doces Bárbaros, de Jom Tob Azulay. Hipnotizante ver Gal no palco. Uma das cantoras que melhor escolhe seu repertório. 
– Caetano Veloso
Um provocador. Um cara que ao olhar para o mundo continua sendo santamarense e acho isso muito importante. Gosto de quem valoriza suas origens. 
– Antonio Carlos Magalhães
A Bahia não é feita só de coisas e pessoas facilmente explicáveis e ACM foi desses fenômenos que não são facilmente explicáveis, mas é parte da história da Bahia. 
– 
Lázaro Ramos Xiii, Lázaro Ramos (risos)?! Aquele menino do Garcia… E só!

O bate-papo toma outras direções. Um dos presentes recorda o episódio em que a atriz Zezé Motta fez par romântico com o ator Marcos Paulo na novela Corpo a Corpo – exibida em 1984, pela Rede Globo.

Na época, indignados com o casal inter-racial, alguns telespectadores chegaram a enviar cartas à emissora em protesto. Uma delas versava sobre o grande desafio que o galã tinha de enfrentar – beijar uma negra – para garantir seu salário. O homem sugere que isso mudou, que vivemos outros tempos, e questiona Lázaro se essa mudança não pode ser atestada por seu próprio êxito: “Na última década, sinto que a autoestima do brasileiro cresceu. Estamos gostando mais de nos ver na tela. Os quatro grandes recordes da Rede Globo na última década – e aqui cito a Globo por ela ser a maior emissora do País, mas ela não pode ser colocada como exemplo único, pois o cinema e o teatro também estão empenhados em fazer o mesmo – foram Da Cor do Pecado, que Taís Araújo, minha esposa, protagonizou; Cobras e Lagartos, em que fiz grande sucesso como o Foguinho; Cidades dos Homens; e Ó Pai, Ó. O que une todas essas novelas e séries? A presença ou o protagonismo de negros, e questões que tratam da diversidade, com as quais a gente se identifica e se sente um pouco mais representado. Com isso, o público dá um recado muito importante e está de parabéns. Está cada vez mais dizendo: ‘Eu gosto de mim. Quero me ver também.’ Esse é um movimento que depende de todos nós para crescer”.Uma senhora confessa temer pela saúde de Lázaro. Pelo excesso de coisas que ele, aparentemente, faz, diz ter medo de que, a qualquer hora dessas, ele tenha um troço.

Lázaro sorri e tranquiliza a mulher, ao relatar suas contingências: “Pois fique tranquila, que cuido direitinho de minha saúde. Parece que faço muitas coisas, mas não. Faço poucas e boas coisas. Ano passado mesmo, gravei para a televisão por apenas quatro meses. O resto do tempo, dirigi e produzi o programa Espelho, escrevi esse livro, li muito, vi muitos filmes. Tenho sorte, pois meu lazer é meu trabalho. Existem pessoas que, pela sobrevivência, tem de abrir mão de seus sonhos e eu consegui driblar isso. Tudo que faço só me dá prazer e por mais desgastante que seja, tenho certeza de que todas essas coisas só me dão saúde”. Corpo são, outro presente, comenta que Lázaro transparece muita serenidade e equilíbrio, e pergunta ao ator como ele trabalha sua espiritualidade – muito provavelmente querendo saber qual a sua religião. A resposta do ator é tipicamente baiana: “Nasci em Salvador e, naturalmente, minha religiosidade não teria como ser uma coisa diferente. Entendo um pouco de tudo e incorporo de tudo nessa maneira muito baiana de encarar a religiosidade. Claro que, por uma questão de combate ao preconceito que existe contra as religiões afro, fico muito atento a elas. Elas fazem parte da formação de nosso País e entendemos muito do que somos a partir de todas as religiões incorporadas à nossa cultura”.

Fenômeno popular, o personagem Foguinho, vivido por ele em 2006 na novela Cobras e Lagartos, era um picareta de mão cheia e foi tema de muitas das perguntas dessa tarde. Ao dar sua interpretação “sociológica” do personagem, Lázaro aproveita para alfinetar o deputado federal que acaba de driblar a Lei da Ficha Limpa: “O Foguinho era um cara que passou a novela toda usufruindo de uma fortuna que não era dele, mas todo mundo o amava. Nunca entendi isso. Ele se valeu dessa fortuna por conta de uma carta que deveria ter entregado ao verdadeiro herdeiro da fortuna. Havia aí uma grande questão ética. Acho essa empatia do público bastante curiosa e sintomática. No Brasil, os vilões são, geralmente, muito simpáticos. Me perdoem, estou aqui em São Paulo, mas o Maluf é simpaticíssimo e é um vilão! A lógica da vida real é essa. Vai dizer que o Maluf não é carismático?!”. Uma gargalhada coletiva rompe o salão e Lázaro aproveita para emendar e inverter o raciocínio: “O Foguinho era um tremendo cara de pau, mas ter cara de pau em algumas situações da vida é essencial. Também significa ter coragem e a semântica da palavra coragem é das mais belas. Significa agir com coração. Não há nada melhor do que enfrentar o mundo com o coração. Cada etapa que superei em minha vida com coragem, era como um afago na minha sensibilidade. Dava o estímulo de saber que eu poderia ao menos continuar tentando. Um menino me encontrou no Pelourinho, certa vez, e me disse: ‘Eu sei onde é o meu lugar!’. Aquilo me intrigou muito, porque saber onde é o seu lugar, é algo muito perigoso. A sociedade e o cotidiano imposto por ela estão o tempo todo a dizer que cada pessoa deve estar em um lugar – seja por sua aparência física, seja por sua origem -, como se o lugar da gente fosse algo predeterminado. Escrevi uma coluna na revista Raça, cujo título era O Seu Lugar é Onde Você Sonha Estar. É nisso que acredito e, se estou aqui, é porque sonhei estar hoje, aqui, para ficar diante dos olhos de vocês, escutar e falar com vocês”.

Menos de 15 minutos para o final do encontro, Mário Silva, mediador do bate-papo e produtor cultural da Biblioteca de São Paulo, toma para si a pergunta final, sob o olhar indignado do franzino Jorge, de 13 anos, que aguarda sua vez de indicador em riste. Lázaro interrompe Mário para ouvir o garoto que, tímido, lhe pergunta: “Você mora onde?”. Todos riem: “No Rio de Janeiro”. “Mas em que lugar do Rio?” “No Humaitá, um bairro muito bonito que, tenho certeza, você ainda vai conhecer, Jorge”. O menino humilde, de chinelos desgastados e roupas encardidas sorri, satisfeito. É a vez de Mário, que deixa o ator hesitante. Entre tantas coisas que faz – atuar, dirigir, produzir, escrever, voluntariar -, Mário quer saber como Lázaro gostaria de ser lembrado aos 90 anos? Um longo silêncio e vem uma sábia resposta: “O que realmente me deixará realizado será não ter mais que falar sobre preconceito. Não tenho o menor prazer em falar sobre isso. Falo porque é necessário. Essa ainda é uma ferida aberta em nossa sociedade. Acho isso uma tremenda perda de tempo. Tanta coisa que a gente poderia falar e, entre outras coisas, estamos aqui discutindo isso. Meu sonho é esse. Que o preconceito não seja mais assunto na minha e nas nossas vidas”.


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