Por meio da sua imaginativa e instigante produção literária, recheada de neologismos, metáforas e aforismos, João Guimarães Rosa ficou famoso por levar o sertão de Minas Gerais, sua gente e sua rica cultura aos quatro cantos do mundo. Agora, o mundo é que vai ao mesmo sertão para conhecer, principalmente em dramatizações ao ar livre, personagens e ambientes imortalizados pelo escritor mineiro.
Os espetáculos acontecem todo final de julho durante a Semana Roseana, promovida pela Associação dos Amigos do Museu Casa Guimarães Rosa e pelo próprio Museu, ligado à Secretaria de Cultura do Estado de Minas Gerais. O evento é realizado já há 21 anos em Cordisburgo, cidade com cerca de nove mil habitantes, onde nasceu o escritor, localizada a pouco mais de 100 km ao norte de Belo Horizonte.
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A Semana já é um compromisso certo no calendário dos admiradores da obra de Guimarães. Mobiliza não só a comunidade local como visitantes de diversos lugares do Brasil e de outros países, que participam ativamente de apresentações teatrais, shows musicais, mesas redondas, conferências, exposições fotográficas e de arte popular, mostra de filmes, lançamento de livros, oficinas de bordados e várias outras manifestações culturais.
Nessa época, Cordisburgo se transforma e transpira Guimarães Rosa, com seus personagens ganhando forma e cada vez mais vivos no sertão mineiro. E isso não é uma força de expressão, já que dois dos pontos altos da Semana Roseana são as narrações de textos pelo grupo Contadores de Estórias Miguilim e a caminhada ecoliterária, com apresentações do grupo Caminhos do Sertão, tendo como palco árvores e riachos que cortam o cerrado mineiro.
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A cada ano, o evento tem um tema diferente. O de 2009 foi A Loucura na Obra Roseana, com debates e interpretações de contos que abordam o assunto. Foram narrados trechos de “Sorôco, sua mãe, sua filha”, “A terceira margem do rio”, a “A menina de lá”, extraídos dos livros Primeiras Estórias, Grande Sertão: Veredas, Manuelzão e Miguilim.
Um dos organizadores da Semana é José Osvaldo dos Santos, mais conhecido em Cordisburgo como Brasinha, um “sertanejo”, como ele próprio se define. Quem o encontra em sua loja recheada de objetos antigos e referências à obra roseana, percebe logo uma grande identificação com ela, não só porque fisicamente ele lembra um personagem saído dos livros, como pelo grande conhecimento da literatura do conterrâneo. Chama atenção o fato de que seus três filhos são médicos, a primeira profissão do escritor mineiro (não por acaso, poderia interpretar um psicanalista).
Brasinha foi quem coordenou a caminhada ecoliterária, uma forma criativa de mostrar ao vivo a obra de Guimarães Rosa. Ela começou logo no início do dia com um farto café recheado de especialidades culinárias regionais, como bolos, broas de milho, biscoitos, não faltando o autêntico pão de queijo mineiro. Em seguida, as quase trezentas pessoas que participaram do evento deste ano assistiram às apresentações dos contadores de histórias, iniciadas na Escola Estadual Mestre Candinho, local do lanche da manhã. Depois disso, tendo como fundo o som de violeiros com músicas do sertão, os participantes foram de ônibus e depois a pé, num percurso de 3 km, aos diversos pontos das trilhas localizadas na Fazenda Boa Esperança, onde assistiram emocionantes dramatizações dos contos A Religiosidade em Riobaldo, A Menina de Lá, Meu Tio Iauaretê, Páramo e A Terceira Margem do Rio. Durante o percurso, os caminhantes se deparavam com vários personagens das histórias do escritor, que surgiam sem ninguém saber de onde e depois desapareciam.
Foi nesse ambiente que cenas inusitadas aconteceram, como se passagens dos livros de Guimarães Rosa tivessem brotado para a realidade, na percepção de quem esteve lá. Uma delas quando alguns bois, surgindo de repente, ficaram perto das pessoas, parecendo querer saber o que estava acontecendo. “Só pode ser coisa do Guimarães Rosa”, tentou traduzir Brasinha, com expressão mística e uma certeza no olhar. Ele relacionou a cena a um trecho do livro Sagarana, em que uma junta de bois de carro, imaginariamente, conversa entre si: “O homem é um bicho esmochado, que não devia haver. Nem convém espiar muito para o homem. É o único vulto que faz ficar zonzo, de se olhar muito. É comprido demais, para cima, e não cabe todo de uma vez dentro dos olhos da gente”.
Também aconteceram outros episódios – “Que não estavam no roteiro, apesar de muitos terem achado o contrário”, assegurou Brasinha. Como no instante em que um sertanejo montado a cavalo entrou no Ribeirão do Onça, onde estava sendo feita uma apresentação e ficou lá por um bom tempo, desaparecendo do mesmo jeito que surgiu. Outro, quando uma mulher tida na região como portadora de transtornos mentais e que estava acampada no mato surgiu também durante a encenação de A Terceira Margem do Rio, conto que trata exatamente da loucura, e participou como coadjuvante inadvertida da apresentação.
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Emoção
Assuntos como espiritualidade e resgate de valores verdadeiros do sertão também pontuaram os diversos eventos da Semana Roseana. A emoção transmitida pelos narradores e as situações inesperadas acontecidas na caminhada ecoliterária sensibilizaram muita gente, como o engenheiro paulista José Luiz Martins e sua mulher, a analista de exportação Vanilce Marques, que chorou só de relembrar a atmosfera mágica que os envolveu em todo o trajeto.
Essa vivência com base no mundo sertanejo descrito por Rosa foi definida por eles como “um contraponto à impessoalidade e o materialismo da cidade grande, uma redescoberta dos valores humanos esquecidos, uma volta à simplicidade das coisas”. Tanto é verdade que pensam em se mudar de São Paulo para Cordisburgo, onde Vanilce tem parentes, em busca de uma melhor qualidade de vida.
Ana Lúcia Alvarenga, professora universitária carioca, também achou no sertão mineiro respostas para questões existenciais que a vida urbana lhe provocava. Ela chegou à terra de Guimarães Rosa por acaso, pois decidiu onde passar suas férias enquanto colocava em ordem alguns livros. A releitura da dedicatória de um ex-professor colombiano de literatura em um exemplar de Grande Sertão: Veredas inspirou sua viagem a Minas Gerais.
Também testemunha dos acontecimentos “roseanos” da caminhada ecoliterária, ela comparou as emoções sentidas em Cordisburgo com as de um peregrino no caminho de Santiago de Compostela. “Quem acha Guimarães Rosa difícil precisa vir aqui, conhecer sua obra através dos Miguilins e do grupo da terceira idade Estrelas do Sertão. Fica tudo mais fácil, até entender a linguagem do amor”, sentenciou.
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Os Miguilins
Guimarães Rosa dizia que no sertão não há nada o que fazer, a não ser contar histórias. Com base nessa ideia, a médica Calina Guimarães, sua prima, com ajuda de professores da UFMG e da USP, em 1995, deu início a um importante projeto cultural e de inclusão social em Cordisburgo. Desde então, são formados e preparados meninos e meninas de 11 a 18 anos para apresentações sobre a obra do escritor no Museu dedicado a ele e nas Semanas Roseanas.
São os “Miguilins”, grupo de contadores de histórias cujo nome remete à personagem infantil do livro Manuelzão e Miguilim, um alterego de Guimarães Rosa para alguns estudiosos do autor. A participação nesse grupo é um sonho de muitos jovens de Cordisburgo e suas famílias. São selecionados nas escolas da região pela habilidade natural em contar histórias, aperfeiçoada pe-lo treinamento em dramaturgia, traquejo social, expressão vocal e corporal que recebem de Dôra Guimarães, parente do autor, graduada em Letras, e sua parceira a psicóloga Elisa Almeida, que já formaram várias gerações de Miguilins.
Além da inclusão social, as crianças e os adolescentes do grupo amadurecem, aumentam sua autoestima e ficam mais interessados em tudo, porque viajam e convivem com muita gente. Fazem apresentações em teatros, museus, eventos e bibliotecas de todo o País, tendo ido, inclusive, ao Palácio do Planalto, em Brasília. “Várias pessoas consideram a obra do Guimarães Rosa difícil. Mas para os Miguilins é fácil, porque falam a língua do sertão e encarnam muito bem a oralidade do escritor”, disse Dôra Guimarães. Quando começou o projeto, a doutora Calina – afastada do grupo desde 2000 por motivo de saúde – estabeleceu que os participantes deveriam ser bons alunos, responsáveis por seus cuidados pessoais e ainda ajudar nas tarefas familiares. Ela sempre estimulou o estudo dos ex-Miguilins, permitindo que, para isso, alguns morassem em seu apartamento em Belo Horizonte. Vários estão ou já se formaram em universidades públicas e, mesmo adultos, muitos continuam como contadores de histórias, participando do grupo Caminhos do Sertão.
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