Teoria e Debate, nº 3 (publicado em junho 1988)
Quando um infarto matou Hélio Pellegrino, dia 23 de março passado [1988], no Rio de Janeiro, não foram poucas as tentativas de capturar com palavras a sua figura múltipla. “Ele foi o poeta da psicanálise”, escreveu o repórter José Castello, no Jornal do Brasil. “Um inacreditável homem-e-meio”, disse o advogado e professor de direito Nilo Batista. “O melhor exemplo do homem sem medo”, observou o jornalista e escritor Cícero Sandroni. “Ninguém como ele sabia falar e escrever a palavra mais certa para abalar a iniquidade e despertar o sentimento fraterno”, declarou o ensaísta e professor Antonio Candido, que concluiu: “Foi luminoso e é insubstituível”.
A definição mais exata de Hélio Pellegrino, no entanto, talvez tenha sido dada por ele próprio, num artigo que dedicou à memória do indigenista Noel Nutels, quando de sua morte, em 1973. “Era um homem desatado, verdadeiro, caloroso”, anotou Hélio, como se falasse de si mesmo. “Sua capacidade de aceitar o Outro fazia com que este se sentisse, irresistivelmente, convidado para a festa do diálogo, da amizade, da comunicação.”
Festa que este poeta, psicanalista, escritor e ativista político, mineiro de Belo Horizonte, animou como ninguém em seus 64 anos de vida. Raras pessoas terão sabido, como ele, combinar ação e pensamento. Dono de uma capacidade verbal assombrosa, batalhou por meio de ensaios, palestras, debates, conferências e artigos na imprensa. Mas não ficou sendo um intelectual de gabinete: levou seu verbo também para as praças, ruas, palestras e por causa dele amargou três meses de prisão sob o AI-5, em 1969.
Psiquiatra e, mais tarde, psicanalista, concebia seu ofício como um instrumento de libertação — mas não se limitou a exorcizar os fantasmas que rondam os divãs: combateu igualmente os vícios e monstruosidades que, aos poucos, se vão grudando no casco da instituição psicanalítica.
No caso da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), de que foi membro, Hélio Pellegrino denunciou não apenas o poder imperial dos burocratas que a comandavam como também o acobertamento, por esses dirigentes, de um associado, Amílcar Lobo, que colaborara com a tortura a prisioneiros políticos no início dos anos 70. A denúncia lhe custou a expulsão da SPRJ, à qual só conseguiu retornar pela via judicial.
Pouco antes de morrer, colheu uma vitória quando o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro cassou o registro de Amílcar Lobo, impedindo-o de exercer a profissão. “Pela primeira vez desde 1964”, registrou Hélio num artigo, “alguém é punido por ter-se envolvido, na condição de militar, com a tortura política.”
Apaixonado pela justiça, ele carregava em seu final de vida um sonho obsessivo: ver reaberto o caso Riocentro. Uma semana antes de sua morte, o Superior Tribunal Militar decidiu pelo arquivamento do inquérito aberto para apurar esse atentado terrorista com que a extrema-direita, no dia 30 de abril de 1981, pretendeu semear o pânico e a morte entre as 30 000 pessoas que assistiam a um show de música promovido por organizações democráticas. O inquérito policial-militar, como se previa, não avançou um milímetro na direção da verdade.
Hélio Pellegrino nunca se conformou com isso. No último parágrafo de seu último artigo, publicado postumamente, citava o ministro do Exército, general Leônidas Gonçalves, que a propósito de outro episódio falara em “honra militar”. “Em nome dela é que o IPM do Riocentro deveria ter sido reaberto”, argumentou Hélio.
O escritor Otto Lara Resende, seu amigo, conta que ele andava siderado pelo conceito de honra e lia muito sobre o tema — mergulhara, com especial interesse, nos textos do escritor católico francês Georges Bernanos. “Estava se preparando para escrever um longo artigo sobre o Riocentro”, revela Otto Lara Resende, lembrando que Hélio morreu com outra frustração: horas antes do infarto fatal, já hospitalizado, viu a Assembleia Nacional Constituinte aprovar a emenda que praticamente liquidou a esperança de eleições diretas para presidente em 1988.
A morte poupou-o de mais um pesado golpe: internado no Instituto Brasileiro de Cardiologia, em Ipanema, não chegou a saber do melancólico fechamento da Clínica Social de Psicanálise, decidida em assembleia da entidade na noite de 22 de março. “A clínica morreu com ele”, diz com amargura o psicanalista carioca João Batista Ferreira, que ajudou a pôr de pé essa utopia sonhada por Hélio Pellegrino. A ideia era colocar a psicanálise ao alcance das camadas mais pobres da população. “O operário só entra no meu consultório como bombeiro ou pintor de paredes, jamais como cliente”, disse ele certa vez.
“Só entra quem paga meu preço, e o preço é a nossa linha de partilha severa, o leão de chácara na porta do consultório, que tem a arrogância de barrar a imensa maioria do povo brasileiro. O preço é uma determinação do mercado, o ponto em que a psicanálise se articula com a política.”
Como driblar esse nada manso leão-de-chácara? Hélio imaginou um “banco de horas” em que cada profissional ligado ao projeto “depositaria” duas horas de atendimento gratuito por semana. Os clientes pagariam quantias simbólicas pelos serviços, que consistiriam em terapia de grupo para adultos e adolescentes e ludoterapia para crianças, além de orientação para os pais.
Implantada em 1973, a Clínica Social de Psicanálise foi sendo lentamente sufocada por problemas financeiros, como a alta perpétua dos aluguéis. Resta o consolo de saber que não desapareceu sem deixar traços. “Foi uma fagulha irradiadora”, avalia João Batista Ferreira. “Hoje, várias sociedades psicanalíticas têm suas clínicas sociais.”
Em 1981, ainda vicejante, a entidade, numa iniciativa sem precedentes, estendeu seu raio de ação até uma favela carioca, o Morro dos Cabritos. No tempo da ditadura, chamou a si a tarefa de dar cobertura a militantes políticos que precisavam deixar o país.
A clínica promoveu ainda fecundos simpósios sobre psicanálise. Um deles, em particular, dedicado ao tema Psicanálise e Política, em setembro de 1980, teria importantes desdobramentos: foi nessa oportunidade que Hélio Pellegrino, ao lado de dois colegas, Eduardo Mascarenhas e Wilson Chebabi, abriu fogo contra os “barões” da instituição, denunciando seus privilégios, seu pretenso apolitismo e os altos custos do tratamento.
Começava uma pequena revolução. “A história das instituições psicanalíticas brasileiras se divide em antes e depois de Hélio Pellegrino”, demarca Eduardo Mascarenhas, para quem o colega morto, entre outros méritos, teve o de “tirar a psicanálise de seus castelos mal-assombrados e transportá-la para o espaço público”.
“Incansável Dom Quixote a lutar contra dragões reais que nada tinham de moinhos de vento”, como o descreveu Cícero Sandroni, Hélio Pellegrino já nasceu marcado por essa vocação. “Nas minhas lembranças mais remotas eu o vejo indignado com os absurdos do país”, depõe o crítico de teatro Sábato Magaldi, seu primo e companheiro de infância e juventude em Belo Horizonte. “Ele tinha uma espécie de ira santa.” Ira que, uma vez provocada, desconhecia barreiras e convenções.
Certa madrugada — quem conta é outro amigo de juventude, o radiologista Eloy Heraldo Lima, seu colega de faculdade —, Hélio Pellegrino passava pela Praça da Estação, em Belo Horizonte, quando se deparou com dezenas de famílias de indigentes dormindo ao relento. Indignado, buscou um telefone e interrompeu o sono do arcebispo da cidade, Dom Antônio dos Santos Cabral, para exigir — inutilmente, claro — que ele, primeiro, fosse ver o triste espetáculo e, em seguida, acolhesse aquela gente em seu palácio, afinal de contas “uma casa de Deus”.
A história é contada no romance O Encontro Marcado, de Fernando Sabino, do qual um dos personagens principais, Mauro, não disfarça o perfil exuberante de Hélio Pellegrino. Esse livro, que já vendeu mais de 50 edições desde 1956, além das traduções que teve para várias línguas, eterniza a amizade que, na vida real, uniu quatro escritores mineiros ao longo de meio século: Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Hélio Pellegrino. Os quatro “vintanistas”, como os chamava carinhosamente seu mestre Mário de Andrade. No caso dos dois últimos, os laços eram ainda mais antigos, pois se conheceram nos bancos do Jardim da Infância Delfim Moreira, em Belo Horizonte. “Perdi uma grande parte de mim, e com certeza a melhor”, disse Fernando Sabino ao ver decepada essa camaradagem de 60 anos.
Há quem sustente que, dos quatro, Hélio era “o menos mineiro”. Nada tinha, em todo caso, da proverbial contenção montanhesa — quem sabe pelo fato de ser filho e neto de italianos. “Brasileiro, mineiro, belo-horizontino, era italiano como quem mais o fosse”, disse dele o historiador Francisco Iglésias, em homenagem que lhe prestou no Conselho Federal de Cultura. Ardia em Hélio Pellegrino aquela desmesura que o fascinava na figura de Noel Nutels.
“Era uma personalidade solar, que irradiava de maneira incrível a inteligência e a generosidade”, observa Antonio Candido, seu companheiro de Esquerda Democrática, Partido Socialista e, por fim, Partido dos Trabalhadores. “Nada de fechado nele. Tudo aberto, para deixar passar a força de vida e para receber a força da vida. Homem de justiça e de combate, ele se jogava com a intensidade da paixão, fosse raiva contra o mal, fosse a mais ruidosa alegria diante do bem.”
Para Iglésias, que com ele conviveu desde a juventude, Hélio era “um homem-comício” — “um extraordinário orador, de linguagem incisiva, de forte beleza poética, imagens ousadas, de voz firme e sonora, servido por sua bela estampa”.
O jornalista carioca Moacir Werneck de Castro, que o conheceu mais tarde, carrega no mesmo adjetivo para qualificar Hélio Pellegrino: “Era dono de uma opulência verbal extraordinária, as palavras lhe vinham com extraordinária facilidade, num submisso tropel. Gostava de jogar com elas, de as dissecar, esbagaçar e remontar, de tirar efeitos inesperados de suas assonâncias — e dissonâncias”. Não se perdia, entretanto, “no fluxo vocabular, não se deixava arrastar por ele. Guardava seguro o equilíbrio entre a forma exuberante, barroca, e o claro conteúdo do pensamento”.
Tão bem dotado para a tribuna, o palanque, era fatal que Hélio Pellegrino cedo se entregasse à paixão da política, embora sua mocidade transcorresse sob a repressão da ditadura do Estado Novo. Até isso parecia movê-lo. “A guerra e a política nos marcaram profundamente”, disse numa entrevista. “Nossas esperanças eram centradas no pós-guerra, na vitória da justiça, da liberdade, da fraternidade.”
Assim, aos 20 anos, fundou em Belo Horizonte uma Liga Intelectual Antifascista. Juntou-se, por essa época, ao grupo que iria editar na capital mineira um jornal clandestino, Liberdade (nome proposto, a pedido de Hélio, pelo escritor Georges Bernanos, que então vivia em Minas). Era impresso numa velha máquina temerariamente instalada atrás do prédio da Secretaria da Segurança Pública. A publicação, em 1945, ano da redemocratização, ganhou existência legal e sobreviveu por alguns meses, como jornal diário.
“Passávamos o dia inteiro de cuecas imprimindo o jornalzinho”, contava Hélio Pellegrino, que assinava com o pseudônimo Mário Sobral (tomado de empréstimo a Mário de Andrade) uma crônica com muita gozação em cima dos políticos que apoiavam o governo.
Deposto Vargas, Hélio embarcou com entusiasmo na recém-criada União Democrática Nacional (UDN), que ainda não adquirira sua fisionomia conservadora. Era estuário natural da gente de esquerda que não fechava com o Partidão, o Partido Comunista Brasileiro. Mais exatamente, na ala da UDN que ficou conhecida como Esquerda Democrática.
Foi por essa facção que Hélio, ainda estudante, aos 21 anos, saiu candidato a uma cadeira de deputado federal na Constituinte de 1946. “Ele fez uma campanha curtíssima, só quinze dias, e por pouco não se elegeu”, lembra a psicóloga Maria Urbana Pentagna Guimarães Pellegrino, com quem teve seus sete filhos. (Nos últimos 27 meses, Hélio viveu com a escritora gaúcha Lya Luft. Costumava dizer que “o casamento feliz é uma penitenciária cinco estrelas”).
Da Esquerda Democrática, Hélio saltou para o pequeno e aguerrido Partido Socialista Brasileiro, o PSB, do qual viria a ser uma das figuras principais em Minas. “Foi uma experiência tumultuada”, rememora o escritor Marco Aurélio de Moura Matos, ex-presidente da seção mineira do partido. “A direção nacional não nos entendia, era muito acadêmica, tinha até um certo ranço stalinista.”
Do outro lado, Hélio e seus companheiros sofriam ataques do Partidão, que os acusava de trotskismo. “O que éramos mesmo é antistalinistas”, precisa outro antigo dirigente do PSB de Minas, o jornalista José Maria Rabêlo, hoje presidente da seção estadual do Partido Democrático Trabalhista, o PDT. “Nós acreditávamos que a revolução não podia ser feita para implantar outro totalitarismo”. Rabêlo se recorda de Hélio Pellegrino “menos como um construtor de partido do que como um teórico brilhante”. O que não o impedia de sair às ruas para liderar, por exemplo, duas greves históricas, dos bancários e dos condutores de bonde.
Participou também de um esforço pioneiro para organizar a população de periferia, na favela conhecida como Vila dos Marmiteiros. Já formado em medicina, Hélio ligou seu nome a uma ruidosa campanha para expulsar da Associação Médica de Minas Gerais o então governador Juscelino Kubistchek, que era urologista. Juscelino havia negado aumento de ordenado e melhores condições de trabalho aos médicos do serviço público estadual. “Conseguimos expulsar o homem”, conta o radiologista Eloy Lima, outro líder do movimento.
Nessa época, Hélio já havia escolhido a psiquiatria, a partir de um episódio decisivo que relataria anos mais tarde num belo artigo, “Minha vida com os neuróticos”. Durante uma aula de fisiologia nervosa, no segundo ano do curso, o professor ilustrava, na pessoa de um velho marinheiro, a doença chamada tabes dorsal. Sentindo-se reduzido a objeto, a simples coisa, no centro do anfiteatro repleto de estudantes, o homem, de repente, urinou na roupa — e, vexado, não pôde conter também as lágrimas. “Meu colega Eloy Lima percebeu juntamente comigo o acontecimento espantoso, e fomos três a chorar”, escreve Hélio em seu artigo. “O choro do velho, seu desamparo, sua figura engrouvinhada sobre a qual parecia ter-se abatido todo o inverno do mundo, tudo me surgiu de repente como um tema de meditação, a partir de cuja importância poderia eu, quem sabe, encontrar caminho. A meus olhos, a
tabes dorsal integrou-se numa pessoa humana visada como um todo. Esta totalidade única e indissolúvel deveria tornar-se objeto de ciência.”
Foi em busca dessa trilha que Hélio, formado em 1947, enveredou pela psiquiatria, para desaguar em seguida na psicanálise. Não é verídica a história, integrante de seu copioso folclore, segundo a qual ele teria colocado à porta de seu primeiro consultório uma tabuleta dizendo que “só um louco procura o psicanalista Hélio Pellegrino”.(A frase tem toda cara de Otto Lara Resende”, desconfia Mraco Aurélio de Moura Matos). Mas poderia perfeitamente ser de Hélio Pellegrino, um homem que nunca perdeu a capacidade de rir e de brincar. “As pessoas graves, sérias, compostas, morrem ainda em vida, e se tornam o busto de si mesmas”, advertia.
Sabia como poucos manejar a arma do humor. Numa passeata, por exemplo, no centro do Rio de Janeiro, nos anos 60, os manifestantes foram subitamente surpreendidos pela entrada em cena do brucutu, o assustador veículo que a polícia usa para dispersar multidões com jatos de água. Mas das mangueiras da fera, naquele dia, não saiu mais que um ralo fio de água. “Pessoal, o brucutu brochou!”, pôs-se a berrar Hélio Pellegrino, provocando gargalhadas e desmoralizando a repressão.
Em outra ocasião, lembra Moacir Werneck de Castro, ele se envolveu num incidente de trânsito; quando a pessoa com quem discutia informou que era
uma alta patente militar, Hélio bateu de joelhos no asfalto e clamou, com as mãos postas: “Um marechal! Meu Deus, eu não mereço tanto!” Algumas de suas brincadeiras entravam na conta de um lirismo temperado pelo anarquismo — ou vice-versa. Foi assim em São Paulo, no ano de 1945, quando tomou nos braços a figura miúda de Monteiro Lobato e disparou com ela pela avenida São João, conforme conta o poeta Paulo Mendes Campos numa crônica: “Lobato, possesso, bradava ‘pusilânime!’, e o nosso amigo tentava explicar-lhe que estava apenas realizando uma complicada aspiração de infância: carregar no colo o mágico de seu mundo infantil”.
O amor pela brincadeira, no entanto, nunca impediu que Hélio Pellegrino encarasse com exemplar seriedade as tarefas, profissionais ou não, que tinha
pela frente. Solicitado por todos os lados, raramente se recusava a prestar os serviços que lhe pediam — escrever um artigo, redigir um manifesto,
participar de um debate. Nos últimos anos, entre inúmeros compromissos que aceitou, fez parte da Comissão Teotônio Vilela, por melhores condições
carcerárias, e do grupo Tortura Nunca Mais. Tinha prodigiosa capacidade de trabalho e passava mais de dez horas por dia no consultório — “puxando
minha carroça”, dizia. Como militante, foi pouco típico e não raro dissentiu.
Levado ao PT pela mão do crítico e teórico de arte Mário Pedrosa, Hélio dizia que pela classe trabalhadora era capaz de tudo, menos de aguentar
reuniões muito compridas. Não obstante, era o que acabava fazendo com frequência — como atesta o psicanalista Carlos Alberto Barreto, seu companheiro de militância no PT. Os dois ajudaram a criar, dentro do partido, no Rio, o Núcleo (hoje Clube) Mário Pedrosa, grupo informal de
intelectuais e artistas que se reúnem toda sexta-feira em casa de Barreto para discussões políticas.
Travavam-se ali debates sobre, por exemplo, se o PT devia ou não ir ao Colégio Eleitoral. Hélio, simpatizante de Tancredo Neves, mais tarde admitiu que boa parte dos atuais problemas brasileiros decorreu da eleição indireta de janeiro de 1985. “Ele não tinha essa coisa da verdade absoluta”, chama
atenção Carlos Alberto Barreto. Era, para todos os efeitos, um homem aberto e tolerante — a tal ponto que sua flexibilidade por vezes deixava desconcertados os próprios amigos. Uma boa ilustração disso foi o episódio de sua prisão, em 1969. Durante o ano anterior, de grande agitação política, Hélio escreveu artigos incandescentes no hoje desaparecido Correio da Manhã. Além disso, participou de passeatas, discursou em praça pública, integrou comissões formadas para parlamentar com as autoridades.
Mas o que de fato parece ter pesado contra o psicanalista foi a imagem que dele projetou nessa época o dramaturgo Nelson Rodrigues, adepto da
ditadura. Amigo e admirador de Hélio, Nelson converteu-o num dos personagens obsessivos de suas crônicas de jornal. Hiperbólico, pintava-o ali
como um líder carismático capaz de incendiar multidões com “sua voz de barítono”. Os militares, parece, tomaram ao pé da letra os arroubos retóricos do cronista: no primeiro dia de vigência do AI-5, 13 de dezembro de 1968, mandaram prender o psicanalista, que passou semanas escondido antes de se
apresentar aos militares, em fevereiro de 1969 — sob a proteção de Nelson Rodrigues, aliás. Muitos de seus amigos, nesse momento, não entendiam por que Hélio, tendo sido levado àquela aflitiva situação por causa de Nelson, não rompia com ele. Um desses companheiros, o jornalista Zuenir Ventura, que também estava preso, conta que nem quis ser apresentado ao cronista quando este foi visitar Pellegrino no cárcere. Logo compreendeu que uma das
virtudes mais invejáveis de Hélio era, exatamente, “a sua capacidade de perceber, na pessoa, todos os pedaços dela”. “Com ele aprendi que você pode
ser radical sem ser sectário”, diz Zuenir Ventura. “Nem mesmo nos momentos em que o radicalismo fervia, em 1968, Hélio deixou de ser plural.”
Nelson Rodrigues, em suas crônicas, falava de Pellegrino como “o nosso Dante”. Exageros à parte, não resta dúvida de que ele foi um poeta de alta
qualidade, saudado em seus começos como um dos talentos mais puros de sua geração. Tinha enorme facilidade para versejar — o professor Antonio
Candido se lembra das estrofes quinhentistas (“muitas vezes obscenas”) que Hélio produziu de improviso, em mesas de bar. Maria Urbana, sua viúva, diz
que Hélio nunca deixou de fazer poesia. Mas, por alguma razão, não quis publicar, a não ser esparsamente, em jornais e revistas (em 1980, gravou
alguns poemas no disco duplo Os 4 Mineiros, da Som Livre).
Livro, mesmo, se assim se pode chamar, só Poema de Príncipe Exilado, volume com pouco mais de vinte páginas lançado em Belo Horizonte em 1947. Certa ocasião, recusou o oferecimento de uma editora paulista para publicar Os Melhores Poemas do Hélio Pellegrino, alegando, com graça muito própria, que os textos não incluídos passariam automaticamente a ser “os piores poemas de
Hélio Pellegrino”.
Como prosador, limitou-se a participar de obras coletivas, como Crise na Psicanálise, de 1982, e Os Sentidos da Paixão, um dos best-sellers de 1987,
no qual assina um ensaio sobre o mito de Édipo intitulado “Pacto edípico e pacto social”. A explicação para a sua inapetência editorial pode estar numa confissão que fez em 1979: “Fiquei dividido entre uma identidade de escritor, que não cheguei a realizar, e a identidade de psicanalista, que eu assumo”, constatou, evasivo, numa entrevista a Narceu de Almeida. “Talvez eu seja exigente ou vaidoso demais.” Otto Lara Resende acha que a psicanálise foi, para ele, uma espécie de sucedâneo da literatura. Só recentemente, e ainda assim sem entusiasmo, Hélio concordou em trazer à tona seus baús literários. Ao morrer, preparava uma coletânea de artigos publicados na imprensa, A Burrice do Demônio, outra de textos sobre psicanálise e uma terceira de versos.
Em tudo o que escreveu, poesia ou prosa, Hélio Pellegrino deixou a marca de uma inextirpável religiosidade, um cristianismo que ele, “socialista histórico, eventualmente histérico”, casava bem com o marxismo. “Por mais que fizesse força, não conseguia escapar do projeto de Deus”, diz seu amigo Frei Betto.
Hélio não brincava quando dizia que o programa do PT, para ser perfeito, só faltava incluir a ressurreição da carne — porque, explicava, “não há
afirmativa mais materialista e mais revolucionária do que esta”. Duas semanas antes de morrer, num jantar em sua casa, ele surpreendeu alguns dos convidados ao pedir que Frei Betto lhe arranjasse um padre, pois queria se confessar. “Logo você, Hélio, adepto da Igreja moderna, da Teologia da Libertação?”, houve quem se escandalizasse. Um dos presentes lhe perguntou se aquele desejo de se confessar não escondia o medo de morrer. “Não, com a morte eu já acertei as minhas contas”, respondeu Hélio serenamente, para arrematar com bom humor: “Meu problema, agora, é com Deus — e, como mineiro, não dispenso um pistolão, prefiro chegar a Ele através de um chefe de gabinete…”