Heróis da resistência

Toda vez que seu Caetano Primo Trevisan volta o olhar para dentro de sua fábrica tem a impressão de que é sábado. E de que seus 240 funcionários bateram o último ponto da semana ontem mesmo e ainda deixaram, meio desorganizadas, as ferramentas sobre as mesas. Alguns pianos ficaram semiacabados, outros no início do processo de encordoamento, uns poucos prontos para a entrega.

Há cinco anos, seu Caetano atravessa os dias com um misto de nostalgia e esperança. Algo o leva a crer que uma força maior fará com que a fábrica de pianos, fundada em 1959, volte a funcionar. “Ainda não fechei a fábrica. E nem pretendo. Se todo o conhecimento não estivesse comigo, se eu não dominasse a realidade do processo, seria um imbecil querendo continuar com uma fábrica que depende dos outros. Mas não dependo de ninguém. Por isso é que teimo e continuo aqui. Enquanto eu estiver de pé, a fábrica existirá”, diz, convicto, esse italiano de 79 anos, que hoje se mantém com a aposentadoria e a manutenção dos instrumentos.
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Seu Caetano é proprietário da fábrica de pianos Schneider, braço originário da famosa Essenfelder, considerada a primeira indústria nacional do instrumento. A história de seu Caetano remonta ao alemão Floriano Helmut Essenfelder que, em fins do século XIX, aportou em Buenos Aires, Argentina, em busca da madeira ideal para a construção de um piano do lado de cá do oceano. O pinho-de-riga era a madeira mais utilizada na Europa, mas havia um tipo de pinho local, que, mais tarde, veio a perder o seu reinado para a sitka spruce, conífera originária da região canadense.

“Com o passar do tempo, eles se deram conta de que no Brasil a madeira era ainda de melhor qualidade. Então, no começo do século XX, mudaram-se de Buenos Aires para Porto Alegre e pouco tempo depois para Curitiba, onde descobriram as nossas araucárias”, relembra seu Caetano. Para o fabricante, independentemente da família da madeira escolhida, toda a estrutura de um piano deve ser construída com um material resistente, que apresente uma dureza média e o mínimo de umidade possível.

Por uma divergência familiar, na década de 1930, a Essenfelder foi dividida. Uma letra impressa na frente do piano diferenciava a marca tida como original daquela que acabara de nascer – A. Essenfelder, criada por Alceu, neto de Floriano. Para alcançar uma qualidade superior à da fábrica fundada pelos parentes, Alceu convidou para o projeto Oscar Schneider, técnico alemão que veio com seu avô para o Brasil e, até então, prestava serviços para Floriano. “Ele queria que o Schneider construísse um modelo exclusivo para a sua fábrica.”

Alceu admitiu novos sócios, mas enfrentou uma série de dificuldades no mercado, principalmente no período da Segunda Guerra. Os tropeços financeiros e um extremo déficit de atenção, causados pelo alcoolismo, levaram os sócios a afastá-lo em 1959 e rebatizar a fábrica com o nome de Schneider. Dois anos depois, Alceu faleceu e a fábrica ficou aos cuidados de seu Caetano, que, com o tempo, tornou-se proprietário. Ele contabiliza 50 anos de serviços prestados à fábrica. Começou como designer de móveis domésticos e especializou-se assim que chegou ao Brasil, vindo de Cessalto, província de Treviso, na Itália. Acompanhou de perto a contratação de um grande número de funcionários, a fabricação em série de pianos para todo o Brasil e exterior e a criação de um dispositivo patenteado, o harpsom-címbalo que, acoplado ao piano, permite tirar um som semelhante ao da harpa e ao do cravo.

Guitarra x Piano
Mas veio o ano de 1989 e, com ele, o congelamento de preços do Plano Verão. “Nossos clientes compravam piano com os juros do dinheiro aplicado. Todo o mercado girava em torno dos juros”, afirma Caetano. Com a reviravolta econômica, surge a oferta vulcânica de instrumentos eletrônicos, capazes de atrair o interesse dos jovens. “A guitarra, o órgão, o teclado e o piano eletrônico tiraram o entusiasmo dos jovens pelo aprendizado do piano acústico.”

Opinião semelhante tem Jayme Ayres Gonçalves, de 71 anos, proprietário da Zimmermann, marca alemã patenteada por ele no Brasil, e Célio Bottura Júnior, de 53 anos, que faz parte da segunda geração administradora da Fritz Dobbert, única representante de pianos brasileiros na Expomusic de 2008, em São Paulo, considerada a maior feira de música da América Latina. Se o mercado foi um dia promissor, agora aguarda um incentivo do governo e um redescobrimento do instrumento. “O mercado não cresceu, só caiu. No ano passado, ele conseguiu se estabilizar e estamos otimistas para que melhore”, diz Bottura.
Um sinal positivo foi dado em agosto de 2008. Após uma longa batalha dos músicos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei que traz de volta o ensino de música como disciplina obrigatória nas escolas de ensino fundamental e médio. As escolas terão até três anos para se adaptar. E os fabricantes de piano fazem figas.

Enquanto a salvação não vem, eles seguem na luta pela sobrevivência com as armas de que dispõem: oferecendo serviços de reformas e afinações, revendendo pianos importados e ministrando aulas em conservatórios. Esse último caminho é a principal fonte de sustento de seu Jayme e sua família.
Em 1963, ele fundou o Conservatório Musical do Imirim, no bairro homônimo localizado na zona norte da capital paulista, depois de muito batalhar em uma “salinha” alugada por seu pai no mesmo local, dando aulas particulares de acordeão e piano. Nos anos 1970, o conservatório chegou a ter 240 alunos. Hoje, contabiliza uma média de cem. “Na época, eu oferecia três meses de aulas gratuitas para chamar a atenção das poucas famílias que viviam no bairro. Ao final desse período, realizávamos uma apresentação. Os pais ficavam satisfeitos e, enquanto sorriam, eu dizia: ‘Tudo bem, agora tem que pagar’”, relembra, aos risos.

A fábrica de pianos Zimmermann existe há 53 anos e produziu, até a década de 1980, aproximadamente cem pianos por mês, com um funcionário trabalhando exclusivamente em cada um deles. Jayme Gonçalves defende que o interesse pela música sempre foi e continuará sendo grande. Mas admite que, de fato, os instrumentos acústicos perderam espaço para os eletrônicos, sobretudo em função do valor. Enquanto um teclado pode custar em torno de mil reais, um piano bom está na faixa de R$ 10 mil.

A Zimmermann também se especializou em reformas, seja na parte mecânica, encordoamento, harpa (estrutura que segura todo o sistema de cordas) ou na caixa. Uma reforma total sai por uma média de R$ 2,8 mil a R$ 3,5 mil. “O piano pode estar todo deteriorado, mas, ainda assim, vale a pena ser reformado. E estamos capacitados para deixá-los totalmente novos”, garante seu Jayme.

A Fritz Dobbert, por sua vez, não presta serviços de reforma, mas oferece uma variedade de modelos, além de revender instrumentos importados, inclusive os de sopro, da China (da marca Pearl River), Japão (Kawai), além de diversos componentes da Alemanha, Itália e dos dois países já citados. A empresa, situada desde 1957 no bairro paulistano de Pirituba e que já empregou 420 funcionários com carteira assinada, hoje conta com 130 que ainda se subdividem entre a fábrica de pianos e uma área dedicada à fabricação de móveis residenciais de alto padrão. Célio Bottura Júnior, filho do fundador da Fritz Dobbert, afirma que a empresa é a única no mercado nacional a oferecer pianos personalizados, cujos valores médios giram em torno de R$ 52 mil.

O segredo para se manter firme até hoje, após tantas turbulências econômicas, ele define como “persistência no negócio”. “Gostamos do que fazemos, enfrentamos as dificuldades com os ajustes necessários e estabelecemos parcerias no exterior, principalmente com o mercado chinês, onde os produtos têm qualidade e os custos são baixos. Não teria mesmo como competir com eles”, admite Júnior.

O sonho comum aos três empresários remanescentes da área, que já contou com pelo menos uma dúzia de fábricas do gênero (entre elas, J. Hoelzl, Schwartzmann, Lux e Brasil), é de que a música volte (ou comece) a ser reconhecida como uma necessidade tão básica como comer e respirar, que desperte a sensibilidade e a criatividade, que faça sonhar. “Precisamos ter a música mais presente, ter pessoas capazes de entender o que se escuta, aprender mais com as orquestras, com as óperas. Desvendar a história da música, suas notas musicais e seus valores”, diz Júnior. Seu Caetano, dono da Schneider, de Curitiba, confessa que o que ele mais queria mesmo era dar notícias bem diferentes das apresentadas nessa matéria. “Me perdoe, eu queria te dar informações mais animadoras, mais quentes, mais vibrantes. Mas eu vou fazer o quê? Tenho que falar a verdade.” Mas, apesar dos percalços, a fábrica continua em pé.

A MÚSICA NAS ESCOLAS
Um projeto de lei que obriga o ensino de música nas escolas de nível fundamental e médio foi aprovado pela Câmara dos Deputados no dia 25 de junho de 2008 e, no dia 18 de agosto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei de número 2732/08, do Senado, que indica que os conceitos de música devem ser ministrados dentro da disciplina de artes. As escolas terão um prazo de três anos letivos para se adaptarem. Pelo projeto, de autoria da então senadora Roseana Sarney (PMDB-MA), os professores deveriam ter formação na área de música, tópico que Lula vetou e que causou certa polêmica na área. Desde o início do século passado, a disciplina de música está presente nas escolas brasileiras. Na década de 1920, ela fazia parte da grade curricular dos alunos entre 7 e 14 anos, e oito anos depois foi incluída no ensino infantil do Estado de São Paulo. Entre 1930 e 1940, o canto orfeônico (ou coral) foi introduzido como disciplina nas escolas de todo o País, com a criação da Superintendência de Educação Musical e Artística (Sema), liderada pelo compositor Heitor Villa-Lobos, durante o governo de Getúlio Vargas. O projeto persistiu até 1961, quando a Lei de Diretrizes e Bases substituiu o canto orfeônico pela educação musical. Em 1971, uma nova reforma trocou a educação musical pela educação artística, que até hoje é ministrada das mais variadas formas.

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