Guerra imaginária

Bastaram dois meses?para que fosse quebrado o encanto das atuações espetaculares no Complexo do Alemão, realizadas em fins do ano passado na comunidade carioca. Na ocasião, a ação de policiais e militares, em helicópteros e tanques de guerra e toda uma parafernália, foi exibida em tempo real por corporações de mídia na operação que, finalmente, tomaria do “tráfico” um território historicamente esquecido pelo poder público.

Na verdade, não tomou. Além de alertas de moradores e de movimentos sociais, houve registro na imprensa: no dia 30 de janeiro, a Folha de S. Paulo deu matéria sobre a volta de traficantes à favela que havia sido ocupada em novembro do ano passado pelas “forças de segurança”. Já o jornal O Globo (12 de fevereiro) publicou matéria de página inteira sobre a Operação Guilhotina da Polícia Federal, que revelou a ação de quatro quadrilhas dentro da polícia fluminense. Uma delas – quanta ironia – seria liderada por Leonardo da Silva Torres, o Trovão, que em 2007 tornou-se ídolo de dez entre dez veículos de comunicação da grande mídia, após uma megaoperação policial na mesma favela, que deixou 19 mortos em um só dia. Trovão, cultiva o hábito de fumar charutos durante as operações, foi capa da revista Época, sob o título “Tática inovadora no combate ao crime”, e ganhou perfil elogioso em O Globo, além de citações positivas em outros veículos de comunicação que abafaram denúncias de moradores e movimentos sociais sobre crimes cometidos por policiais. Agora, quase quatro anos depois, a Polícia Federal acusa Trovão de, entre outras coisas, vender armamento pesado para traficantes e de ter encontrado – e não informado – R$ 2 milhões nas operações do final do ano passado. Nas interceptações telefônicas feitas pelos federais, os policiais acusados se referiam ao Alemão como “Serra Pelada”, garimpo paraense que enriqueceu muitos aventureiros nos anos 1980. As escutas da Polícia Federal comprovam aquilo que foi denunciado nos dias seguintes à operação espetacular de 2010: policiais roubaram dinheiro, eletrodomésticos e outros pertences da população. “Espólio de guerra”, no dizer de um dos bandidos fardados.
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O desenrolar dos fatos terminou por derrubar o chefe da Polícia Civil, delegado Allan Turnowski, indiciado no dia 17 de fevereiro sob a acusação de ter vazado informações sobre uma operação da Polícia Federal em 2010. Turnowski também é acusado de receber propina para não reprimir a ação de grupos milicianos – formados por policiais, bombeiros e agentes penitenciários que dominam comunidades pobres pela imposição da força.

Em nome do combate ao tráfico – eleito o mal na Terra – vale tudo: roubar e, inclusive, matar, desde que as vítimas estejam na base da pirâmide social. Essa política de segurança vem sendo construída sob os pilares da repressão e dos discursos que justificam a crescente militarização das cidades como única forma de manter a ordem. A análise é da psicóloga Cecília Coimbra, professora-doutora da Universidade Federal Fluminense e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro.

Presa e torturada durante a ditadura, Cecília foi libertada por falta de provas. Depois de se recuperar do trauma, formou-se em psicologia e decidiu dedicar-se à missão de conscientizar a população brasileira sobre o fato ocorrido e demonstrar que muitos dos problemas que atingiram o Brasil no regime militar continuam presentes na sociedade de hoje.

Em 1985, Cecília fundou com um grupo de ex-perseguidos políticos o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro. Com sua ação, o Tortura Nunca Mais conseguiu afastar de cargos públicos profissionais da Saúde que colaboraram com práticas de tortura. Conseguiu também fazer com que médicos que emitiram laudos falsos tivessem seus registros cassados e fossem impedidos de exercer suas atividades profissionais. A organização tornou-se importante referência no Brasil e no exterior e continua a denunciar antigos e novos casos de tortura, além de homenagear lideranças e entidades que lutam pelos Direitos Humanos com a entrega anual da Medalha Chico Mendes de Resistência.

Entre os livros publicados, Cecília assina o Operação Rio: o Mito das Classes Perigosas, em que estuda a ocupação do Rio de Janeiro pelo Exército na esteira da ECO-92 e discute o papel da mídia na legitimação da segregação das classes subalternizadas. Em um paralelo com a situação de agora, ela considera, ao contrário da maioria, que o quadro se agravou. O que virá após os tanques nas ruas? O discurso do medo foi muito bem utilizado para a redução das liberdades civis, cada vez mais fragilizadas pela ampliação da vigilância das “forças de segurança”. Tão importante quanto a realidade objetiva – que poucas, porém confiáveis vozes, como a do professor da Universidade de São Paulo José Cláudio Souza Alves e a do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ), que acreditam que apenas houve uma reconfiguração do varejo do tráfico no Estado – é a discussão proposta por Cecília nesta entrevista, que trata de investigar como a operação da polícia afetou corações e mentes, considerando a cobertura engajada das corporações de mídia. A preocupação da psicóloga é o tipo de cidadão que está sendo formado e, consequentemente, a sociedade que será erguida.

Brasileiros – Queria que você comentasse a chamada ocupação do Complexo do Alemão, no final do ano passado.
Cecília Coimbra –
Tem um ponto que as pessoas não estão tocando, e que a gente está enfatizando muito. A gente tem de alertar as pessoas para o que está sendo produzido aqui no Rio de Janeiro, aliás, o que já vem sendo produzido, que não é nenhuma novidade. Quando escrevi Operação Rio, isso já havia sido produzido muito midiaticamente, não é por acaso que faço pesquisa em cima de quatro jornais, dois do Rio e dois de São Paulo, para mostrar como a Operação Rio foi produzida em termos de subjetividade para que as pessoas aceitassem o endurecimento. Em cima da luta contra o narcotráfico, contra o crime organizado… E vão criando ficções. A questão do crime organizado é uma invenção que foi produzida pela Política de Segurança Pública, no sentido de mostrar uma organização que não existe. O que existe são grupos fragmentados, que ora se aliam entre si, ora se aliam à polícia, a gente sabe muito bem disso.

Brasileiros – E essa construção ocorre no subconsciente?
C.C. –
Também. Essa produção midiática de modos de viver e de existir, quer dizer, produções de subjetividade, como a gente fala, é uma coisa típica do capitalismo. McLuhan e Chomsky já falavam isso.

Brasileiros – Por que é uma produção do capitalismo?
C.C. –
Uma das coisas que o capitalismo coloca em termos de dominação é a produção de modos de viver e de existir como sendo os verdadeiros, os corretos, os únicos, os normais. Então, esse processo de subjetivação, essa produção de modos de viver e de existir são sempre em cima de modelos. Modelos esses que a gente pode pegar não só na História como na Psicologia também. São modelos que vão sendo produzidos com o advento do capitalismo, que Foucault chamava de sociedade disciplinar. Não se diferenciava em grandes coisas de Marx, a grande diferença é que ele vai dizer que não existe esse Estado grande, poderoso. Os poderes são micropoderes, que se espalham por todo o tecido social. São forças que estão no mundo e, quer a gente queira ou não, elas nos atravessam e nos constituem. Porque nós estamos inseridos nesse mundo. Somos atravessados por essas forças, forças conservadoras, de maneira geral, e que tem o objetivo de manter o status quo por meio, principalmente, dessas produções de subjetividade.

Brasileiros – Pode explicar melhor essa produção de subjetividade?
C.C. –
Quando estou falando isso tudo para você, estou produzindo subjetividade. Porque a gente é produzido e é produtor também, o tempo todo. Eu quero produzir determinadas subjetividades que são diferentes das subjetividades hegemônicas. Eu quero tentar produzir o que a gente chama processos de singularização, isso que os movimentos sociais tentam fazer, ou seja, afirmar outros modos de estar nesse mundo que não os hegemônicos. Esses são a base do capitalismo: o que é o modelo de família normal, o que é o modelo de filho, o modelo de aluno, de professor. Esses modelos são históricos, datados. Eles nem sempre existiram, nem sempre existirão. É um processo. Obviamente, o capitalismo começa a produção de uma tradição que vem de Platão, do pensamento vencedor do Ocidente, um pensamento que dá valor às essências. Ou seja, você tem uma essência e cabe ao psicólogo descobrir qual é a sua essência. Esse outro grupo, que é o pensamento que fala da questão da diferença, ele vem justamente negando a existência de uma essência. O que se faz hoje? É dada uma essência aos moradores de favela, ao pobre. A essência de perigoso. Então, pobreza, criminalidade e periculosidade vêm sendo associadas. Isso não vem de hoje, vem desde o século XIX! São produzidas subjetividades de forma tão competente que as pessoas pensam que isso é natural, que sempre existiu, que esses modelos são eternos. E que os que são contra esses modelos estão contra a norma. Não é por acaso o fundamentalismo pelo qual estamos passando hoje. E isso que está acontecendo no Rio é claro que tem características próprias do Rio, mas faz parte de uma grande onda conservadora, uma grande produção de subjetividades, que é planetária. Ou seja, é a questão de se controlar o sujeito ora pela repressão, ora pela sedução. E essa sedução tem muito a ver com a produção de subjetividade. E a mídia hoje é uma das instituições com maior poder de produzir e reproduzir subjetividade. A gente vai trabalhar contra essa questão das essências.

Brasileiros – O que está por trás da produção de subjetividades no caso da ocupação do Alemão?
C.C. –
O que mais me deixa preocupada, e me lembro da imagem do Ovo da Serpente, filme de Ingmar Bergman que mostra o final da República de Weimar e a ascensão do nazismo, é o que é produzido em termos de medo, insegurança, terror, e em nome disso. E, aí, a gente vê que essa não é só a história da ascensão do nazismo, essa é a história dos pré-golpes militares na América Latina. Quando se quer usar medidas totalitárias, medidas de exceção, o terreno vai sendo preparado: produzem-se subjetividades amedrontadas e, portanto, passivas. É toda uma política que se espalha pelo planeta, é a política do capitalismo neoliberal. A sociedade de controle neoliberal globalizada, na qual, para dominar o outro, são produzidos modos de estar no mundo como se fossem os únicos verdadeiros. E os outros são criminalizados. Então, o que a gente está vendo especificamente no Rio de Janeiro é o fato de que a cidade será sede de vários campeonatos mundiais – 2014 e 2016 estão aí, é coisa para inglês ver mesmo, de acabar enxugando gelo. Vão tentar fazer a limpeza das ruas, o que aconteceu na Operação Rio. Mas agora isso vem de uma forma muito mais competente. Porque quando se joga as Forças Armadas, aqueles blindados, produz-se uma guerra. Eles produziram uma guerra que a gente acompanhou em tempo real. A Globo estava ali, não precisava de nenhum departamento de comunicação social, algum órgão de comunicação social do Bope, da Polícia Civil ou da Polícia Militar, porque a Globo estava servindo como tal. Ela acompanhava as incursões. E foi montada uma grande mise-en-scène que a Globo transmitiu durante um dia inteiro, 24 horas, e as pessoas amedrontadas não saíam de casa. As escolas suspenderam as aulas, o comércio fechou. É produzido em massa o fenômeno coletivo do terror. E, para sair disso, você aplaude as medidas totalitárias, de exceção, as medidas repressivas, porque é para sua segurança, para sua vida. E é uma coisa paradoxal: em nome da vida se destrói a vida. Em nome da vida de alguns, matam-se outros. Em nome da segurança de alguns, outros são exterminados.

Brasileiros – Por que você fala em ficção?
C.C. –
A entrada daqueles anfíbios foi uma ficção muito bem preparada, midiaticamente falando. Produziu-se guerra em tempo real. Não tinha outro exército para reagir nem para dar um tirinho. Aquele bando de famélicos em debandada, aquela cena que ficou repetindo na Rede Globo. Foi criado um jogo na internet que tem uma mira e você tem de atirar nos caras fugindo. Acho que isso mostra o que é produzir subjetividades, onde a vida daquele dito perigoso não vale nada, porque a minha vida vale mais. Isso é muito sério e acho que vai se aprofundando, é um processo de controle cada vez maior. Para manter a cidade em ordem, em paz e limpa dos miseráveis.

Brasileiros – Qual é essa ordem?
C.C. –
A ordem burguesa, a ordem do capital, a ordem de todo mundo ir como gado pacificamente para revista, como acontece aqui. A gente tem de começar a entender que quando se entra na fila está tendo seu corpo disciplinado, controlado, para passar sob o olhar da PM. Nós estamos sendo produzidos e produzindo também subjetividades acomodadas, temerosas. Acho que a gente tem de chamar atenção para isso. É importante ter protesto, mas vamos pensar como isso está acontecendo. Acho que estamos naquilo que o Giorgio Agamben, que estudou com Foucault, fala, quando a exceção se torna regra. A gente acompanhou algumas falas do governador, o Choque de Ordem, a Lei Seca fazem parte de toda uma política militarizada de segurança pública que não é de confronto coisíssima nenhuma, é de extermínio! O que os moradores estão contando é a mesma coisa que aconteceu na operação policial de 2007.

Brasileiros – Mas o que foi divulgado é que nessa operação de 2010 havia o apoio da população.
C.C. –
Exatamente por isso fico mais preocupada. Conta-se com apoio massivo, isso já vem de algum tempo, para que as medidas sejam mais punitivas, para que as leis sejam mais duras, aí voltam às tentativas de redução da maioridade penal, entre outras coisas.

Brasileiros – Por que esse apoio vem crescendo?
C.C. –
Mais do que nunca as classes médias, as elites e as classes pobres, que não estão nesses lugares, que sofrem essas invasões, apoiam o endurecimento. O que se produz via Rede Globo é extremamente eficiente para o convencimento da população. A gente também vê isso pelas falas das autoridades. Isso é que é preocupante, porque você está vendo uma coisa generalizada hoje, que foi diferente da Operação Rio, quando alguns jornais criticavam. Hoje, há uma unidade generalizada. Agora, obviamente, quando a gente fala do Ovo da Serpente, a gente já viu esse filme antes. A qualquer momento em que se queira usar medidas totalitárias, de exceção, haverá um apelo, uma propaganda, a subjetividade, e se produz medo, terror, insegurança. A rua torna-se sinônimo de lugar do perigo. As pessoas pedem leis mais duras, pedem controle porque acham que nossa segurança vem do controle. Eu estava em São Paulo e as pessoas me perguntavam: “Como está a guerra no Rio?”. Então, já se convencionou que há uma guerra no Rio de Janeiro, e tudo se justifica em uma guerra.

Brasileiros – A versão oficial foi uma guerra ao tráfico, mas muitos especialistas argumentam que na verdade o que existe é um ataque direcionado a uma determinada facção, que é o Comando Vermelho, enquanto há alianças pontuais com outras facções, incluindo as milícias.
C.C. –
A gente sabe que o tráfico que existe na favela é só o varejo. A gente sabe como a polícia se alia a determinados comandos em detrimento de outros, tem a coisa do arrego que a polícia sempre recebeu, e ninguém pergunta como as armas chegam lá. Aquilo é varejo, a gente sabe que é varejo. O grande tráfico não está lá. As milícias estão ligadas a algumas facções tráfico. Junta essa análise, a ocupação de determinados territórios, com a valorização de algumas áreas, como os aluguéis e venda de prédios subiram enormemente no Rio de Janeiro, com o anúncio de 2014 e 2016.

Brasileiros – É o projeto de cidade.
C.C. –
Justamente, a gente sempre soube que desde as reformas do Pereira Passos, prefeito do Rio de Janeiro do início de 1920, todas as reordenações urbanas que se verificam ao longo da história, na época do Conde, do César Maia, as obras que são feitas são sempre obras visando mostrar a rua como sendo lugar do perigo, onde você tem de andar com velocidade. Os encontros não podem acontecer porque é perigoso. Então é a velocidade, você vai produzindo essa cidade sem encontros, onde andar na rua é perigoso. Onde o lugar mais seguro são nossos lares. E os shoppings, que também têm circuito interno de monitoramento, que faz com que a gente fique “tranquilo”.

Brasileiros – Como sair dessa roda viva?
C.C. –
O Gilles Deleuze diz uma coisa muito bonita: “Onde tem resistência, tem poder”. Poder e resistência andam juntos, e a resistência vem antes. Porque, geralmente, a gente estuda o contrário. Mas o poder sempre aparece em função da resistência. A vida, por mais que se tente controlar, nunca existe controle total, ela sempre vaza.

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