Gigantes (e perseverantes) do ringue

Depois de vencer Belo, o Carrasco Português, e Aquiles, Michel Serdan enfrenta atualmente o mais implacável dos adversários: o tempo. Aos 64 anos, o veterano lutador continua com uma forma física invejável, mantida com constantes exercícios. Mas se consegue driblar o tempo quando o assunto é sua aparência, o mesmo não se pode dizer com relação à sobrevivência da luta livre, que o tornou conhecido.

Criado por Serdan em 1973, o Gigantes do Ringue viajou por boa parte da América Latina durante os anos 1970 e se tornou atração das noites de sábado na década seguinte, na Rede Record pré-bispos da Igreja Universal.
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Nessa época, o atleta de cabeça raspada e olhos claros aceitava desafios de adversários inescrupulosos, como Belo e Aquiles, capazes de agredi-lo com pedaços de tijolos ou passar limão em seus olhos. Os vilões da luta livre contavam ainda com o auxiliar de corner, Perninha, pronto para qualquer trapaça, e com a conivência de árbitros desonestos. Enfim, a simulação de uma disputa entre o Bem e o Mal ao gosto popular, em que o mocinho sofre, mas jamais é derrotado.

Antes dele, a luta livre coreografada fez sucesso na TV brasileira nos anos 1960, tendo como principal ídolo o ítalo-argentino Ted Boy Marino, que depois fez parte do elenco do humorístico Os Trapalhões, da Rede Globo. Marino começou com programas de luta em emissoras da Argentina e do Uruguai, antes de se tornar o herói mais popular das apresentações daquela década.

Serdan, nome artístico do paulistano Antônio Carlos Aquino, esteve no auge nas duas décadas seguintes. Ele pendurou as sapatilhas faz três anos e agora se dedica a formar a nova geração de sua companhia. Nos três primeiros meses deste ano, foram apenas duas apresentações, uma no lançamento de um produto de um laboratório farmacêutico e outra no Centro Esportivo e Educacional da Mooca, na zona Leste da capital paulista, mesmo bairro em que fica sua academia de lutas e ginástica.

Serdan busca patrocinadores para uma sonhada volta à TV e mesmo para fazer apresentações em cidades do interior paulista. “Uma apresentação custa pelo menos R$ 20 mil. Fica complicado gastar isso e correr o risco de não ter público por causa de uma forte chuva, por exemplo”, calcula.

Mesmo sem ter apresentações marcadas, a trupe mantém os treinos às terças e quintas-feiras. Serdan, com 47 anos dedicados à luta livre, também procura novos atletas e os prepara para subir ao ringue. Sem perder a calma, discute as coreografias, aponta as falhas e busca a perfeição em cada movimento. Há pouco tempo, a companhia abriu vagas para novas lutadoras, que receberão treinamento gratuito e depois ganharão um cachê a cada exibição do grupo.

Serdan também os indica para participar de comerciais e outros programas de TV. “Recentemente, levei seis deles para uma agência de publicidade que me procurou. Consegui emplacar três em um comercial de loja de material para construção”, cita. Ele mesmo, apesar de interpretar apenas esse personagem, é presença comum em programas de TV e comerciais, além de ter participado de filmes, como o cult Cidade Oculta (1986), de Chico Botelho, com Arrigo Barnabé.

O treinamento antes das primeiras exibições demora de três a quatro meses e a maioria dos integrantes da equipe pratica alguma luta para valer. “Geralmente, aproveitamos os golpes da especialidade de cada um. Os lutadores de jiu-jitsu são os mais difíceis, porque é uma luta que prioriza demais a eficiência, enquanto buscamos a plasticidade do golpe”, explica Serdan.

Ele calcula que a equipe do Gigantes do Ringue é composta por cerca de 40 atletas, sendo cinco mulheres. Uma delas, Waleska, simboliza a reaproximação de Serdan com um pupilo que havia se tornado rival: Trovão, criador da Associação Brasileira de Luta Livre (Abraluli) e assistente de palco de João Gordo na MTV. Chamada de Trovona no programa, Waleska é filha de Trovão e foi levada pelo pai para fazer parte do Gigantes do Ringue. “Eu e o Michel nos unimos pelo bem da luta livre”, comenta Trovão, com a aprovação de Serdan.

A maioria dos veteranos se afastou. “É duro tratar com eles. Muitos se sentem ‘escanteados’ quando começam a dar lugar aos jovens”, justifica Serdan. Uma das exceções é Marinheiro Júnior, antigo lutador que ajuda Serdan no comando dos treinos. Outro veterano, apesar do apelido, é Mário Boy. Com pouco mais de 40 anos, ele faz parte do grupo há 30. Começou lutando fantasiado, como filho do lutador King Kong. “Eu entrava no meio das lutas para atrapalhar o adversário do King Kong”, lembra Mário Campos, também filho de lutadores.

Os atletas se dividem em “volantes”, que são os mocinhos, e “bases”, os vilões. A coreografia é combinada entre os “adversários”, para que cada um aproveite ao máximo suas especialidades, uma forma de tornar a luta atraente. Depois, o resultado é analisado por Serdan, que calcula se está de acordo com o tempo estipulado (dois assaltos de dois minutos por um de descanso) e verifica a qualidade da apresentação.

Treinador e dirigente do grupo, Serdan também anima os treinos com as histórias de antigos colegas. “Uma vez levei um lutador para se apresentar comigo em um evento. Antes da apresentação, eu entrei, conversei com os organizadores e bebi espumante. Apesar dos convites para entrar, ele se negava: ‘Desculpa, não posso entrar. Sou base.’”, conta, rindo, a justificativa do outro atleta.

As expressões mais repetidas pelo treinador são “caiu antes” e “registra”. Segundo ele, para dar veracidade à apresentação, o lutador precisa cair no momento em que recebe o golpe, logo após ser tocado. A falta de resistência ao golpe no momento em que é atingido faz com que o atleta não se machuque. “Registrar”, na gíria da luta livre, é a simulação de sofrimento, que é encenada logo em seguida.

Serdan também cria a maioria dos personagens. “Um dia cheguei aqui e ele me falou: ‘este aqui é seu irmão, vocês vão lutar juntos’”, conta Cadu, de 16 anos. Como o adolescente não é tão forte como a maioria dos atletas – muitos deles também halterofilistas -, Serdan decidiu que Cadu deveria apresentar-se em lutas de duplas.

Carlos Eduardo Mortaia conheceu o líder do Gigantes do Ringue quando tinha dez anos e fez papel de seu filho em um comercial da Fiat. “Desde lá passei a encher tanto o saco dele, até me deixar participar do grupo”, narra o jovem, que é faixa preta de hapkido e começou a treinar com os Gigantes há um ano. “Chegou uma hora em que o Michel falou: ‘Tá bom, sobe lá e treina’”, recorda-se. Ele é um exemplo de como a perseverança e o carisma de Serdan conseguem contagiar a nova geração da academia.

Bruno Limberto, 17 anos, faz o papel de irmão de Cadu. Lutador de jiu-jitsu e caratê, ele foi chamado para os treinos quando fazia musculação na academia de Serdan. “Ele perguntou se eu gostava de lutas, disse que sim e ele me convidou para treinar com a equipe”, conta Bruno.

Muitos vão aos treinos depois do trabalho e boa parte dá aula de artes marciais ou de musculação. Cláudia César, a Mulher-Leopardo, sai de Santana de Parnaíba, no oeste da Grande São Paulo, para treinar na Mooca. Aos 33 anos, ela faz parte do grupo há quatro. “Comecei a lutar aos 16 anos, porque era magrinha e costumava apanhar muito na escola.”

“Fiz kung fu e jiu-jitsu. Vim para cá a convite de um amigo que já lutava e me disse que estavam procurando mulheres para a equipe”, conta. Estudante de Enfermagem, ela brinca: “Bato para cuidar depois”.

Dona de uma academia e de uma confecção em Guarulhos (SP), Bianca Lastire é uma das mais antigas lutadoras do Gigantes do Ringue e também um dos casos de sucesso na equipe. Bia, a Perversa, já se apresentou duas vezes em campeonatos de luta livre nos Estados Unidos, onde a modalidade ainda atrai grande público, com diversos produtos licenciados relacionados à atividade e a seus principais ídolos.

É de lá que vem parte da inspiração da nova geração, com o apoio do YouTube, site de vídeos. “Vejo muitas apresentações de norte-americanos pela internet. Uso para aprender novos golpes que vou desenvolver aqui”, explica Cadu, que também é o caçula da equipe. Nos Estados Unidos, a modalidade tem mais de 30 empresas promotoras. A maior delas é a World Wrestling Entertainment (WWE), com faturamento anual na faixa das centenas de milhões de dólares.

Muito longe dos milhões de dólares dos norte-americanos, com sua pequena academia na zona Leste de São Paulo, Serdan persiste. Espera que jovens como Cadu, que foi seu filho na ficção, tornem-se seus descendentes na arte.


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