História esquecida de uma senhora de respeito

Pouca gente ouviu falar de Carmen da Silva. Uma lástima. Carmen foi uma das melhores escritoras deste Brasil. Hoje, está esquecida e sem voz. Cabe a alguém trazer essa mulher extraordinária de volta à vida. Nos anos 1960, em um Brasil que a mulher se limitava a ser uma engenheira do lar e coadjuvante de seu homem, Carmen foi introduzindo o feminismo pelas bordas, sem queimar, explicitamente, sutiãs ou paradigmas.

Durante 22 anos, esteve à frente da coluna A Arte de ser Mulher – título que abominava – na revista Claudia. Exerceu a função com primor. Foi a primeira mulher a assinar coluna, respondendo às cartas de leitoras deste país. Antes disso, “Dona Antonia”, ou qualquer outro pseudônimo inventado pelos senhores da redação, tomava a função de orientar as leitoras. Pobres leitoras, penso eu. Imagine-se em um impasse conjugal em que apenas uma revista pudesse lhe aconselhar e você tivesse de engolir recomendações do tipo: “… Deixe de puerilidades, menina”.

Claudia era tida como cartilha da mulher moderna casada e que assim pretendia se manter, até que a morte os separasse. Era assim, até surgir Carmen da Silva. Uma gaúcha que fugiu de um Brasil machista, trabalhou no Uruguai e na Argentina, e voltou ao País, formada em Psicologia, calejada e sábia.

Durante os anos de chumbo, seus textos publicados em A Arte de ser Mulher jamais foram submetidos à censura. Para os militares, assuntos de mulher não influenciavam em nada politicamente. Não se davam conta de que a colunista envolvia-se em propostas da nova imprensa feminina, abordando temas como pílula anticoncepcional e o fato de que a mulher devia deixar de ser coadjuvante da vida do marido para se tornar protagonista da sua própria.

Carmen publicou duas compilações das colunas, A Arte de ser Mulher e O Homem e a Mulher no Mundo Moderno, além da autobiografia Histórias Híbridas de uma Senhora de Respeito. Mas sua grande obra foi mesmo Sangue sem Dono, um romance, publicado em 1963, que mistura vida e ficção. Algo assim: “Numa mulher, a primeira etapa da sabedoria consiste em ler corretamente as mensagens de sua inteligência; a segunda, em interpretar as de seus ovários; até aí, pelo menos, já cheguei. A terceira é quando se logra captar a voz do coração do mundo. Um hino terrível, agônico, violento, fraterno, solidário, desesperado, triunfal, desorbitado e jubiloso. Quem o escutar terá atingido a etapa final, que é o desencadear da Divina Loucura”. De arrepiar, o livro não teve reedições recentes. Pode ser encontrado apenas em sebos e é tarefa difícil. O meu veio de Cuiabá e custou seis reais.
Carmen se tornou minha escritora favorita. Uma escrita com verdade, que pulsa e arrebata. Ela morreu aos 66 anos, em 29 de abril de 1985, horas depois de sofrer um aneurisma abdominal, enquanto dava uma palestra em Volta Redonda (RJ). Após ter mexido com toda uma geração de mulheres, Carmen da Silva, gaúcha estugada, como ela se definia, merece ser republicada e retornar às prateleiras, para ajudar a evitar que as mulheres voltem a ser “mulherzinhas”, depois de tanta luta.

*Clarah Averbuck é escritora

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