Godard 80 anos: tudo o que em mim pensa está filmando

Houve um tempo em que a janela estava aberta e a porta destrancada. Como sabemos, os irmãos Lumière, afeitos a essa época de incentivo à invenção, criaram o cinematographo: fez-se a luz! Quatro décadas se passaram e, quando parecia que todas as conquistas estavam dadas pela experiência silenciosa da luz, a máquina que gritava luz pôde finalmente falar. Tratava-se do cinema como o conhecemos. “O cinema falado é o grande culpado da transformação”, cantou Noel Rosa.
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Mesmo que pareça tudo certinho e conforme nosso olhar linear, esses 40 anos de manipulação silenciosa da luz são o campo aberto, a terra arada e fértil, ou seja, a experiência da montagem, quer dizer, do não-linear, daquilo que ilude, a mentira (única verdade!) que acreditamos. E assim, vale a metáfora, primeiro veio Deus, os Lumière; depois os profetas, Chaplin, Griffith, Vidor, Eisenstein e Vertov, que acenderam, mostraram caminhos, experimentaram, trabalhadores da terra virgem, primitivos, missionários da pureza. E, em 1941, Cidadão Kane, a grande epístola de Orson Welles, o São Paulo. Daí em diante foram abertos os caminhos, outra cronologia, outra montagem. Os apóstolos vêm depois. Tratamos de um, o único vivo, aquele que carrega no nome dois dos quatro bíblicos que contaram a vida de Jesus: João e Lucas: Jean-Luc Godard completa 80 anos neste 3 de dezembro e, no mesmo dia, estreia na cidade de São Paulo seu último filme, um quase-testamento, Film Socialisme.

Sejamos claros como a tela, a página em branco, que reflete as escrituras do cinema segundo Jean-Luc. Um apóstolo procura dizer sobre a verdade, nesse caso a linguagem, essa coisa feita pelos homens para se comunicar, algo de divino há nisso como o amor de Cristo que pode unir a todos: “Eu começo a considerar a linguagem – e isso me torna muito solitário – como uma coisa que não é para mim, que não é para você tampouco e que está entre os dois”, disse Godard. Mas a única verdade total que um homem reconhece está em si mesmo: “Faço filmes para mostrar imagens de mim mesmo”. O risco está inscrito nas escrituras. “O paraíso perdido é o mundo sem leis. Fazer cinema é conhecer esse mundo do qual podemos rir”. Sempre diretor e roteirista, ele produziu dezenas de longas-metragens, e centenas de vídeos experimentais que imprimem essa busca de revelação da humanidade para si mesma. De Godard para si mesmo. Mas são escrituras modernas porque seu meio de comunicação, o cinema, é uma forma de linguagem fundamentalmente moderna. O papiro do futuro.

E as conquistas de linguagem na era moderna urgem estar conscientes das inovações para com o desenvolvimento desse imenso testamento de um tempo que quer falar somente de si mesmo para se superar finalmente. E Jean-Luc reconhece sua invenção, para que se possa imprimir às escrituras luminosas do cinema, já em seu primeiro filme, Acossado (A Bout de Souffle, 1960): “Como fazer passar suavemente de um plano a outro unindo dois movimentos diferentes ou – o que é mais difícil – passar de um plano em movimento para outro estático”. É preciso ver, e é ainda mais preciso aprender a ver. Godard pode ser compreendido por fases de revelações da película vida: de Acossado até 1968-70, quando forma o Grupo Dziga Vertov (junto a Jean-Pierre Gorin) produzindo cerca de oito filmes em dois anos, sob o signo de Maio de 1968, até Salve-se Quem Puder (A Vida), em 1980, cuja produção considera sua terceira vida no cinema. A humildade de um homem que, realizador de uma produção vastíssima e incansável, reconhece nesta última película, somente sua segunda (ou terceira) invenção para a escritura cinematográfica.

E quando se acha que ele (e tudo) parou, Jean-Luc, apóstolo da escritura moderna, surge com as indagações urgentes da possibilidade de ainda se fazer cinema “A câmera digital vai salvar o cinema?”, pergunta a si mesmo em Nossa Música (2005) e não responde ou cala consentindo. Jean-Luc poderia ter se acomodado no panteão das celebridades cinematográficas, mas não, o risco é sua verdadeira motivação. O que interessa em Godard é o que não é o Godard, o que interessa no cinema é o que não é o cinema, isto é, o que pode ser, o que ainda não é, a própria superação, sua transformação.

Para Glauber Rocha, Godard é “Michelangelo, Bach de nosso tempo”. Rogério Sganzerla escreve que “Go(on)od-art (sic) faz com o cinema moderno o que James Joyce realizou com o romance”. Opinião crítica dos dois maiores diretores, homens de cinema, do Brasil. E em nosso País, este apóstolo franco-suíço de família protestante, promoveu a primeira censura no governo pós-abertura de José Sarney, quando do lançamento do filme Je Vous Salue Marie (1985), sobre a história sagrada de Maria. Fato polêmico que levou o Rei Roberto Carlos a enviar um telegrama ao então presidente parabenizando pela censura do filme que, na sua visão, feria seus dogmas religiosos. Uma resposta feroz de Caetano Veloso veio a ser publicada como artigo na imprensa denunciando “a burrice de Roberto Carlos”, elogiando a obra de Godard e apontando o telegrama de apoio à censura como uma afronta à classe artística.

Se hoje o cinema é a babilônia, o interesse pelo mortal, pela realidade, e o público quer, requer a infame e mesquinha vida-violência, o cinema, segundo Godard, “é a verdade 24 quadros por segundo”. Para ele, é completamente desinteressante a gratuidade bárbara da vida. Não importa a guerra que os homens fazem ou a tortura que é monótona, mas a realidade plástica e sonora que sensibiliza e ressignifica a imagem e o som. Não a imitação do sangue, mas a tinta vermelha manchando a roupa, afinal é preciso que a humanidade percorra o processo, reflita sobre o caso, sobre o tema e, para isso, qualquer enganação desvia o olhar da verdade.

Sua última realização, Film Socialisme, é o testamento de um homem que não se deixou perder em desvios sem-programa. Uma oportunidade de comunhão. Autorreconhecimento. Jean-Luc Godard, o último apóstolo vivo e pagão constrói um filme repleto de escrituras que vêm comprovar na última cena o aqui proferido. Em uma montagem insólita e eisensteiniana ele encerra escrito na tela “Se a lei está errada, a justiça passará por cima”, e, na próxima cena, a tela obrigatória de censura que podemos ver nos DVDs: “FBI é expressamente proibido copiar, etc, etc…”. Film Socialisme. FBI. FIM.

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