Guerra no Morro Dona Marta

O incansável zunido das balas marca o início de mais um sábado no Morro Dona Marta, em Botafogo, Rio de Janeiro. Para alguns, o barulho não altera a rotina do fim de semana: saem de suas casas para comprar pão, encontrar os amigos, arranjar os preparativos do churrasco. Outros são atraídos pelo som que sai de um terreno baldio em frente à pedra de Xangô, perto da terceira estação do plano inclinado, no alto da comunidade. Ali, um grupo de pessoas assiste a uma troca de tiros. Outros querem entrar no tiroteio.

Não, não é guerra no morro. Ou melhor, até é, mas de brincadeira, de paintball. A ideia de montar o paintball no Dona Marta, que durante anos foi palco de troca de tiros reais entre bandidos e policiais, partiu de André Luiz do Nascimento, que mora na comunidade há mais de 20 anos. “Não tinha nada parecido na Zona Sul da cidade”, diz ele, que se juntou ao amigo Gilson de Oliveira para montar o negócio.

Duro mesmo foi convencer a major Pricilla de Oliveira Azevedo, à época comandante da Unidade de Polícia Pacificadora no Morro Dona Marta. A comunidade foi a primeira a receber, em 2008, uma UPP, símbolo da volta do Estado a zonas dominadas por traficantes de drogas – de lá para cá, o projeto do governo estadual se espalhou por várias outras áreas do Rio. Tiros, mesmo que de brincadeira, não eram bem-vindos ali, nem mesmo os coloridos. Mas, depois de muita insistência, a major aceitou o desafio e, segundo André, até participou do jogo inaugural.

Hora do tiroteio

A comunidade do Morro Dona Marta existe há mais de 70 anos e hoje concentra cerca de seis mil moradores na comunidade e quatro mil em seu entorno. A ocupação começou nos anos 1940 e cresceu na década seguinte com a chegada dos migrantes nordestinos – o sotaque ecoa ainda hoje e os forrós dividem espaço com os bailes funk e o samba.

Por anos, foi dominado pelo jogo do bicho e o tráfico, e ficou mundialmente famoso quando Spike Lee gravou com Michael Jackson, em 1996, o clipe They Don’t Care About Us. Para fazer esse trabalho, a produção dos artistas negociou diretamente com o lendário traficante Marcinho VP. Não era a primeira colaboração dele com equipes de filmagens. Um ano antes, foi fonte de informação para o documentário Notícias de uma Guerra Particular, de João Moreira Salles, e mais tarde, em 2003, teve sua história contada em Abusado, livro de Caco Barcellos. Morreu dois meses depois do lançamento do livro.

Usando um colete de proteção e uma máscara que cobre a parte superior da cabeça, Amanda é estreante no paintball. Vai brincar ali sob a mira de 123 policiais que operam na UPP. “Sempre quis jogar, mas só agora achei um lugar perto de casa e barato.” Ela e os amigos descobriram o campo pela internet. Nunca tinham disputado uma partida do gênero nem entrado em uma comunidade. Subiram o morro pelo elevador do plano inclinado, uma espécie de bondinho que sobe e desce transportando pessoas.

Eles desceram na terceira estação, no alto da comunidade, de onde se vê bem de perto o Cristo Redentor e no horizonte a Lagoa Rodrigo de Freitas, o Morro Dois Irmãos e o Pão de Açúcar. Depois, seguiram pelo labirinto de casas e foram perguntando aos moradores onde ficava o campo de paintball. Todo mundo sabe onde é. Tiveram de pegar uma pequena ladeira e subir 200 degraus para chegar onde queriam.
O campo é um antigo terreno baldio adaptado ao paintball. Carcaças de armários, geladeiras velhas, barricadas de pneus viraram obstáculos e esconderijos usados no jogo. O grupo de estreantes ouve atentamente as orientações de segurança e explicações de funcionamento do jogo. Depois, fazem perguntas: “A tinta da bala gruda no cabelo?”, “O tiro dói muito?”.

As dúvidas são esclarecidas e o tiroteio começa. Em poucos minutos, o primeiro eliminado sai do campo. “Achei que doesse mais.” Pouco tempo depois, outros dois estão fora do combate. “Quem mandou botar um botafoguense no time? Queria ganhar como?” As provocações só são interrompidas quando os times são trocados para a partida recomeçar. O aluguel do campo custa R$ 20 e dá direito a duas horas de jogo e 50 bolinhas de tinta. Cada recarga sai por R$ 8. Moradores locais não pagam o aluguel do campo, só as recargas.

É o amor
Em tradução livre, paintball significa bola de tinta. Na prática, é um esporte de simulação de combate, em que se utilizam marcadores (pistolas ou espingardas de ar comprimido) e munição formada por cápsulas de gelatina contendo tinta. Em princípio, um projeto inadequado para ser instalado em uma comunidade pacificada.

Nascido e criado em Madureira, André Luiz teve um bom motivo para se mudar para o Dona Marta. Aos 20 anos, recém-saído do Exército, ele trabalhava como motorista particular. Tinha acabado de deixar os filhos do patrão no colégio e, por um instante, seu olhar desviou da confusão da rua para a da calçada. Lá estava Angélica, monitora que tentava encontrar harmonia na bagunça dos estudantes. Pouco tempo depois, André trocou as rodas de samba da Escola de Samba Império Serrano pela vida de casado e uma casinha construída no morro, onde Angélica nasceu.

Um tempo mais adiante, André virou motorista de Van escolar. Conheceu o paintball por meio de colegas de trabalho que procuravam atividades para relaxar da dura rotina de trânsito caótico. O futebol não deu muito certo. Eram contusões demais. Alguém, um dia, propôs numa conversa o paintball. Acharam um campo, começaram a jogar e tomaram gosto pelo esporte. Todo fim de semana, iam jogar em Marechal Hermes, Pilares, Niterói, campos oficiais na mata ou em fábricas abandonadas.

André ficou fascinado pela brincadeira. “Cara, tu sabe qual é a história do paintball? Começou em uma fazenda de gado nos Estados Unidos. Maluco não ia lá no pasto marcar vaca por vaca, arriscar tomar chifrada. Aí, inventaram o marcador. O cara ficava tranquilo num canto só disparando na manada. Mas, sabe como é funcionário… Mal terminava o expediente e começavam a atirar um no outro”, explica. “O paintball é um esporte ecológico. Tá vendo essa bolinha aqui? Isso aqui é biodegradável, não mancha a roupa, sai na chuva.”
A conversa segue com demonstrações práticas. André conta que conseguir a autorização da UPP para usar o terreno era a sua única chance de trabalhar com paintball. Alugar um campo era impensável, consumiria toda a grana disponível para montar o negócio. As economias dele somadas às de Gilson mal chegavam a R$ 15 mil.

Gilson, pizzaiolo, segurança e motorista, joga na equipe de André. Ele havia acabado de sair do trabalho na pizzaria e achou “uma boa” investir a grana do fundo de garantia naquela ideia. Conversar com os dois ao mesmo tempo gera um efeito cômico, de tão diferentes que são. Gilson é grandalhão, calmo e fala pouco. André é magro, agitado e várias vezes responde pelo amigo. A paciência de Gilson e a insistência de André foram essenciais quando a major Pricilla disse “sim”, seguido de “mas”. “Podem montar o campo, desde que tudo seja totalmente regularizado.” Quatro meses de jornada pelo vasto mundo da burocracia e a Norte Paintball estava pronta para as atividades.
A estreia teve casa cheia. A comunidade compareceu em peso ao Campo do Tortinho, acomodando-se nas calçadas, às margens do escadão e nas casas vizinhas. Os ambulantes providenciaram cerveja, água, refrigerante, salgadinho e churrasco para abastecer os espectadores. Na trilha sonora, hip hop.

Os novos empresários do morro recuperaram o investimento inicial nos primeiros quatro meses. Os planos de expansão surgiram em seguida. Em julho, aproveitando uma pausa nas atividades no Dona Marta devido a uma mudança no lugar do campo, o paintball se transferiu por dois fins de semana para a Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana. Era o início do paintball itinerante.

“A ideia é levar o paintball para cada comunidade com UPP”, diz André. Além da Ladeira dos Tabajaras, o paintball itinerante já esteve no Pavão-Pavãozinho, Cantagalo e no Morro da Providência. Dois fins de semana em cada um, sempre com casa cheia, para alegria dos ambulantes locais que abastecem a torcida e os atletas de água, refrigerante e churrasquinho.

O procedimento é sempre o mesmo. André e Gilson primeiro conversam com o comandante da UPP local. Após receberem o positivo, eles começam os preparativos: marcam a data, arranjam o terreno, imprimem panfletos e montam o campo. A partida da abertura normalmente é disputada pelos próprios policiais da UPP. No restante do fim de semana, o campo é todo dos moradores. E de quem mais estiver de visita na comunidade.


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