Canoas coloridas em bagageiros de carros sinalizam alegria e despertam curiosidade. Sobretudo em bar de cidade pequena. É conversa pra mais de meio metro. Assim foi naquela sexta-feira de abril em que nos encontramos em Buri, para descer o Apiaí-Guaçu. O Eurico, encarregado da logística, não havia preparado nada. No bar se pergunta e no bar se resolve, é o jeito dele.

As pessoas foram se acercando e, lá pelas tantas, um baixinho bigodudo engatou firme na conversa. Queria saber detalhes das canoas e da tralha. Bebia e falava bem, o danado.

A certa altura, sério, olhou para todos e disse que nos receberia em seu rancho, rio abaixo. Graças a Deus podia nos oferecer pouso. Graças a Deus podia nos oferecer um churrasco, disse elevando o olhar. Foi falando do rancho, dos petiscos e das bebidas. O Graças a Deus era a argamassa do seu discurso. Fiquei curioso e inquieto. No dia seguinte, ele entornou todas e entregou o leite.  

Quando jovem, era professor, casado e com cinco filhos para criar. Apertado de dinheiro, atendeu o convite de um primo para coordenar atividade de recepção, ocultação e distribuição de mercadorias de procedência estrangeira, acompanhadas de documentação sabidamente falsa. Mais precisamente, contrabando de câmeras fotográficas para grande rede nacional. Minha contribuição à arte fotográfica, falou de esguelha. Por 15 anos, conduziu a operação em pequeno aeroporto de terra.

Era coisa de cachorro grande mesmo. Um esquemão engraxado desde baixo até lá em cima. Qualquer derrapada e ele, laranja, pegaria quatro anos de cana: artigo 334 do Código Penal. Preso, preso mesmo, não ficaria. Mas, e sua reputação? Tinha família, filhos, amigos e parentes. 

Aposentou-se da tramoia em 1998, imaculado. Entendi, assim, o Graças a Deus.

Descuidado, perguntei como poderia Deus protegê-lo, digamos, no crime contra toda sociedade. Ele disse que era bobagem isso de um Deus único que engessa tudo e a todos. Ele era chegado num politeísmo a la grecque: muitos deuses, especializados, mais próximos e participativos. Hoje, o mundo é mais personalizado e complexo, disse. E tem mais, é preciso atualizar o Olimpo! Veja lá se Atena, Apolo, Eros, Ares, essa turma antiga, dá conta do recado, das particularidades de cada um? Hermes ainda ajuda um contrabando, mas não é lá estas coisas. Eu tenho o meu próprio, disse olhando outra vez para cima.

Assim comprou sua casa, criou seus filhos e amparou seus velhos. Pode construir seu rancho à beira do rio, para receber amigos e oferecer sua cama. Essas palavras me comoveram porque o Eurico, com as costas estouradas, iria dormir na cama dele. 

Ele perguntou se eu já não havia comprado um DVDzinho pirata, um uisquezinho paraguaio, coisa assim. É tudo Artigo 334, disse acumpliciado. Cansado, agradeci por tudo e fui armar minha barraca. O pessoal ficou lá proseando até mais tarde.

Deixei de lado minhas suposições cotidianas e dormi encantado com esse politeísmo contemporâneo, muito mais especializado, bem personalizado. Uma teologia que acolhe, resolve e acalanta.


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