É guerra, é festa

Os cavalos já se encontram perfilados. Entre as íngremes colinas banhadas pelo Rio Corumbá, em Goiás, 24 cavaleiros estão a postos. Resistem bravamente ao calor do Cerrado, na época mais seca do ano, para reviver uma antiga peleja de tempos medievais. Senhoras e senhores, vão começar as cavalhadas. Do lado poente, estão os soldados cristãos de Carlos Magno, o rei dos francos, imperador dos romanos. Vestidos de azul, trazem como insígnias cálices, hóstias, parreiras e cruzes bordadas de prata. Do lado nascente, vemos os 12 guerreiros mouros comandados por Segardo, o senhor do meio-sol, da meia-lua e de todo o Mar Vermelho. Borboletas, flores, estrelas, luas, passarinhos dourados e imensos corações espelhados adornam suas vestimentas escarlates.

A pequena Corumbá de Goiás, a 105 quilômetros de Goiânia, mobiliza-se para a realização da festa de origem ibérica. A encenação da disputa entre mouros e cristãos, que termina sempre com a rendição dos mouros, foi trazida para a cidade em 1750, logo depois de implantada em Portugal pela rainha Isabel. A esposa do rei trovador dom Diniz inseriu a peça nas atividades devotadas ao Divino Espírito Santo, cumpridas exatamente 50 dias após a Páscoa.
[nggallery id=15643]

Essa data é até hoje muito reverenciada em terras goianas. Inclusive com vários outros festejos agregados, como folias e congadas. Em Corumbá de Goiás, no entanto, desde 1980, as cavalhadas são realizadas por volta do dia 8 de setembro (a data é flexível) e devotadas a Nossa Senhora da Penha de França, padroeira da cidade. Um dos fatores apontados para a mudança seria a concorrência com a vizinha Pirenópolis, cujas cavalhadas ficaram muito famosas e, segundo os corumbaenses, ganharam conotação excessivamente turística, perdendo a essência popular.

Popular ou turística, realizada em junho ou setembro, todas as cavalhadas têm uma mesma fonte de inspiração: a “Batalha de Carlos Magno e os 12 Pares de França”, relatada na peça medieval conhecida como Canção de Rolando, que conta as investidas do rei franco contra os sarracenos no século VIII. Embora Carlos Magno não tenha ganho essa guerra – o domínio árabe só terminaria 700 anos depois -, o relato fantasioso da Canção foi usado como propaganda do cristianismo durante a Idade Média, incentivando a conquista de novas terras e o repúdio aos mouros.

Nesse campo de batalhas no coração do Brasil, seu Antônio Alves de Magalhães é Carlos Magno. Movido pela paixão, mesmo sem conhecer todos os meandros dessa intrincada mistura de Europa medieval com o Brasil Colônia, rainha portuguesa com imperador franco, canção de gesta com festa católica, o corumbaense vive o rei cristão com muito orgulho, há 27 anos.

O rei cristão
Aos 69 anos, funcionário público aposentado, seu Antônio atualmente mora em Cocalzinho, cidade vizinha. Um mês antes dos folguedos, ele aluga uma casa e retorna temporariamente com parte da família à cidade natal. Levanta todo dia às cinco da manhã para ensaiar e só pára às quatro da tarde, com pequena pausa para o almoço. “Eu me sinto muito feliz correndo. Sempre fui ligado demais à cultura dos cavalos e dos cavaleiros. Enquanto tiver boa saúde e memória, vou participar”, diz.

Foi nos idos de 1956 que seu Antônio correu pela primeira vez, justamente no ano em que a festa seria interrompida por falta de recursos, para retornar somente em 1980. Desde então, apenas uma vez deixou de se apresentar: em 1987, durante os ensaios, ele caiu e o cavalo pisou em sua cabeça. “Foi difícil, mas tive fé na padroeira e me recuperei.”

Quem cuida das vestimentas do rei é dona Maria Elisabete, que já foi Rainha da Lavoura em tempos passados, com quem seu Antônio é casado há 41 anos. Na lida com os cavalos, vossa majestade também conta com os préstimos do herdeiro, o neto Pedro Henrique. O menino de 14 anos segue o avô em todos os compromissos da cavalaria. “Se Deus quiser, quando ele parar, vou dar continuidade”, anseia Pedro, que leva a sério a confiança depositada pelo avô. “Quando eu nasci, ele pegou a minha mão, colocou sobre o cavalo e afirmou: ‘Esse vai ser cavaleiro’.”

No primeiro dos três dias de apresentação, é seu Antônio quem dá a ordem para o início do espetáculo. “Nessa hora, o coração dispara. Dá um nó na garganta”, revela.

Depois da encenação da morte do espião mouro pelo guerreiro cristão, têm início as embaixadas, diálogos belicosos entre os reis. O som que sai pelos alto-falantes é dublado, mas seu Antônio sabe o texto de cor. Na cadência da banda Veteranos de Corumbá, ele entra em campo muito elegantemente, puxando o galope do cavalo Colorado. Aguerrido, inicia as dramáticas corridas, rondas e giros, com enfrentamentos sucessivos de lanças, garruchas e espadas. Cada jogador vai mostrando sua destreza e, depois de cada batalha, retorna ao seu posto.

Do outro lado da arena está José Quirino Gouveia de Moraes, o Juca. Aos 52 anos, o primeiro cavaleiro da ordem moura, assim como seu Antônio, muda totalmente sua rotina nessa época do ano. Há 14 anos vivendo em Londrina, no Paraná, o fazendeiro viaja 12 horas e meia de caminhão trazendo na carroceria o manga-larga Paixão Danana e o alazão crinalvo Jogral das Três Fronteiras, que o acompanham no espetáculo.

A corte moura
Sua mãe, dona Maria do Carmo, que ainda vive na cidade, é quem o recebe e abriga os cavalos durante a festa. A bandeirinha vermelha tremulando com o crescente e a estrela denunciam já na entrada a presença moura na casinha colonial preservada em sua alvenaria branca e janelas de madeira pintadas de verde.

Juca é acompanhado por um verdadeiro séquito de mulheres: além de dona Maria, a irmã Vitória e a namorada Rosana, que também veio de Londrina especialmente para a festa, cuidam de tudo nos mínimos detalhes. Mas foi a avó Jolinda, que morreu no ano passado, aos 102 anos, quem bordou sua primeira capa, quando tinha 75. Juca corre desde 1980: “É uma emoção muito forte. Quando a música entoa, tudo vem à flor da pele. Nessa época, eu chego a sonhar todos os dias com cavalos, cavaleiros e organizadores. Eu vivo o personagem em todos os sentidos. Agora eu sou Mohamed”.

“Mas não esqueça do nosso Deus!”, exclama a mãe católica ao ouvir a afirmação do filho, emendando ela própria em seguida: “É uma encenação. Sabemos que os cristãos sempre vencem no final. Se bem que a maioria gosta mesmo é do vermelho”.

E gostar do vermelho ou do azul é algo levado muito a sério. “É que nem time de futebol”, diz Juca sob o olhar atento dos três pajens, os meninos que dão assistência ao cavaleiro. “Somos observados e servimos de inspiração aos mais novos. Por isso, um cavaleiro tem que demonstrar bom comportamento em todos os sentidos. Temos que dar bom exemplo”, diz.

Ser admitido na cavalaria não é tarefa fácil. Além da boa conduta, o aspirante percorre um longo trajeto. De pajem, passa a suplente. Tem que participar dos encontros de confraternização, conservar boas relações dentro do grupo, cumprir os ensaios e mostrar habilidade para correr. Mas o cargo é vitalício. O integrante só sai quando abdica, comporta-se mal perante os olhos da confraria, ou, claro, quando morre.

No jogo de carta marcadas das cavalhadas, nosso Mohamed sabe que nem a capa tão caprichada feita pela avó nem a espada indiana comprada pela internet ou mesmo a garrucha marroquina adquirida numa feira de antiguidades garantirão aos mouros a vitória. O destino de Juca está vaticinado. No segundo dia, ele e seus colegas são dominados e convertidos à fé cristã.

E o batismo é encenado pelo pároco da cidade em pessoa. Nos dias da festa, porém, Ricardo Jorge não é o único padre nos domínios daquela freguesia. Curiosamente instalados sob a bandeira moura, lá estão eles no camarote do cavaleiro Juca. Com suas batinas negras impecáveis e largas faixas vermelhas na cintura, falam ao celular e fotografam tudo. O padre João Batista de Almeida veio de Anápolis e trouxe o suíço Bernard Flückiger para conhecer as cavalhadas. “Ele está se divertindo muito. Achou a festa magnífica, encantadora”, diz o brasileiro traduzindo o suíço, que acena e bate palmas. “Só no Brasil isso é possível. Quem dera essa paz entre muçulmanos e cristãos fosse real”, complementa o padre de Anápolis durante o intervalo.

As forças populares
Mas quando o assunto é cavalhadas, intervalo entre batalhas não quer dizer período de paz. Muito pelo contrário. Enquanto os cavaleiros descansam perfilados, surgem em campo 230 mascarados. Com o corpo inteiramente coberto por roupas coloridas, usam máscaras de monstro – que destoam das tradicionais cabeças de boi utilizadas nas festas populares que do ciclo regional goiano -, comunicam-se usando sons estridentes e sinais, divertindo o público com brincadeiras. Carregam chifres para pedir bebida e, quando atendidos, oferecem flores de crepom, um dos símbolos da festa. São proibidos de mostrar o rosto ou qualquer parte do corpo que possam identificá-los. Apenas no último dia podem revelar a identidade.

Debochados e irônicos, representam a participação popular, aqueles que não têm acesso à pompa e circunstância da dança oficial dos reis e seus ilustres cavaleiros. Se bem que, na vida real, a falta de recursos poderia soar em coro uníssono. Quem paga pela realização das cavalhadas são, efetivamente, os participantes. Não há apoio governamental nem de entidades privadas. “É caro. Temos que dedicar tempo, disposição e dinheiro. Seria importante ter uma ajuda”, concordam Juca e seu Antônio.
Está chegando a hora de partir. A missão se cumpre. A peleja acabou. Os mouros estão convertidos e entramos no terceiro e último dia da festa, com as corridas de confraternização. Embora o nome do primeiro torneio não soe nada amistoso, o “sacrifício de cabeças” é uma atração bastante popular. Os cavaleiros correm, devendo atingir com suas armas as cabeças de papel machê em tamanho natural. Depois da apresentação de simbologia tão belicosa, segue-se a bem mais amena troca de ramalhetes. Azuis e vermelhos encontram-se em pontos estratégicos do campo, numa dança de giros, ofertando-se flores. O sol já vai caindo e a expectativa é grande para o torneio final, a corrida de argolinhas. Cada cavaleiro deve disparar e apanhar com a lança uma pequena argola, do tamanho de uma pulseira, suspensa numa trave. Aqueles que conseguem realizar a façanha são bastante aplaudidos e oferecem a prenda a uma personalidade ilustre ou a alguém querido na platéia.

Devido à proximidade dos camarotes, o contato com o público é intenso. Os espectadores acenam, batem palmas, jogam serpentinas sobre os cavaleiros, que retribuem com olhares cúmplices e sorrisos.

Ficção e realidade
Sentado em um dos balcões, está seu Edmir Curado, 87 anos. Todo garboso, de lenço vermelho e chapéu, o antigo cavaleiro mouro observa atentamente a movimentação e a compara com o seu tempo. “Hoje está meio bagunçado”, alfineta.

O bem-humorado Edmir correu até 1956 e ainda guarda a capa que fora do avô, Francisco Herculano, usada nas cavalhadas entre 1868 e 1897, e que serviu de inspiração para a capa hoje usada pelo cavaleiro mouro Juca.

Além de ser reconhecido como um dos principais personagens que povoaram a história das cavalhadas na cidade, seu Edmir guarda ainda outro motivo para ter se tornado alvo de muitos comentários. Todo mundo sabe, embora poucos tenham visto ou acreditem. Talvez só vendo mesmo para crer.

Em outros tempos, sua antiga Casa Esmeralda, hoje administrada pelo filho Ramir, vendia armarinhos, tecidos, plásticos, papelaria, utensílios domésticos, bebidas, brinquedos e também caixões e artigos funerários. Boêmio inveterado, certo dia ele chegou bêbado em casa e, para escapar do falatório da mulher, desceu até a loja, no porão, e foi dormir no caixão. “Ela tinha medo de vir até aqui, então era o único lugar em que eu tinha paz”, ri.

Apesar de não vender mais caixões, seu Edmir conservou um dos esquifes e o hábito de nele fazer a sesta. Agora, ele se desloca para o insólito espaço sob a atenção e companhia dos netinhos André e Natanael, que se divertem tanto quanto o avô com a perplexidade de olhos alheios. Com muita naturalidade, brincam com o passado, a imaginação voa com a capa centenária do trisavô. Sobre o balcão da loja, virando as páginas de antigos álbuns de retratos da Casa Esmeralda, continuam a cultivar as raízes de uma imensa árvore genealógica. Talvez contem aos seus netos que um dia uma equipe de reportagem apareceu para saber do vovô Edmir, o antigo cavaleiro boêmio que dormia no caixão.

Entranhadas em cantos inimagináveis, histórias se confundem com estórias e vão tramando essa imensa malha de um Brasil que resiste, onde o fantástico alimenta a vida real.


Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.