Lívia é dessas brasileiras que não passam à toa, imponente e simples, cheia de brilho, beleza e brio intelectual. Sua poesia é um dardo imenso que nos atinge com a força da verdade e uma lírica azul. Um de seus poemas a define melhor:
“Às vezes é um vento mais forte/e ele vem de longe, tangendo colinas/E as tardes se emancipam de mim/como se fosses feitas de puro desejo./Um azul intenso devora meus dedos/e os olhos, inteiros, são oceano e vão/e estou perdida: não há portas/mas as chaves persistem/pendendo de minhas mãos…”
(“Sometimes”, in outrasaguas.blogspot.com.br)
Sua lança poética de brio negro sacode-nos e alveja nossas máscaras de pais ditos de branco, e na verdade somos negros mascarados de uma brancura que não diz nada nem revela-nos; apenas fere-nos:
“Contra o genocídio da juventude negra”
A bala rasga a pele do menino preto,
E é um chicote, açoitando por dentro
A bala abre o peito do menino preto,
O que ela procura no coração triste de medo
A bala sangra a vida do menino preto
E no seu sangue se banham muitas mãos.
A bala silencia a voz de mais um menino preto
E há uma legião de fantasmas pretos, calados e sem consolo.
A bala condena à morte o menino preto
E o tribunal é de rua, e anda fardado.
A bala estraçalha a família do menino preto:
Olhos à deriva, lacrimosos, numa outra travessia negreira.
A bala nunca dorme, cochila
engatilhada
Ela fareja os meninos pretos
Até os que ainda nem nasceram.”
(“À Bala”, inédito)
Lívia Natália, poeta baiana, doutora em Estudos Literários e professora de Teoria de Literatura na UFBA. Afora suas atividades acadêmicas, ela produz oficinas de criação literária. Ela tem dois livros: Água Negra (2011), premiado pelo Concurso Literário do Banco Capital, e Correntezas e Outros Estudos Marinhos (2015). O poema Quadrilha foi colocado em outdoors espalhados pela cidade de Ilhéus, no sul da Bahia, como parte do projeto Poesia nas Ruas. Causou polêmica, tendo sido removido em janeiro sob a acusação de agressão à polícia. (O Poesia nas Ruas tem também poemas de Nelson Maca, Alex Simões e Mel Adún.)
Em rede social diz a poeta: “No centro da censura, meu poema. E ainda dizem que estamos em 2016.” Sua declaração faz pensar no Foucault de A Ordem do Discurso: “(…) em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes, dominar seu conhecimento aleatório (…)”.
“Maria não amava João.
Apenas idolatrava seus pés escuros.
Quando João morreu,
assassinado pela PM,
Maria guardou todos os seus sapatos.”
(“Quadrilha”, in Correntezas
e Outros Estudos Marinhos)
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