É possível que o próximo livro de Ilana Casoy tenha uma repercussão diferente dos anteriores, que a consagraram como uma especialista em serial killer. Ainda em produção e sem título, ela vai defender a tese de que Gil Rugai, condenado a 33 anos e 9 meses de prisão em regime fechado, não matou o pai e a madrasta em março de 2004, numa das mais famosas ocorrências da crônica policial brasileira. Em uma das raras aparições ao lado da defesa, Ilana tem nesse caso o que alguns podem considerar seu calcanhar de Aquiles: seu filho caçula, o criminalista Marcelo Feller, de 26 anos, é um dos defensores do réu. Nem por isso baixa a guarda. Ao contrário, é segura em sua argumentação, ao apontar o que considera falhas primárias da polícia e da perícia na investigação. E não teme comprometer sua reputação por um só motivo: ela diz ter as provas de que o filho de Luis Carlos Rugai estava a 7 km de distância do local do crime no dia e na hora em que o casal foi assassinado.
Vai além. Ela afirma que, ao contrário da defesa, a acusação não apresentou provas. “Dizem que Gil fez um desfalque na empresa do pai, que não existe. No laudo da perícia tem um vídeo que reproduz o arrombamento da porta da casa, em que o suposto pé direito de Gil é sobreposto ao pé esquerdo e, em júri, dizem que isso foi ‘um lapso’. Entrei no caso pelo convencimento das provas, não pelo amor que tenho pelo meu filho.”
A especialista em crimes, que já esteve diante de gente perigosa – Pedrinho Matador, Chico Picadinho, Suzane Richthofen, Alexandre Nardoni –, não esconde sua posição com relação à maioridade penal, assunto que voltou ao debate após a participação de adolescentes em homicídios que chocaram o País: o de Victor Hugo Deppman, 19, morto em frente de sua casa no bairro do Belém, São Paulo, e o da dentista Cinthya Magaly Moutinho de Souza, 47, queimada viva no ABC paulista. “Não dá para legislar de emergência.”
Filha de engenheiro e de uma secretária, Ilana nasceu em berço seguro. Sobrinha do jornalista Boris Casoy e prima do apresentador global Serginho Groisman, estudou no Colégio Palmares, um dos mais tradicionais de São Paulo. Mais tarde, formou-se em Administração pela Faculdade Getulio Vargas. Aos 20 anos, casou-se com o empresário Jacques Feller e, cinco anos depois, já era mãe de Fernando, 30 anos, que trabalha com o pai, e Marcelo.
Quando estava perto de completar 40, tomou a decisão que mudaria para sempre sua vida. Largou a rotina de administradora de uma escola para reunir em livro as pesquisas que tinha feito, ao longo de anos, sobre assassinos em série internacionais. Para isso, contou com a ajuda emocional e financeira de Jacques, a quem Ilana garantiu que seria algo temporário, um período sabático. “Estudar criminosos era uma espécie de hobby. Não havia muitas informações no Brasil, então eu levantava os casos internacionais. Fui acumulando histórias e, uma hora, resolvi reuni-las em livro. Mas não imaginava que daria no que deu.”
A estreia no mundo do crime aconteceu com Serial Killer – Louco ou Cruel?, um roteiro inquietante de como, porque e com quais métodos matam os criminosos em série. Hoje, depois de ter publicado outros quatro títulos (Serial Killer – Made in Brazil, sobre criminosos brasileiros, O Quinto Mandamento, sobre o caso Suzane Richthofen, e A Prova é Testemunha, a respeito da morte da menina Isabella Nardoni, que acompanhou ao lado da perícia), Ilana é autoridade na resolução de crimes no Brasil. Mas também gosta de navegar pela ficção, desde que o assunto seja criminalidade – Ilana participou de uma espécie de conselho para construir a mente do psicopata Dexter Morgan, protagonista do seriado homônimo americano, cuja última temporada está prevista para este ano.
Fumante profissional desde os 17 anos, Ilana, aos 53, é o tipo de mulher que não se importa em ser considerada politicamente incorreta. Nem pelo vício nem pelo que pensa. Aliás, diz ter medo mesmo do que chama de “encarnações do bem”. Ao lado de Eduardo Morales, seu braço-direito há uma década, ela recebeu a reportagem da Brasileiros em seu escritório, recheado de livros, filmes, jornais, revistas de Sudoku (outro vício) e copos estampados com imagens pouco usuais: caveiras e símbolos de polícia. “O BOPE não pode usar mais a caveira, mas eu posso.” Bem protegida por um forte esquema de segurança, Ilana Casoy dá a cara à tapa ao falar sobre maioridade penal, condenações que considera injustas, Justiça, família e medos. Sim, ela revela aqui que também tem seus pavores.
Brasileiros – Dois homicídios envolvendo adolescentes chocaram o País nas últimas semanas e reacenderam a discussão sobre a maioridade penal. Qual sua opinião sobre isso?
Ilana Casoy – A taxa de elucidação de homicídios no Brasil é de 8%, enquanto na Argentina é de 45%, nos EUA, 65%, na França, 80%, e no Reino Unido, 90%. Esses dados são da Perícia Federal brasileira. Me diz: qual é o negócio que tem 92% de dar certo? Isso é uma coisa. Outra é que uma pequena parcela de menores comete crimes brutais. De acordo com a Fundação Casa, 2% dos crimes estão relacionados com homicídios, enquanto três quartos da mortalidade de crianças e adolescentes têm causa violenta. Em 2010, 24 crianças e adolescentes entre 15 e 19 anos foram assassinados por dia, segundo o Mapa da Violência. Ou seja, é uma calamidade tratada com indiferença. É claro que fico indignada e choro junto quando me deparo com crimes brutais, e também me revolto. Mas não dá para legislar de emergência. Temos de estabelecer uma linha: hoje é 18 anos. Mas, se cair para 16, o que vai acontecer com quem praticar um crime com 15 anos e 11 meses? Talvez se deva pensar que os juízes pudessem ter um pouco mais de maleabilidade na questão da maioridade perante a casos específicos, em que se vê nitidamente sinais mais complicados de brutalidade praticados por menores. Isso, aliás, já acontece em alguns países.
Brasileiros – Deixar a decisão para os juízes é a solução?
I.C. – Uma coisa é certa: é preciso investir em educação, inclusão… Uma vez, subi a Rocinha. Peguei um cigano como guia, que me pediu R$ 100. Lá em cima, não tem polícia, lixeiro, correio. Como faz para fazer um crediário, chegar ambulância? Aí, pergunto: quem venceu na vida? O cara que tem tudo ou o sujeito que nem pode sonhar com coisas que estão fora da realidade dele. Qual vai ser o milagre para transformar essas pessoas em médicos, engenheiros, advogados? Hoje, tem um trabalho melhor do Estado, mas ainda falta muito. É também um mundo com regras muito próprias. Quando pedi ao cigano para me levar embora, ele me pediu mais R$ 300. Reclamei e ele. “A senhora me pagou para subir, não para descer.” Aprendi uma lição: a de que na Rocinha, a ética é outra.
O que diz a acusação |
Crime em Família -Gil Rugai, que foi condenado a mais de 33 anos em regime fechado e as vítimas do caso: o pai do réu, luiz Carlos Rugai, e a madrasta, Alessandra Troitino |
O estudante Gil Rugai, 29 anos, foi condenado a 33 anos e 9 meses em regime fechado pela morte do pai, luiz Carlos Rugai, e da madrasta, Alessandra de Fátima Troitino. A sentença foi resultado de cinco dias de julgamento, que terminou em 22 de fevereiro último, no Fórum da Barra Funda, em São Paulo. A decisão coube a sete jurados – quatro votaram pela condenação e três pela absolvição. O crime aconteceu em 28 de março de 2004, quando foram desferidos 11 tiros nas vítimas que estavam na casa em que moravam, na Rua Atibaia, em Perdizes. O promotor Rogério leão Zagallo, apesar de procurado pela reportagem, não atendeu à solicitação. Mas o advogado Ubirajara Mangini Pereira, assistente da acusação e representante da família de Alessandra, diz “não ter dúvida” de que Gil Rugai é o autor dos crimes. “O fato de ele não ter sido preso gera uma sensação de impunidade. A defesa, na verdade, quer bagunçar a situação. Não sei se Gil Rugai atirou contra as vítimas, mas que estava lá estava.” Quanto à polêmica em torno do horário dos disparos de tiros, Mangini afirma que entre 21h e 22h, o réu alega álibi, mas nada foi confirmado. Ele diz ainda que a perícia foi “perfeita”. No entanto, afirma que a empresa contratada para fazer o vídeo que simula o arrombamento na porta, em que um pé direito é sobreposto a um esquerdo, foi “a única coisa que saiu errado”. |
Brasileiros – Você está escrevendo um livro sobre o caso Gil Rugai, que foi condenado a mais de 33 anos de prisão em regime fechado. Como está o andamento desse trabalho?
I.C. – Por enquanto, estou evitando escrever porque ainda me sinto agressiva. Mas posso dizer que esse livro é diferente de todos os outros porque também sou uma personagem e vou contar tudo, desde quando meu filho Marcelo e o amigo Thiago Anastácio (advogado criminalista) foram nomeados, em 2011, pela Defensoria Pública, através do IDD (Instituto do Direito de Defesa), para defender o réu. Não participei da investigação nem da perícia. Aliás, quando eles me pediram ajuda, eu, que só acompanhava o caso pela mídia, achava que Gil era totalmente culpado.
Brasileiros – Como se convenceu do contrário?
I.C. – Só entrei no caso depois de ler todo o processo, que tem uns 40 volumes. Minha leitura é diferente da feita por advogados porque leio investigando, não com olhar jurídico. Marcelo e Thiago sabiam de antemão que eu só os ajudaria à medida que acreditasse na inocência do réu. E vou te dizer: na página 3 do primeiro volume, já comecei a me remexer na cadeira. Foram 13 dias de trabalho intenso para eu concluir que Gil é inocente.
Brasileiros – O que a levou a essa conclusão?
I.C. – Uma série de imperfeições da investigação, da perícia. Por exemplo: duas pessoas, além do casal assassinado, tinham a chave da casa e só uma foi investigada: Gil. A outra era um funcionário da empresa do pai (Agnaldo Souza Silva) que depois foi à Justiça reclamar uma dívida de meio milhão de reais que o antigo patrão teria com ele. Não é exatamente uma pessoa que não precise ser investigada, concorda? Não estou dizendo que foi ele, mas esse cara foi descartado no dia 1 da investigação. Ele presta depoimento e compromete o Gil, dizendo que pai e filho tinham brigado em uma reunião, em que o Luiz Carlos Rugai colocou Gil para fora de casa. O motivo da briga e do crime teria sido um desfalque na empresa do pai, uma produtora, que não apareceu. Sou administradora e não achei nada. O contador também não e foi a júri. A polícia diz ser difícil precisar a hora do crime, que teria sido entre 21h e 21h30 de um domingo. Mas eu não entendo a dificuldade em determinar o horário. Ao levantar as contas telefônicas dos vizinhos que ouviram as duas sequências de tiros, o Copom foi chamado às 22h14, depois da segunda saraivada de disparos. Qual é o problema, então? A pessoa que telefonou para o Copom às 22h14, muito longe de 9h30, diz em depoimento que pode ter demorado mais de 40 minutos para acionar a polícia. Como? Tenho um vizinho, escuto tiros, daí a pouco escuto outros, mas espero o Fantástico acabar para chamar a polícia? Além disso, tenho a prova de que Gil estava na rua José Maria Lisboa, a 7 km de distância da casa do pai na hora do crime. Ele fez uma ligação para uma amiga do telefone fixo de seu escritório.
Brasileiros – E o pé na porta, a arma do crime?
I.C. – No laudo da perícia, tem um vídeo animado em que o suposto pé direito de Gil é sobreposto ao pé esquerdo de um sapato bem maior que o pé dele, aliás, e afirma que foi um “lapso”. Isso é prova? A arma é a história mais mal explicada do processo. Um ano e meio depois do crime, quando não havia nada que ligasse Gil aos homicídios, embora ele estivesse preso, o zelador do prédio onde funciona o escritório do réu vê um carroceiro e pensa: “É preciso lavar o poço do esgoto. Vou chamar esse carroceiro”. Por R$ 50 oferecidos pelo zelador, 10% do salário dele, o carroceiro aceita o serviço. Ele desce no poço e encontra um metal envolvido em um saquinho, que é a arma. A perícia não vai até o local, não fotografa, não faz nada. Isso, para mim, não existe. O zelador presta depoimento e o advogado de Gil na época sai na mídia dizendo que ele mentia porque o tal poço tinha sido limpo havia seis meses, quando Gil estava preso e a arma não estava lá. O zelador, então, presta outro depoimento e explica que a limpeza não foi feita no poço de esgoto, mas no de águas pluviais. A arma não está em nome de Gil, foi roubada no Paraná, o último dono dela estava em Terra Roxa. Há momentos em que Gil é inteligente e em outros, uma topeira. Ele teria matado o pai e a madrasta, ido ao escritório dele, colocado a arma em um saco com todo o cuidado para protegê-la e jogado no próprio prédio. Não é só o Gil que é esquisito. A investigação também é.
Brasileiros – Como assim esquisito?
I.C. – Como todo adolescente, Gil era o oposto do pai, cineasta que gostava de rally, saltar de paraquedas, ultramoderno. Luiz Carlos e Alessandra estavam juntos havia dez anos. Ela morreu primeiro, no susto, nem sabe que morreu. Enquanto o pai era todo moderno, Gil andava de terno com colete e bengala. As polícias civil e científica montaram um estereótipo, que foi muito bem explorado. Pegaram uma fantasia nazista que Gil usou em uma peça na Escola Carlitos, e a fita dessa peça foi a júri, e consideraram que ele guardava em casa um uniforme nazista. Acharam filme, livros de crime, um colete tático, desses que todo jornalista usa, e pronto: o cara virou o demo. Tem uns depoimentos que até duvido. Por exemplo: a amiga da madrasta ouviu dizer que Gil fez xixi na cama até os 18 anos. A empregada ouviu que ele ia comprar um caixão para servir de cama. Não sei quem ouviu que ele dormia em um baú. E assim vamos.
Brasileiros – Qual é a sua impressão dele?
I.C. – Um cara quieto, extremamente inteligente no sentido intelectual, que teve a vida parada aos 20 anos. Já viveu na cadeia e hoje está isolado. Cuida da avó, a mãe da mãe, que sofre de Alzheimer. É até bom não falar isso porque pode parecer piegas. Seja como for, Gil tem certa ironia no jeito dele de responder às coisas, escreve bem, mas é formal na escrita. É religioso, profundamente cristão. Tem um irmão mais novo, com quem se dá muito bem. Ele, o irmão e a mãe formam uma família normal, comum.
Brasileiros – Apesar de tudo o que foi apresentado pela defesa, ele foi condenado a mais de 30 anos de prisão.
I.C. – Existe uma pesquisa que mostra que a maioria dos casos que vai a novo júri é de absolvidos. O contrário não é verdadeiro. Poucos condenados têm nova chance. Gil pode ter novo júri, pode não ter. Ele está em liberdade, como prevê a lei até cessarem todos os recursos, mas está no limbo. Na minha opinião, frente a um 4 a 3, que foi o placar do júri, perante as provas que não foram consideradas ou entendidas, seria justo ele ter outra chance. A vida dele parou. Chega a uma entrevista de emprego e se apresenta como Gil Grecco. Tudo bem. Na hora de entregar os documentos, ele é Gil Grecco Rugai. Não é fácil ser Gil Rugai.
Brasileiros – Houve um complô contra ele?
I.C. – Não, acho que é o nosso sistema. Gil se tornou um suspeito quase literário por usar terno com colete, ter a fantasia da escola e tal e tal. Esse conjunto de esquisitices apresentado pela polícia corroborou para que ele fosse pintado como um ser do mal. E, por nove anos, falaram isso. É complicado fazer as pessoas mudarem de ideia durante o júri.
Brasileiros – O fato de seu filho ser advogado de defesa do réu não interfere no seu julgamento?
I.C. – Não julgo ninguém, por isso me interessam as provas. Se há prova, se há dúvida, o que quer dizer que não há prova suficiente, ou se não há prova de inocência ou culpa. No caso Nardoni, aconteceu a mesma coisa. Entrei no caso pela acusação depois de convencida de que eles são culpados, de que eles estavam no apartamento quando a menina caiu da janela. Essa não é a primeira vez que ajudo Marcelo ou Thiago, que têm experiência em júri. Já ajudei outros advogados e também não ajudei. Tem um promotor, não digo quem, que foi um problema. Ele não usou uma prova para não perder. Se eu não acreditasse na inocência de Gil, daria a meu filho outro tipo de apoio. Mas trabalhei 20 meses ao lado dessa equipe porque estou convencida pela prova, e não pelo amor que tenho por Marcelo. Ele também não me cobraria essa fatura.
Brasileiros – O que sentiu ao trabalhar com seu filho?
I.C. – Éramos uma equipe. Sinto orgulho, esse menino voou. Mas estava muito concentrada no trabalho e tenho com ele uma parceria ajustada.
Brasileiros – Qual o momento mais complicado desse trabalho?
I.C. – O resultado do júri. Quase sempre, existe uma polidez, um cuidado humano. Assisti a isso no júri de Suzane Richthofen e dos Nardoni, que também foram condenações. Até nesses, que foram de enorme repercussão, o promotor esperou que o advogado de defesa contasse aos réus o resultado. Vi o ataque que Suzane teve. Depois é que se espalha a notícia. Mas, no júri do Gil Rugai, nem sei que palavra usar… O promotor comemorou antes de Marcelo ou Thiago falarem com o réu.
Brasileiros – É o primeiro caso em que você atua na defesa?
I.C. – Não exatamente, mas nunca tinha sido confrontada com essa questão. Muitos advogados já me perguntaram isso, se eu conseguiria defender um cara que, por exemplo, confessasse o crime. No caso do Gil, tive de responder isso para mim mesma e digo mais: eu ainda ajudaria se tivesse dúvida razoável. Mas é diferente ter dúvida e convencimento de inocência. Nós temos as provas. Por isso falo que o meu comprometimento nesse caso foi proporcional ao meu convencimento de que Gil é inocente.
Brasileiros – Já imaginou o contrário: estar em júri em que Marcelo defende um serial killer que você ajudou a prender?
I.C. – Ainda bem que não foi isso.
Brasileiros – Dá para dizer que você mudou muito nesses anos?
I.C. – Mudei muito de conceitos. Eu tinha uma ideia mais idealizada da Justiça, da polícia e da perícia. Fui entrando, humanizando, vendo acertos e erros, analisando, estudando, amadurecendo. Quantas vezes falei que um serial killer só parava de matar quando estivesse preso ou morto? Uma centena. Hoje fico quieta. Pedrinho Matador foi solto, ficou dois anos e meio como caseiro em um sítio e não voltou a matar. Não tenho mais certezas, garantias. Tem outros que nunca mataram e, de repente, se envolvem em confusão. O próprio caso Bruno, em que nove pessoas são acusadas, gente que nenhum de nós diria que teria matado. E Pedrinho descobriu que a liberdade pode ser boa. O interessante é que ele não se convence que matar é errado, mas se convence de que é muito bom não ir para a cadeia.
Brasileiros – O caso Bruno é um assassinato sem corpo. Como resolve?
I.C. – É complicado e muito me preocupou em termos de condenações. Quando falaram que deram o corpo para ser devorado por cães, fiz uma pesquisa com um criador de rottweiler e ele me disse ser impossível desaparecer com 50 quilos sem deixar nada. Cães farejadores poderiam ser usados para ajudar na investigação. Falei com a polícia de Minas, mas não aceitaram a proposta. No blog do canal Investigação Discovery, que colaboro semanalmente, ainda quero escrever sobre esse caso. Vai ser uma fábula real, um texto do que poderia ter sido o crime.
Brasileiros – E sobre a lentidão da Justiça? O julgamento do massacre do Carandiru, por exemplo, aconteceu depois de 20 anos.
I.C. – Fico muito aflita porque o discurso hoje é de muita intolerância, punição. A lentidão não agrada a ninguém. O Carandiru nem júri popular tinha tido, Ubiratan já morreu. As defesas levam anos. Fico imaginando esses três absolvidos no caso do Carandiru que, durante 20 anos, viveram como acusados. É um pesadelo tenebroso. Durante esse tempo todo, eles falaram o que para os filhos? Que um dia a Justiça iria provar que eram inocentes?
Brasileiros – Vivemos a banalização da violência?
I.C. – Os tribunais, assim como a mídia, refletem a sociedade. O problema não está nem nos tribunais nem na mídia. Está na sociedade, que é punitiva, acusatória. Já fui a lugares de crime que tem pipoqueiro e mães com crianças levadas pelas mãos. Tudo para dar uma espiadinha no morto. Há também banalização dos crimes e raras discussões, documentários rasos. Hoje, crime é entretenimento, não mais caso de polícia.
Brasileiros – Afinal, como uma mulher bem nascida, mãe de dois filhos em um casamento estável, abandona a rotina de administradora para se tornar especialista em crimes?
I.C. – Sempre pesquisei histórias policiais, crimes não resolvidos. Era uma espécie de hobby. Quando apareceu a internet, passei a vasculhar nos arquivos da Suprema Corte Americana, da Scotland Yard, da corte australiana, levantado artigos de jornais, revistas e, de repente, passei a ter acesso a muitas histórias ocorridas lá fora e nada do Brasil. Perto dos 40 anos, falei para o Jacques que precisava tirar um ano sabático para escrever um livro. Já tinha um bom material e achei que isso já valeria um livro. Enquanto escrevia, fiz uma espécie de estágio na polícia científica, na perícia. Depois, passei a acompanhar a perícia de homicídios. O ano sabático já tinha virado quase três. Eu queria aprender mais, só que não tinha ideia que ia dar no que deu.
Brasileiros – O que quer dizer?
I.C. – Foi por causa do primeiro livro que entrei em um caso real no Maranhão. Era de um criminoso em série de meninos. Ele os matava e os emasculava. Um horror. Havia uma força-tarefa entre a Polícia Civil e a Federal para encontrarem o criminoso. Um policial que tinha lido o Louco ou Cruel? me indicou para o delegado, e eu aceitei.
Brasileiros – Que crime foi esse?
I.C. – Primeiro 12 meninos morrem no Pará e depois outros 30 no Maranhão, em circunstâncias semelhantes. Foram feitas investigações diferentes em cada um dos estados. Mas, em dezembro de 2003, pegaram Francisco das Chagas Rodrigues de Britto, a polícia encontrou corpos enterrados na sala do sujeito. Ele falou comigo, não com a polícia, e confessou tudo, inclusive os casos do Pará. Não é uma confissão como aquelas que se vê em filmes. Ninguém me chama pra bater, sou civil. Francisco não lembra o nome das vítimas, mas descreve até a roupa que cada uma usava, o que ele conversou com elas, detalhes sórdidos. Ele foi preso e os suspeitos do Maranhão, liberados. Mas no Pará, dos cinco caras presos, um foi absolvido, um morreu e um está foragido. Os outros dois, que são médicos, continuam presos.
Brasileiros – E depois dessa primeira investigação?
I.C. – Apareceram outros casos. Saí do anonimato absoluto para o mundo do crime em série. Fui trabalhar ao lado da polícia de Minas no caso que ficou conhecido como O Monstro da Ceasa. Ganhei até medalha.
Brasileiros – Monstro da Ceasa?
I.C. – Não conhece? Em dezembro de 2005, um menino é assassinado. Em janeiro e março do ano seguinte, mais duas mortes de adolescentes. Entrei na investigação, em abril de 2006, para fazer uma análise criminalística e criminológica do caso. Obviamente, o criminoso era um cara insuspeito, conhecido da vizinhança, periferia de Belém. O ataque era assim: ele pedia para as vítimas acompanhá-lo até o banco a fim de cuidarem de sua bicicleta. Pagava R$ 10 pelo “serviço”. Imagina, a lan house do bairro, divertimento da garotada, cobrava R$ 1 a hora. Dez reais era muito. Depois da terceira vítima, a polícia fez um trabalho incrível nas escolas para inibir o criminoso, contando para os meninos como era a abordagem, essas coisas. O pior mundo seria esse cara continuar matando.
Brasileiros – Pegaram o sujeito?
I.C. – Sim, André Barboza. Mas ele deu trabalho. As três vítimas foram meninos de 14 anos. Quando começou a ser feito o trabalho preventivo nas escolas, ele começou a atuar em outro bairro e tentou pegar um menino de 11. Então, ele se atrapalhou. Esse garoto, o J., já tinha ouvido falar dele e saiu vivo. Para mim, ele é um herói. Conseguiu fugir e pedir ajuda. E, dessa vez, André deixou um rasto porque perdeu o celular. Além disso, J. o reconheceu. André matava com o cadarço do tênis. No estrado, havia vários nós com o mesmo que ele dava em suas vítimas.
A Dama e alguns… |
Francisco das Chagas Rodrigues de Brito é o primeiro caso real de Ilana Casoy. Ele, ex-mecânico, foi condenado pela morte de 30 meninos no Maranhão, todos emasculadas. Por isso o caso ficou conhecido como Os Meninos Emasculados do Maranhão. O episódio foi elucidado em 2004. Preso como suspeito, Chagas acabou confessando os crimes. Duas ossadas foram encontradas no terreno da casa em que ele morava. Crimes semelhantes aconteceram no Pará. Para Ilana, trata-se do mesmo criminoso, mas a Justiça do Pará não entende assim, e duas pessoas continuam presas por esses homicídios. |
André Barboza – O Monstro da Ceasa. Ele é acusado de assassinar três meninos em uma mata nas proximidades da Ceasa de Belém, no Pará. Segundo a polícia, ele teria dito que “ouvia vozes que o ordenavam a fazer aquilo e perdia os sentidos e, quando voltava, já tinha cometido os assassinatos”. Não conheceu o pai e com a mãe teve pouco contato. André Barboza serviu o Exército em 1999 e foi no ambiente militar que teria aprendido técnicas de luta que usou para imobilizar suas vítimas. Ele matava os meninos com o cadarço do tênis. |
Marcos Trigueiro – Maníaco de Contagem. Nasceu em Brasília de Minas (MG), em 1979. Ex-motorista, é acusado de ser um assassino em série de mulheres. Agia em Contagem e Belo Horizonte. Marcos estuprou e assassinou cinco mulheres entre 17 de abril de 2009 e 26 de fevereiro de 2010, quando foi detido pela Polícia Civil. Os policiais chegaram até ele rastreando os celulares das vítimas. Marcos, que é pai de cinco filhos, confessou a autoria das mortes. |
Leandro Basílio Rodrigues – Maníaco de Guarulhos. Na madrugada de 27 de agosto de 2008, foi preso um rapaz de19 anos, que era procurado por ser o suspeito de ter violentado duas mulheres. Mas, na mesma noite, ele acabou confessando ter atacado mais de 50. Em todos os casos, o criminoso agia de forma semelhante – estrangulando e violentando as vítimas. Os crimes aconteceram entre 2007 e 2008. Ele responde ainda por mais 13 crimes: tráfico, roubo e estupro. |
… de seus criminosos |
Pedro Rodrigues Filho – Pedrinho Matador . Ele nasceu em Santa Rita do Sapucaí, Minas Gerais, em 1954. Perseguia e matava quem considerava “mau”. Tinha 14 anos quando matou pela primeira vez. Hoje, acumula mais de cem homicídios, incluindo o do próprio pai, que matou a mulher com 21 golpes de facão. Pedro Rodrigues não respondeu por todos os crimes, mas já foi condenado há mais de 400 anos de prisão – a maior pena já aplicada no Brasil. Jurado de morte por companheiros de prisão, Pedrinho é fenômeno de sobrevivência no regime carcerário. Depois de 34 anos de prisão, foi solto em abril de 2007. Arrumou emprego de caseiro em um sítio em Camboriú (SC), onde permaneceu durante mais de dois anos. No entanto, em 2011 ele foi preso novamente. |
Marcelo Costa de Andrade – O Vampiro de Niterói . Foi preso pelo assassinato de 14 meninos nas redondezas de Itaboraí, cerca de 30 km de Niterói (RJ), em 1991. Marcelo viveu parte da infância na Rocinha, filho de uma família desestruturada. Estudou em colégio interno, mas aos 14 anos deixou a instituição e passou a se prostituir. Aos 16, foi morar com o homossexual Antônio Batista Freire, que começou a sustentá-lo e o apresentou à Igreja Universal do Reino de Deus. Mesmo assim, Marcelo continuava a se prostituir e acabou se separando de Freire. Voltou para a casa da família e começou a trabalhar formalmente. Manteve sua frequência aos cultos. Segundo ele, foi num desses cultos que ouviu que crianças mortas vão para o céu. |
Francisco Costa Rocha – Chico Picadinho . Nasceu em Vila Velha (ES), em 1942. Filho de pai severo, a mãe teve vários amantes. O primeiro assassinato de Francisco, seguido de esquartejamento, aconteceu em 1966. Levou de três a quatro horas até desmembrar a vítima e colocá-la dentro de uma sacola. Foi preso e, após liberado por bom comportamento, voltou a cometer outro esquartejamento, dez anos depois. Dessa vez, destrinchou a vítima com cuidado maior e tentou jogar alguns pedaços pelo vaso sanitário. Francisco era estudante de Direito na época dos crimes. Hoje, passa seus dias na prisão praticando pintura. |
Trechos do livro Serial Killers – Made in Brazil |
Entrevistar Pedro foi uma experiência única. Ele tem um jeito onomatopeico de contar seus crimes. Faz a trilha sonora de todas as suas ações e temos a exata impressão de “assistir” os acontecimentos. A riqueza de detalhes anatômicos que relata faz jus a qualquer legista. A falta de sentimento que demonstra dá arrepios. É como uma criança contando suas travessuras, não fosse o teor das histórias que conta. Adora os mistérios de Sidney Sheldon, conta vantagens de sua forma física, mostra com deleite cada tatuagem desenhada em seu corpo. Autodenomina-se um vingador que jamais matou o que ele mesmo chama de pai de família. Roubou de traficantes para vender a traficantes e só matou quem não prestava. Se sente o próprio Robin Hood. |
Marcelo entrou num modo estranho, foi como se atingíssemos seu núcleo de perversidade. Falava olhando de forma fixa nos meus olhos e meu sofrimento lhe dava extremo prazer. Lutei contra as lágrimas para não estimulá-lo, mas elas escorriam por minhas faces sem controle, à revelia. E, quanto mais eu chorava, mais Marcelo falava. Não aguentamos por muito tempo. Para este indivíduo, no seu entendimento confuso e sem sentimentos, falar sobre seus atos mais chocantes “agrada mais” o interlocutor, afinal, desde que foi preso, é isso que se espera dele. Este discurso não faz bem a ninguém, nem a quem o entrevista, nem ao doente ali internado. |
Fui preparada para conversar com o famoso Chico Picadinho, autor de dois crimes e reconhecido pela mídia como cruel assassino. Esperava encontrar um monstro sinistro. Não estava de forma alguma preparada para o que encontrei: um ser humano que tem absoluta consciência de suas limitações, que não entende o descontrole de seus atos, que busca uma explicação para eles e é dono de um intelecto preservado. |
Brasileiros – Você não tem medo dos criminosos?
I.C. – Tenho pavor. Um dia, cheguei ao hotel, e toda vez era um hotel diferente, e a recepção não achava a chave do meu quarto, número 13. Queriam me dar a chave reserva, mas não. Telefonei imediatamente para a polícia, que me dava cobertura, claro, e vasculhou o quarto inteiro. Não encontrou nada, mas mudei de hotel. É tenso, tenho medo, sim. Mas acredito que posso fazer alguma diferença com o meu saber e isso é muito importante. Nesse caso do André Barboza, teve ainda um agravante: um maluco começou a me mandar uns e-mails estranhos, ele nem imagina que virou o suspeito número 1. Ele abria e fechava as mensagens em latim. Era só um maluco, mas até chegar a isso, o medo corre solto. Também morro de medo das encarnações do bem. Os assassinos que entrevisto sabem quem eu sou e eu seu quem eles são. Não tem nada de boazinha, eles sabem que ajudo a polícia, está todo mundo sabendo quem é quem. De repente, vejo pessoas que não têm maldade, lutam pelo bem, são corretas, não sentem inveja.
Brasileiros – Você mora em uma casa na rua, está certo que bem segura, com diversos equipamentos…
I.C. – Estou muito protegida, sim. Recebo e-mails de ameaças, faço BO. E é lógico que sou da comissão de segurança do bairro onde moro. Não basta saber quem está fazendo, mas como está fazendo. Teve um assalto na região e o guarda também foi vítima. Sabe por quê? Porque estava perto demais do morador.
Brasileiros – Você ficou famosa, as pessoas até querem tirar foto com você para postar no Facebook…
I.C. – Me explica isso porque não entendo. O Face é uma patrulha. Recebo um monte de pedidos de amizade, alguns nem aceito e ainda bem que existe esse resto de arbítrio. Outro dia, participei de um congresso forense e tirei milhares de fotos com as pessoas. Mas me pergunto: por quê? Quando a pessoa diz que um dos meus livros é o livro dela de cabeceira, fico assustada. Acho meu trabalho superinteressante, mas nem eu leio os meus livros à noite.
Brasileiros – Quais são seus livros de cabeceira?
I.C. – Estou numa fase Vinicius de Moraes. Outro dia, até postei uma poesia dele. Além de Vinicius, meus autores de cabeceira são Pablo Neruda, Jorge Luiz Borges e sudoku, que adoro, é um exercício que esvazia a cabeça. Leio muita poesia, que é algo de que gosto. Curto Álvaro de Campos e o próprio Fernando Pessoa.
Brasileiros – Além dos seus livros, quais outros não leva para a cama?
I.C. – De jeito nenhum, levo Stephen King, livros de autoajuda e trabalho.
Brasileiros – Assiste a séries?
I.C. – Já assisti a todas, mas estou enjoada. Gosto de televisão, embora eu já tenha gostado mais. Mas temos recursos bacanas, como pinçar capítulos, ver o que se quer ver na hora que dá. Adoro as novelas da Gloria Perez, ela é minha amiga, mas não é só por isso que acompanho e admiro o trabalho dela. As novelas de Gloria são folhetins, o bom é o bom, o mal é o mal. É saudável, para mim, assistir ao caminho do resultado que já sei que vai ter.
Brasileiros – Quais são seus filmes prediletos?
I.C. – Além da Vida, Anna Karenina, O Violinista no Telhado eu amo. Mas também gosto de Noviça Rebelde, Os Miseráveis, O Artista… Não é Hannibal. Eu vejo isso na vida real. Nenhuma ficção ganha da vida real.
Brasileiros – Como você aguenta?
I.C. – Às vezes, paro para vomitar, para chorar. Há horas que tenho de respirar para não subir em cima do criminoso. Para ser sincera, não tenho mais vontade entrevistar assassinos para escrever sobre eles. Ajudar a interrogar tem um objetivo claro: pegar o desgraçado. Acompanhei um caso em Contagem, Minas Gerais, de um cara que tinha estuprado e matado cinco mulheres. Chegou-se a um suspeito e fui interrogá-lo. O cara, claro, negava tudo. Tivemos uma longa conversa, eu queria saber o que ele lia, as diversões… Parecia um papinho bobo. Uma hora, perguntei com quantas mulheres ele já tinha transado. Ficou calado, meio desconfiado, e insisti: Mais de cinco? Mais de dez? Mais de cem? Aí, ele falou com orgulho: “Mais de cem”. A pergunta seguinte foi com quantas dessas ele fez sexo mais de uma vez. Sabe qual foi a resposta? Nenhuma.
Brasileiros – Você faz terapia?
I.C. – Faço análise desde os 13 anos. Psicodrama, Freud. Meus pais eram ultramodernos e terapia em casa era primeira necessidade. Há 8, 9 anos que faço terapia lacaniana.
Brasileiros – Você tem pesadelos?
I.C. – Pouco. Mas já passei noite sem dormir. Por outro lado, aprendi a desenvolver a resiliência, como uma mola. Entro em buracos, mas volto rapidamente para o meu normal.
Brasileiros – O que é o normal?
I.C. – É fazer tudo o que faço, mas também ficar com a família, ir ao cinema, à praia, que adoro.
Brasileiros – Qual é a sua relação com a morte?
I.C. – Íntima e diária.
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