Queridos, continuo o post de ontem. Já sabem quem foi Genet, espero que tenham assistido ao maravilhoso filme de Fassbinder, Querelle, fácil de achar no mercado brasileiro. Uma de suas peças teatrais mais conhecidas, O Balcão, que Jean Paul Sartre descreveu como “Um ode à masturbação”, tal seu teor (homo)sexual, foi montada em São Paulo no final da década de sessenta, e é considerada ainda hoje um marco na história do teatro brasileiro. Produzida por Ruth Escobar, seu elenco contou, em diferentes momentos da montagem, com quase todos os grandes nomes do teatro brasileiro da época, gente como Raul Cortez, Dionísio Azevedo e Sérgio e Cláudio Mamberti. Da porta para fora, o Brasil vivia o ápice da ditadura militar, sob o regime do AI-5, censura total dos jornais, prisões ilegais, tortura desenfreada nos porões de quartéis e do temido DOPS, e, dentro do teatro, cenas de simulação de sexo, nu frontal, juízes e bispos sendo currados sexualmente – Genet em estado puro.
A montagem mexeu muito no texto original, o que causou controvérsia, e, diz-se, teria irritado o próprio autor, mas trouxe para o teatro inovações dignas de show da Broadway, colocando os espectadores sentados nas laterais de um espaço circular, assistindo a um palco móvel que subia e descia, onde se desenrolavam cenas as mais fantásticas, mesmo para padrões de hoje. O escritor e dramaturgo Mário Prata, jovem e promissor, descreve hoje como “Coisa de gênios”.
O sucesso foi estrondoso, a temporada inicialmente prevista para alguns meses se estendeu para cerca de dois anos, não se falava em outra coisa no meio teatral brasileiro. Foi quando Ruth Escobar ousou convidar o próprio Genet para vir ao Brasil assistir, e o mesmo não hesitou: veio. Desembarcou em São Paulo em junho de 1970, e hospedou-se na casa da anfitriã. Ele não era exatamente o que se pode chamar de um hóspede civilizado. Sofria de insônia, era viciado em remédios para dormir, que já não funcionavam, e acostumou-se a invadir a cama do casal em plena madrugada, com os pés imundos, para contar histórias e falar de sua vida, sempre contando versões não exatamente verdadeiras de suas aventuras. Em um prefácio do livro Diário de um Ladrão, de Genet, Ruth Escobar conta a tumultuada visita.
Exatamente naqueles dias, ocorrera um grave incidente, de consequências potencialmente trágicas: uma das atrizes da peça, Nilda Maria, fora presa arbitrariamente pelos agentes da ditadura, e seus filhos levados para alguma unidade da Febem, sem que houvesse qualquer registro legal de onde estivessem. Enquanto os amigos se mobilizavam para ajudar a família, a primeira-dama do Estado, Maria do Carmo Sodré, sabendo que estava em São Paulo um consagrado escritor francês, que ela não sabia exatamente quem era, envia-lhe um convite para um chá no Palácio do Governo, coisa inimaginável tratando-se ele de um homossexual, sodomita confesso, que se comportava socialmente como um pit-bull sem coleira. Ali estava uma oportunidade de aproximar-se de alguém com poder para socorrer as crianças sequestradas. Para lá rumaram Ruth Escobar e Jean Genet, com a promessa de que este ficaria o mais calado possível, e ela daria conta de conduzir a conversa e obter o socorro necessário. Não aconteceu exatamente como planejado, mas conto o resto amanhã! Abraços do Cavalcanti.
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