Heróis da resistência

Delegação na abertura do Pan de Toronto: resultados impressionantes em apenas 20 anos de existência do CPB. Foto: Washington Alves/MPIX/CPB
Delegação na abertura do Pan de Toronto: resultados impressionantes em apenas 20 anos de existência do CPB. Foto: Washington Alves/MPIX/CPB

Top ten no ranking dos países com mais medalhas conquistadas desde os Jogos de Pequim 2008. Sétimo lugar nas Paralimpíadas de Londres 2012, com 21 medalhas de ouro, 14 pratas e oito bronzes. Nono lugar em Pequim 2008, com 16 ouros, 14 pratas e 17 bronzes. Primeiro lugar nos Parapans Rio 2007, Guadalajara 2011 e Toronto 2015. Analisada por qualquer parâmetro, ângulo, dado ou estatística, a evolução da atividade esportiva paralímpica no Brasil, em apenas 20 anos de existência do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), mostra-se, no mínimo, impressionante e elogiável. “O Brasil é hoje uma potência paralímpica. Alcançou grandes resultados e virou referência”, comemora o presidente do (CPB), Andrew Parsons. “Ainda não é uma superpotência, como Rússia e China, mas estamos no caminho. O CPB e seus componentes representam um Brasil vencedor e, ao contrário do que muitos pensam, alegre e vibrante. Essa alegria existe fundamentalmente pelo prazer de viver dos nossos atletas.” Com essa alegria e vibração, o CPB deverá colocar atletas em todas as 22 modalidades das Paralimpíadas Rio 2016 para tentar cumprir uma meta ousada: terminar a competição em quinto lugar no quadro geral de medalhas.

Essa rapidez espantosa na conquista de resultados só foi possível graças à combinação da dedicação comovente dos atletas pioneiros com a definição clara de fontes de recursos e o olhar estratégico da direção do CPB na busca de soluções sociais e esportivas para pessoas com deficiência. “O CPB nasceu em 1995. Desde então, vem evoluindo a cada ciclo paralímpico”, afirma Parsons. “A principal mudança ocorreu em 2001, com a aprovação da Lei Agnelo/Piva. Isso permitiu que o CPB montasse um calendário de treinamentos e competições e planejasse suas atividades com maior segurança”, destaca ele.

Petrúcio Ferreira dos Santos, velocista classe T47 – Tem 18 anos, perdeu um braço aos  2 anos, numa máquina de moer capim. Sua velocidade no futsal chamou a atenção de um treinador, que o encaminhou para as pistas. Com apenas dois anos de carreira, conquistou  o recorde mundial dos 200m, ouro nos 100m e 200m no Parapan de Toronto 2015, o Parasul-Americano do Chile, em 2014, nos 100m e nos 200m, e o recorde das Américas nos 100m. Foto Marcelo Regua/MPIX
Petrúcio Ferreira dos Santos, velocista classe T47 – Tem 18 anos, perdeu um braço aos
2 anos, numa máquina de moer capim. Sua velocidade no futsal chamou a atenção de um treinador, que o encaminhou para as pistas. Com apenas dois anos de carreira, conquistou
o recorde mundial dos 200m, ouro nos 100m e 200m no Parapan de Toronto 2015, o Parasul-Americano do Chile, em 2014, nos 100m e nos 200m, e o recorde das Américas nos 100m. Foto Marcelo Regua/MPIX

A lei nº 10.264, de 16 de julho de 2001, conhecida como Lei Agnelo/Piva, destinou 2% da arrecadação bruta de todos os concursos de prognósticos e loterias federais (Mega Sena, Super Quina, Loto Fácil, etc.), após o desconto dos prêmios. Deste total, 62,96% serão destinados em 2016 ao Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e 37,04% ao CPB (no início a divisão era 85% e 15%). Além disso, a partir do próximo mês de janeiro, o percentual total de repasse das loterias aumentará de 2% para 2,7%. “Essa lei, aliada a outros projetos, nos permitiu montar um calendário de treinamentos, aumentar de forma importante nossos programas sociais e esportivos e planejar atividades com maior segurança”, explica o presidente do CPB.

Em 2015, o orçamento do CPB até outubro foi de R$ 84,48 milhões. A maior parte do dinheiro vem da Lei Agnelo/Piva. Completam a arrecadação um convênio com o Ministério do Esporte (ME), uma parceria com o governo do Estado de São Paulo chamada Time São Paulo, outra com a prefeitura do Rio de Janeiro, o Time Rio, e o patrocínio da Caixa Loterias. Programas temporários voltados para a Rio 2016, como o plano de financiamento e incentivos Brasil Medalhas, são administrados diretamente pelo Ministério do Esporte.

Lorena Salvatini Spoladore, saltadora em distância classe T11 – Tem 19 anos, perdeu  a visão por causa de um glaucoma congênito. Aos 6 anos, estava cega. É medalha de prata no salto em distância no Mundial de Atletismo de Doha 2015 e ouro no salto  em distância no Mundial  de Atletismo de Lyon 2013. Foto: Washington Alves/MPIX/CPB
Lorena Salvatini Spoladore, saltadora em distância classe T11 – Tem 19 anos, perdeu
a visão por causa de um glaucoma congênito. Aos 6 anos, estava cega. É medalha de prata no salto em distância no Mundial de Atletismo de Doha 2015 e ouro no salto
em distância no Mundial
de Atletismo de Lyon 2013. Foto: Washington Alves/MPIX/CPB

O CPB promove o desenvolvimento dos esportes paralímpicos no Brasil em articulação com as confederações e organizações esportivas para pes­soas com deficiência no Brasil. Cinco delas são administradas diretamente pelo comitê: atletismo, esgrima em cadeira de rodas, halterofilismo, natação e tiro esportivo. O projeto da direção do comitê, no curto prazo, é firmar dois legados, um mais conceitual e outro feito, literalmente, de concreto. “O primeiro e principal legado é aproveitar a visibilidade da Rio 2016 para consolidar no Brasil a mudança de percepção em relação à capacidade das pessoas com deficiência. E o segundo, mais ao alcance das mãos, é o de concluir o Centro de Treinamento Paralímpico do comitê, uma obra grande, linda e de importância fundamental em fase adiantada em São Paulo, com investimentos dos governos paulista e federal. O centro será o eixo de suporte do esporte paralímpico no Brasil”, aposta o dirigente.

No quesito legado, talvez a contribuição mais importante do CPB nessas duas décadas de atuação no País seja a criação de uma espécie de tecnologia social, esportiva e, em alguns casos, até de saúde pública, que permite dar sentido e objetivo relevantes à vida de um deficiente desde seus primeiros anos de vida. Os primeiros atletas paralímpicos brasileiros eram, em maior parte, pessoas maduras, que tinham outras atividades além do esporte e descobriram no movimento paralímpico uma forma de aliar a prática de esporte à melhoria das condições de saúde e até de vida.

Gustavo Araújo, velocista classe T13 – Tem 23 anos e diagnóstico da doença degenerativa ceratocone desde 2009. Era atleta convencional. Virou paralímpico em 2014, por causa do avanço da doença, que o fez perder a visão. Foto: Marcio Rodrigues/MPIX/CPB
Gustavo Araújo, velocista classe T13 – Tem 23 anos e diagnóstico da doença degenerativa ceratocone desde 2009. Era atleta convencional. Virou paralímpico em 2014, por causa do avanço da doença, que o fez perder a visão. Foto: Marcio Rodrigues/MPIX/CPB

Apenas isso já seria muita coisa. Mas agora, depois de 20 anos de um trabalho elogiado no Brasil e fora dele, forma-se a geração dos atletas paralímpicos do ciclo CPB, ou seja, aqueles deficientes criados desde o diagnóstico ou o surgimento inesperado (acidentes, etc.) de seus problemas com a perspectiva de poder se tornar um atleta paralímpico e, quem sabe, um campeão local, nacional ou internacional. Os casos do nadador Guilherme Batista Silva, 20 anos, que nasceu com uma doença degenerativa, ficou cego aos dez anos e foi treinado desde os 13 por um professor de natação dedicado a deficientes visuais, e o da própria especialização deste professor, são dois exemplos marcantes da beleza desse processo.

E tudo isso feito, na suprema maioria dos casos, com alegria, como lembra Parsons, e um humor desconcertante de seres com a capacidade invejável de saber rir das próprias dificuldades, como registrou Brasileiros logo após o Parapan de 2007, no Rio de Janeiro, na reportagem “Campeões do Bom Humor” (brasileiros.com.br/ngk10). Atletas com apenas uma mão que arremessam garrafas de isotônico para colegas sedentos que… não tem nenhuma delas. Ou os que, aos primeiros acordes do Hino Nacional em cerimônias coletivas, viram para os amigos em cadeiras de rodas e reclamam: “Seus pais não lhes deram educação? Levantem já para ouvir o hino!”. Ou os que vão à praia e enterram as próteses de colegas na areia. Ou os que “repreendem” amigos com paralisia cerebral quando eles têm espasmos e tremores comuns nesses casos: “Por que encheram a cara ontem? Não sabiam que hoje é dia de competição? Assim não dá…”. E até atleta com apenas uma perna que justifica atrasos com um pedido de desculpas e uma singela explicação: “É que eu achei apenas um pé do sapato ao lado da cama e perdi muito tempo procurando o outro…”. Depois desse show de resultados, aliado à capacidade admirável de rir das próprias mazelas e, de quebra, ainda fazer os outros gargalharem com elas, fica difícil, para um não deficiente, ter coragem, pelo menos por um tempo, de reclamar do namorado ingrato ou do mês em sobra após o fim do salário. 


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