Gentileza x opressão, assédio x galanteio

Gestos até então considerados gentis, como abrir porta de carro, elevador ou servir um copo de cerveja, entraram no foco do debate. Atitudes assim seriam gentileza ou perpetuam a dominação do macho sobre a fêmea? Tentativas de esclarecimento a seguir:

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Gloria Kalil, jornalista, empresária e consultora de moda

“O limite entre o assédio e o galanteio pode ser difícil de definir, mas as pessoas sabem perfeitamente quando estão diante de um ou de outro. Qual mulher não sabe quando está sendo assediada? Às vezes, só pelo jeito que alguém olha, da maneira que chega, dá para saber que ali tem uma sinalização nitidamente sexual, abusiva. Tenho a impressão de que o pior assédio é o que acontece no trabalho porque implica situações comprometedoras. A vítima pode achar que, ao fazer qualquer movimento ao contrário, vai perder o emprego. Essa situação, de fato, traz consequências maiores. Se a pessoa está dando uma prensa nesse sentido, o outro tem medo de denunciar porque se trata de um chefe. Mas uma mulher achar ruim que um homem a sirva primeiro de um copo de cerveja ou que ele abra a porta do carro para ela entrar, que carregue o pacote de supermercado… Eu acho tudo isso ótimo. Fura o pneu do meu carro e eu vou trocar? Não troco! Não tenho força, não sei onde estão as ferramentas, não sei e não quero saber.

Acho que, se tirar do ideário feminino esse tipo de coisa e colocar no ideário da etiqueta ocidental para o bom andamento dos relacionamentos, a coisa flui sem esses pequenos conflitos que aparecem porque não há regras. Para que existem regras de etiqueta? Elas facilitam muito a vida das pessoas, são feitas para isso, e não para complicar. Se eu estou com um homem mais velho que tem alguma dificuldade, não devo ajudá-lo, abrindo uma porta, carregando um pacote? Se eu vejo um homem jovem cheio de pacotes, não vou ajudá-lo a abrir a porta do elevador, por exemplo? O que estou dizendo é que essas atitudes são do contexto da educação.

Se uma mulher se ofende com gestos masculinos de gentileza, na minha opinião, ela deveria, no máximo, propor uma discussão, uma conversa. Mas jogar copo de vinho na cara, como fez a ministra contra o senador, não. Esse tipo de atitude é o fim, demonstra uma falta de civilidade da parte dela incrível, uma reação primitiva, sem mediação. Além do mais, não acho que dizer que uma mulher é namoradeira seja uma ofensa. De repente, é um entendimento regional, cada Estado brasileiro entende de um jeito. Então, para ela, namoradeira pode querer dizer prostituta. Não sei. Aqui em São Paulo, sei que não é. Eu sou e sempre fui namoradeira. É uma delícia. Em uma sociedade destemperada, essas coisas acontecem. Mas, se somos uma sociedade civilizada, não deveria acontecer. Concorda?”

2015 Laerte Coutinho, cartunista e chargista, 64 anos

Laerte Coutinho, cartunista e chargista

“Todo tratamento diferenciado em relação às mulheres tem uma raiz patriarcal, que supõe uma situação em que mulher é mais imbecil, mais frágil. São suposições que têm por trás o desejo de dominação e controle de uma parte dos homens. Acho que a raiz do questionamento desse costume é feminista sim, mas não é a única. Pessoalmente, acho que os homens também têm bons motivos para refletir sobre esses costumes, que são tidos como inofensivos ou inocentes ou até elogiosos, em vez de ficarem se achando vítimas de mulheres raivosas e ressentidas.

Essa história que a gente chama de cavalheirismo é uma grande bobagem. Os homens que ficam magoadinhos porque as mulheres estão questionando devem aproveitar a ocasião para refletir um pouco porque a cultura patriarcal, que supõe que as mulheres sejam umas débeis mentais, é a mesma que manda os homens para a guerra, partirem para o sopapo. É a cultura que está enchendo os presídios de homens e o mundo de vítimas homens. Acho que as pessoas vão continuar se aproximando como sempre, mas dentro de um contexto de respeito social.

O modo como o assédio é praticado hoje supõe que a mulher é carne para o homem, que está no mundo para dar para o homem, e isso é algo que precisa ser superado. No fundo, é a cultura do estupro, de que os homens têm todo direito de meter a mão. O que se pode fazer é uma crítica desses costumes que ainda vigoram entre homens e mulheres, entre homens e homens, entre mulheres e mulheres. Eu, como mulher transgênero, tenho uma vivência diferente.

Passei 60 anos como homem, soube a pressão dessa cultura e, muitas vezes, agi com esse formato abusivo. A ideia é que, se você é homem, deve agir assim, se não é fraco. Quantas vezes já não tentaram me ensinar como se canta mulher… Eu tentei aprender com muita incompetência. Os homens se comportam assim, porque a mulher supostamente está ali para isso, então toda argumentação de que se trata de uma coisa respeitosa e carinhosa é uma argumentação que está mascarando a natureza real daquilo.

Por mais que o homem estivesse com uma intenção gentil, palavra que certamente ele vai usar, não estava, claro que não estava. Experimenta transpor para a questão racial, por exemplo. Você não faz comentários porque isso já virou explosivo o suficiente. E é tido como natural uma garota bonita e o fato de um homem poder olhar para a bunda dela. Se eu posso olhar, por que não posso comentar e por que não posso dar um toque? Esse tipo de argumentação é muito frequente.

O homem fala: ‘Não posso fazer nada, o meu pau levantou’. Exatamente isso. ‘Eu não posso falar para o meu pau ser respeitoso’. Porque o pênis do sujeito não é ele, é um animal que está dentro das calças do coitado desse homem sujeito a esse pênis que é encharcado de hormônios. E ele não pode fazer nada. ‘Eu só estou aqui acompanhando meu pênis.’ ”

Martim Ancona de Faria Bueno de Aguiar,
estudante de Engenharia

“A sociedade sempre naturalizou algumas atitudes opressivas e assim a vítima e o opressor pensam que é natural. Acho que, no momento em que as coisas não são mais naturalizadas, trazem uma reflexão mais profunda e a pessoa enxerga se é opressiva ou não. Não é o opressor que define o que é ou não machista. É a vítima. Com o fortalecimento dos movimentos feministas, quando um homem fala alguma coisa e nem imaginou que aquele comentário fosse machista – já aconteceu comigo –, a menina se sente mal, ofendida. Nessa hora, o que se deve fazer é um pedido de desculpas e refletir sobre o que ela falou. Muitas atitudes do cotidiano acabam reproduzindo, sem perceber, pensamentos e gestos machistas. O que levo em consideração é que as mulheres foram oprimidas por muito tempo.

Agora elas estão começando a se liberar, os movimentos feministas estão ganhando mais pautas e espaço. Todo esse movimento é meio uma novidade. Não só para os homens. Acredito que, para as mulheres, essa liberdade de expor mágoas com a sociedade também seja uma novidade. E, nessa fase de transição, é compreensível que as mulheres às vezes acabem sendo um pouco mais exacerbadas no jeito de se expressar. Acho que o primeiro pressuposto básico é pensar o que incomoda e tentar se colocar no papel do outro. Não dá mais para ficar naquele lugar de conforto com a justificativa de que os homens são assim mesmo, que eles têm os hormônios à flor da pele.

Acredito que a maioria dos homens está mais cautelosa, mais por medo de ser repreendida. Mas espero que seja apenas uma passagem, até que o medo de ser repreendido mude para uma reflexão de que não se deve fazer determinado tipo de coisa porque isso pode ser desrespeitoso com uma mulher.”

Ronaldo dos Santos Junior, estudante de História e professor de cursinho

“O limite entre a cantada e o assédio é muito tênue e, ao mesmo tempo, muito amplo. Prefiro dividir em dois tipos de situação que, ao menos nos meios em que transito, são mais recorrentes. Esse limite pode ser muito tênue porque, para cantar alguém – entenda cantar por “chegar” na pessoa –, é preciso antes sentir se ela está ou não interessada, tentar descobrir se existe interesse por parte dela. É natural e faz parte. É possível fazer isso por meio de uma conversa, convidando-a para dançar junto…

Trata-se de ir ‘conhecendo’ a pessoa. Existe uma grande diferença entre conhecer a pessoa, se aproximar dela e assediá-la. O assédio envolve agressão. “Cantar” alguém de forma agressiva ou impositiva é um assédio. Pode ser desde a agressão verbal, como o assobio, o famigerado ‘gostosa’ ou ‘delícia’ na rua, ou coisas mais agressivas e grotescas. Portanto, acho que existe uma diferença na forma como os dois são feitos. A cantada é uma demonstração de interesse, que envolve uma troca, uma conversa. O assédio é agressivo e ignora qualquer limite ou processo de troca por parte do outro. O assédio é unilateral.”

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Arismar do Espírito Santo, músico

Para Arismar, o negócio é olho no olho.

“margem de acerto é tábua de salvação
lego crespo
ego cego
prelo seco
pouco moco
tolo rouco
o limite do bullying descabido
é me tido em brilho de íris
é medido a milhares de metros lúbricos
ou total abstinência
intolerância em ter me, tente…”

Julia Fortes Cré, estudante de Medicina

“A forma como a pessoa fala, como ela demonstra e como age já mostra a diferença entre um elogio e um assédio. Infelizmente, mesmo hoje, as pessoas não tomam cuidado com essa questão da cantada. Quando uma mulher caminha na rua sozinha e passa em qualquer lugar com uma concentração de homens, ela sofre com isso. Tenho amigas que mudam de calçada quando percebem que podem ser ‘cantadas’. Na faculdade, conheci umas meninas que tratam dessa questão do feminismo e, com elas, aprendi muito sobre o movimento. Antes de entrar na universidade, eu já conversava com minhas amigas sobre situações de assédio, como o ‘fiu-fiu’ e chamar de ‘gostosa’.

Esses grupos feministas que estão surgindo nas faculdades ajudam as meninas a tomarem mais consciência sobre esse assunto. Eu passei por uma situação recente, que pode ilustrar um pouco isso. Tem uma padaria perto da minha casa e um senhor cuida dela sozinho. Ele acabou de abrir o lugar e, como é um espaço em que vão muitos estudantes, esse senhor oferece algumas coisas para eles experimentarem. O dono da padaria quer saber se o que preparou para ofertar está bom.

Outro dia, ele me contou que uma menina não gostou da atitude dele porque entendeu que ela estava sendo cantada. Então, não acho que o cavalheirismo seja algo ultrapassado, mas por toda essa questão do assédio, que está muito forte, ele acaba sendo confundido com ‘dar em cima’.”

Isadora Szklo, professora

“Para pensar essa questão, precisamos ter como base que assédio é parte de uma ideologia machista, que desumaniza e objetifica as mulheres. Os elogios fazem parte da relação entre duas ou mais pessoas, mesmo que seja uma interação simples, como por exemplo um agradecimento. O assédio não tem essa interação, ele é só uma ação de um homem em cima de uma mulher. Isso fica ainda mais explícito em casos de assédio físico, como quando um homem “passa a mão” em uma desconhecida. Isso não é elogioso, é violento e reforça a ideia de que o espaço público é do homem.

O assédio vem sendo mais discutido recentemente. Penso que isso tenha começado com mais força na campanha ‘Chega de fiu-fiu’, passando pela ação contra estupro do “Eu não mereço ser estuprada” e, mais recentemente, as hashtags #meuprimeiroassedio e #meuamigosecreto, além da Marcha das Vadias. Tudo isso mostra verdades duras sobre a realidade das mulheres e o que nós realmente achamos das cantadas e diferentes formas de interação entre homens e mulheres. Infelizmente, a discussão em torno desse conteúdo não é tão ampla quanto gostaríamos, mas com certeza fortalece a luta das mulheres.
Existe uma diferença entre o cavalheirismo e a gentileza.

Gentileza é o gesto ou uma capacidade de ajudar o outro, sem distinção de gênero. O cavalheirismo é quando o homem faz algo por uma mulher por entender que eles exercem papéis sociais distintos. Atitudes como pagar a conta são tomadas geralmente sem perguntar a opinião da mulher. Sabemos abrir portas e podemos pagar contas. É uma ideia similar à do assédio, pois propaga que a escolha é sempre do homem. Sendo assim, o cavalheirismo pode parecer gentil, mas não é justamente por essa carga ideológica machista que carrega consigo.” I


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