O Eurico caiu do trampolim há muitos anos. Desde então, tem problema de coluna. Ou faz alongamentos na lombar, adutores e posteriores ou tem de ficar estirado no chão. É um inferno. A solução para o caso dele não é cirurgia, nem magia. É alongamento. Só funciona o thai completo. Massagem pesada em que o massagista precisa usar seu corpo para alongar o corpo do paciente. Para fazer isso, não tem outro. Só o Matsuda, que o atendia semanalmente.

Foi o Matsuda que ligou para ele naquela noite. Foi direto ao assunto. Tivera comportamento indigno de seus ancestrais. Havia desonrado todos os que amava. Faria harakiri e o Eurico devia ser o kaishakunin, o assistente do ritual. Se ele, Matsuda, não suportasse mais a dor, o kaishakunin devia dar um golpe de misericórdia, decepando sua cabeça. O Eurico estava esperando coisa pesada do Matsuda, mas nem tanto. Respirou fundo e, com sórdida ironia, se ofereceu para ele próprio abrir a barriga do Matsuda. De baixo para cima. Não perderiam tempo com encenações desnecessárias. Dito isso, desligou o telefone.

O Matsuda ligou de novo, pediu calma e insistiu que queria mesmo fazer harakiri. Não tinha alternativa. O Eurico sabia que aquela conversa não ia dar certo e desligou o telefone novamente.

O dia já estava clareando quando o Matsuda ligou ainda outra vez, com voz soturna. Humilíssimo, pediu para voltar ao assunto. O Eurico não aguentava mais aquela história e disse: Marque o local, o dia e a hora. O Matsuda agradeceu muito e disse que o chamaria na sexta-feira, com os detalhes.

O Matsuda é um tipo quadrado e baixo, beirando os cinquenta. Muito sério e silencioso. De movimentos lentos. O avô dele chegou no Ryojun Maru, em 1910, e foi direto para Bastos. Lá, criou os filhos e teve dezesseis netos. O Matsuda aprendeu massagem e alongamentos com o avô. Longe dos gaijin. Até os quinze anos, não falava o português, até hoje tem sotaque carregado. Neto mais velho, desde pequeno aceitou o peso de manter os costumes. Hoje, ele tem um semblante gelado, peso dessa responsabilidade. Matsuda também cuida da conduta moral de toda a família. Além disso, cuida dos amigos, entre eles o Eurico. Que foi quem mandou a Gerdi para seu consultório.

A Gerdi, na ocasião tinha trinta e sete anos. Holandesa, veio pro Santo André, encerrar a carreira no vôlei. Quando foi ao Matsuda, estava sem muita esperança. Foi lá como a última tentativa, para jogar mais uns anos. Matsuda resolveu o problema dela. Mas, as contínuas sessões e o contato pleno nos alongamentos foram demais. Um dia, muito próximos, o Matsuda se descontrolou. Matsuda fez o que jamais pensara em sua vida. Traçou a paciente. Justo a Gerdi, do Eurico. Aquilo foi demais para ele. Sentiu que tinha desonrado todos os seus. Daí o harakiri, que viria a ser confirmado na sexta-feira, conforme prometido.

Matsuda ligou e disse que estava tudo acertado. O harakiri seria no sítio do irmão dele em Mogi. Que o Eurico não se preocupasse, o irmão cuidaria de tudo. O Eurico ficou um leão e urrou: Vou participar de um harakiri, decepar a cabeça de um japonês e você pede pra eu não me preocupar? O Matsuda permaneceu quieto, mas não desligou. Ficaram os dois assim em longo silêncio. O Eurico, então, perguntou se a Gerdi havia recebido as coisas dela, que ele havia mandado pela Claudete. O Matsuda disse que sim, e mergulharam em outro longo e sombrio silêncio, sem desligar. O Eurico, então, perguntou onde estava a Gerdi. O Matsuda disse: Voltou para Amsterdã, muito, muito vergonha.

Aí o silêncio foi absurdamente longo, misterioso e reflexivo. O Eurico, então, cuidadosamente perguntou se poderia retomar os alongamentos. O Matsuda pensou demoradamente e, relutante, disse sim.

*Marcos Rodrigues é engenheiro civil , professor titular da Escola Politécnica da USP e dedica-se também à literatura.


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