O que o pirá, peixe muito conhecido em Minas Gerais, tem a ver com a solução de problemas da saúde pública e a salvação do planeta? A explicação para essa relação aparentemente desconexa passa por religião, política, questões existenciais, filosofia, literatura e medicina. Que o diga Apolo Heringer Lisboa, 65 anos, um médico sanitarista nascido no Rio de Janeiro, mas mineiro de coração, pois foi criado em Belo Horizonte e em Salinas, cidade do norte de Minas, famosa por produzir algumas das melhores cachaças do País.
Professor titular da disciplina Internato em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apesar de se considerar uma personalidade complexa, Lisboa acredita que a melhoria da qualidade ambiental e das condições de saúde das pessoas passa mais pelos rios do que pelos postos de saúde, mais pela prevenção que pela cura. É aí que entra o pirá, pois os peixes são os melhores bioindicadores da qualidade ambiental e a água tem tudo a ver com isso, pois é para lá que vai a maioria dos resíduos das cidades, adoecendo populações inteiras, especialmente nas periferias.
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Atuando na coordenação do Projeto Manuelzão (leia box) desde que ele foi criado, há 11 anos, Lisboa e sua equipe da UFMG lutam para despoluir o Rio das Velhas. O objetivo é fazer com que, até 2010, se possa navegar, nadar e pescar no trecho que passa na região metropolitana de Belo Horizonte, onde são lançados esgotos produzidos por mais de três milhões de pessoas e milhares de indústrias e empresas. O Velhas é considerado um dos três rios mais poluídos do País e é, para Belo Horizonte, como o Tietê é para São Paulo.
Lisboa diz que, até chegar à implantação do Manuelzão, o caminho foi longo e repleto de crises. “Após a luta armada contra a ditadura e os anos de exílio no Chile, Argentina e Argélia, ajudei a fundar o PT em Minas. Mas tempos depois, descontente com o rumo que as coisas tomaram, abandonei a política. Essa foi a terceira e a minha maior crise existencial, que me deixou completamente sem perspectiva na vida. A primeira foi na adolescência, quando rompi a camisa-de-força da religião evangélica. A segunda quando deixei de acreditar no comunismo.”
Após quase um ano de um exílio voluntário, profundamente deprimido e vivendo sozinho num pequeno apartamento, chegou até a pensar em suicídio, pois “a bateria não recarregava nunca”. Apolo Lisboa diz que, nessa época, levava a vida na maior simplicidade, dormindo cedo, cozinhando a própria comida, lendo e caminhando para liberar endorfinas. Foi quando iniciou o que chama de auto-análise, repassando sua vida em cartazes afixados nas paredes e numerados de 1943 – ano em que nasceu – a 1987. Conta que registrou detalhes como o dia em que tomou a primeira surra do pai, a primeira masturbação, a morte de Vargas, a época em que morou com Carlos Lamarca, a primeira prisão após o golpe de 1964 e vários outros fatos que marcaram sua vida.
“Isso me permitiu voltar à vida e reconstruir tudo a partir do zero. Serviu até mesmo na prova para obter o cargo de professor-adjunto na Faculdade de Medicina da UFMG”, disse. Quando estava elaborando a tese de mestrado sobre o cólera, nas suas andanças pelo Peru, Amazônia e Nordeste, disse que refletiu sobre muitas das suas inquietações, entre elas a desconfiança na democracia e em partidos políticos. Mas, por outro lado, reforçou a crença na liberdade e na justiça social e passou a pensar no que poderia fazer aproveitando sua experiência de luta para mobilizar e transformar a sociedade.
Foi quando imaginou uma forma de agir reduzindo o mundo a uma dimensão em que se pudesse efetivamente preservar um bem tão ameaçado como é o meio ambiente. Tateando para saber por onde começar, lhe ocorreu que se o povo tivesse boas condições de saneamento básico isso se refletiria na melhoria da sua qualidade de vida. A água, então, tornou-se para ele a referência metodológica de que precisava. Isso inspirou a criação do Projeto Manuelzão, tendo como área de atuação a bacia do Rio das Velhas, que pertence à bacia do Rio São Francisco. Contribuíram para essa escolha as lembranças de infância do menino que viajava pelo interior de Minas a bordo do avião de um pastor presbiteriano americano e via do alto as curvas do Velhas.
Voltando ao pirá, Apolo Lisboa diz que os peixes, além de indicadores de qualidade da água, permitem mobilizar as pessoas em torno dele por ser um bicho fotogênico, amado e carismático. Continua dizendo que, ao se propor a despoluir um rio, o Manuelzão procura salvar valores universais, em contraponto ao desenvolvimento econômico sem sustentabilidade, que faz com que as corporações se enriqueçam às custas do serviço ambiental prestado pela natureza, enviando a conta para ser paga pelo povo.
“Apesar de restrito à bacia hidrográfica do Rio das Velhas, o projeto criou uma linguagem que é universal e pretende ser uma referência em termos de recuperação ambiental, assim como hoje são os rios Sena, na França, e Tâmisa, na Inglaterra. Para isso, não se pode ter uma visão antropocêntrica do mundo, temos de ser biocêntricos, considerando que a humanidade, a flora e a fauna são interdependentes e precisam estar em equilíbrio. É preciso transformar a mentalidade cultural do ser humano em nível global, por exemplo, reduzindo o consumo de proteína animal, cuja produção causa impactos devastadores no planeta através da emissão de gases que aumentam o efeito estufa.”
Mesmo tendo o Projeto Manuelzão apoio de diversas empresas, Lisboa afirma que as noções de sustentabilidade defendidas pelas corporações são “balela” na sua maioria, pois o desenvolvimento econômico é a grande ameaça ao meio ambiente. “A economia é forte, mas não tem juízo, precisa ser governada”, diz. Essa aparente contradição ele justifica com uma postura independente em relação aos patrocinadores, que não escapam de críticas quando merecem. Foi assim, recentemente, quando estatais mineiras que atuam na área de energia e saneamento foram denunciadas publicamente por estarem poluindo o Rio das Velhas. “O Projeto Manuelzão é respeitado porque critica, mas também apóia iniciativas positivas dos seus patrocinadores, quando é o caso. Volta e meia, o governador Aécio Neves me chama para trocar idéias, ouvir opiniões, pois políticos não gostam de puxa-sacos. Dessas conversas é que surgiu a iniciativa de tornar o Manuelzão um dos projetos estruturadores do governo de Minas na área ambiental, com o estado assumindo uma iniciativa da sociedade civil, e saiu o trato de nós dois nadarmos no Rio das Velhas em 2010.”
Sempre que tem oportunidade, Apolo Lisboa procura sensibilizar políticos e empresários com suas idéias e espalhar a genética do Manuelzão. Numa delas, em conversa com o presidente da Vale, a gigante multinacional brasileira da área de mineração, Roger Agnelli, tentou convencê-lo de que a empresa poderia dar uma contribuição inestimável para a sustentabilidade do planeta se atuasse de forma consistente e abrangente em defesa do meio ambiente nos países onde tem negócios, começando pelo próprio Brasil.
Os resultados começam a aparecer. Como efeito da maior oxigenação das águas, pela redução da poluição e da melhora da capacidade de recuperação do rio, já foi detectado que os peixes subiram cerca de 300 quilômetros a partir da barra do Guacuí, ponto onde o Velhas deságua no São Francisco. Hoje no município de Corinto, ao norte de BH, já se pode pescar novamente e na cidade de Lagoa Santa, próximo dali, o fato está sendo chamado de “milagre da multiplicação dos peixes”, afirma o coordenador do projeto, acrescentando que já houve a depuração de cerca de 60% do rio, mesmo sendo ainda necessário realizar o trabalho de desinfecção.
Apesar das boas notícias, Apolo Lisboa ensaia retirar-se da frente do Manuelzão. Para ele, sua saída é essencial para que o projeto se transforme e possa espalhar seu DNA em outras iniciativas ou em outros lugares. “É como um pai, que tem sua carga genética perpetuada através dos seus filhos. O Projeto Manuelzão, na sua forma atual, tem de acabar para não morrer por entropismo, pela degeneração dos seus sistemas. Se ele é bom, as idéias serão disseminadas e reproduzidas e isso é o que vai garantir a continuidade da sua mensagem, da bacia do Rio das Velhas para a bacia do mundo”, concluiu.
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Quem foi Manuelzão
Um velho sertanejo de prosa agradável, sempre disposto a receber uma visita com bom humor e contar causos dos mais peculiares e interessantes. Essas são algumas das características que marcaram a personalidade de Manuel Nardi, que inspirou o escritor mineiro João Guimarães Rosa a criar um de seus mais famosos personagens: Manuelzão. A sabedoria do vaqueiro e sua preocupação com o meio ambiente traduzem a causa do projeto, batizado com o seu nome. Nascido em 1904, em Dom Silvério, cidade na Zona da Mata mineira, Manuel Nardi passou quase todos os seus 93 anos no sertão mineiro. Ficou órfão de pai quando ainda era criança e também foi cedo que saiu de casa. O primeiro emprego foi como cozinheiro de tropa, o que o levou a conhecer bem o interior de Minas Gerais. Manuelzão encantava com sua simplicidade e franqueza. E, mesmo depois de se aposentar como vaqueiro, continuou figura conhecida no sertão mineiro. Em 1952, Manuelzão conheceu Guimarães Rosa, que já era consagrado pelo livro Sagarana. Naquela época, era capataz das boiadas do fazendeiro Chico Moreira, primo do Guimarães. O encontro entre o vaqueiro e o escritor se deu quando Guimarães decidiu acompanhar uma viagem da boiada do primo. Daqueles dez dias pelo sertão de Minas, resultariam dois de seus livros mais importantes: Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile, livro de contos e novelas que depois foi dividido em três volumes – Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão.
Aquele encontro também foi valioso para Manuelzão: “Se eu não conheço ele (Guimarães Rosa), hoje estava um velho encravado. Ninguém ia lembrar de mim”, dizia o vaqueiro.
Manuel Nardi morreu em 1998, um ano após o surgimento do Projeto Manuelzão. A sua história e experiência mantêm viva uma época em que o homem e a natureza não conviviam com tantos conflitos. Assim como na literatura de Guimarães Rosa, que busca preservar a vida e a linguagem sertaneja, o Projeto Manuelzão luta por preservar não apenas o sertão, mas toda a bacia do Rio das Velhas.
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