Marcus Pereira nunca escondeu que sua empresa de publicidade propôs a um cliente a distribuição de um disco como brinde no fim de 1967 para fazer a sua vontade e a de seus amigos de bar de gravar as músicas de Paulo Vanzolini. A aventura iniciada no bar Jogral (na época na Galeria Metrópole, região central de São Paulo) virou uma gravadora respeitada nos anos 1970 por sua qualidade.
Marcus Pereira era dono de uma agência de publicidade. Paulo Vanzolini era presença constante no bar. Participava de desafios musicais e mostrava suas canções. A mais famosa delas, “Ronda”, já havia sido gravada pela cantora Inezita Barroso na década anterior, mas Vanzolini jamais quis viver de música. Em 1966, Nara Leão gravou a sua “Leilão”, e Jair Rodrigues e Elis Regina, “Volta por Cima”. Pereira conta no livro sobre a história do bar Jogral que a insatisfação de Vanzolini após a gravação de “Volta por Cima” havia feito com que o compositor decidisse que suas músicas não seriam mais gravadas.
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Por trás das obras primas
A insistência dos amigos o fez mudar de ideia. Em 1967, foi gravado Onze Sambas e Uma Capoeira e no texto de apresentação Pereira destaca que o disco “será sempre uma reprodução do nosso grupo de amigos reunido para ouvir o Paulinho”.
Em 1968 e 1969, o empresário lançou ainda discos de Renato Teixeira e de Chico Maranhão, juntos e solo. “O primeiro disco que gravei, foi feito na sala da casa dele”, diz Teixeira. Ele lembra que Pereira gostava muito de conhecer as músicas que os amigos estavam compondo. “Foi a primeira pessoa a ouvir ‘Romaria’. Quando terminei, chorou”, recorda-se.
A repercussão desses trabalhos e a decepção de Pereira com a publicidade deram início a uma mudança de rumo que só seria concluída em 1974, quando o publicitário trocou de vez a agência pela Discos Marcus Pereira. O jornalista Aluízio Falcão, que em 1964, com o início da ditadura militar, foi obrigado a trocar Recife por São Paulo, já trabalhava como redator na agência. Devido a sua proximidade com os movimentos culturais de seu estado, foi nomeado diretor artístico da gravadora.
A maior ousadia de Pereira, no entanto, foi produzir a coleção sobre música popular do Brasil. São 16 discos, divididos em música do Sul, do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste/Sudeste. “Na época, critiquei a coleção por juntar artistas populares regionais com urbanos comerciais. Hoje, dou valor ao trabalho, que registra a cultura popular do País”, afirma o crítico José Ramos Tinhorão.
Pesquisa folclórica
Falcão lembra que, mesmo sem experiência no mercado fonográfico, eles decidiram montar coleções documentais de música brasileira. Em 1972, os quatro discos de Música Popular do Nordeste iniciam a série. “A nossa ideia era recuperar a música popular colhida na fonte, sem releituras. Depois, dar um tratamento com gravações em estúdio, junto com artistas comerciais urbanos”, explica. Participaram da coleção: Elis Regina no Sul, Jane Duboc no Norte e Nara Leão, Clementina de Jesus, Dona Ivone Lara e Renato Teixeira no Centro-Oeste/Sudeste. O objetivo era aumentar o interesse do público em geral pela série e evitar que o trabalho parecesse excessivamente acadêmico.
Falcão entrou em contato com o escritor Hermílio Borba Filho, para planejar e coordenar o projeto. Borba o apresentou ao Quinteto Violado, que fez a pesquisa e gravou as músicas da coleção, premiada pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro e pela Associação dos Críticos de Arte de São Paulo. Marcelo Melo, integrante do grupo, diz que os discos foram importantes não só para sua carreira, mas para outros artistas da região. “O Sérgio Cabral disse na época que esse trabalho foi um divisor de águas para a música do Nordeste”, afirma.
A gravação dos discos do Quinteto Armorial foi outro passo importante em relação à cultura nordestina. Os armorialistas foram um movimento que buscava criar uma cultura erudita baseada nas raízes populares, criado por Ariano Suassuna. “Eles lançaram todos os nossos quatro álbuns e nos permitiam gravá-los quando queríamos, pois não seguiam a primazia do mercado”, afirma Antonio Nóbrega, que fez parte do grupo. Em 1974, a série continuou com Música Popular do Centro-Oeste/Sudeste. Theo de Barros, que dirigiu essa coleção, destaca a importância da Discos Marcus Pereira na descoberta de novos talentos e na valorização do trabalho de veteranos esquecidos. “Além do levantamento folclórico, o projeto revelava autores pouco conhecidos que mereciam destaque”, afirma.
É nessa fase que Falcão deixa a sociedade e vai para o Estúdio Eldorado, onde segue na mesma toada. Lá, produz o primeiro disco do sambista paulista Geraldo Filme (na época o compositor tinha 52 anos) e A Música do Cangaço, por exemplo.
Pereira lança o Música Popular do Sul no ano seguinte, com direção musical do maestro Rogério Duprat. Um ano depois, Música Popular do Norte, dirigido por Radamés Gnattali, fecha a série. A cantora paraense Jane Duboc lembra de ter gravado canções de Waldemar Henrique para essa coleção. “Ele era amigo da minha família e eu me senti em casa gravando músicas da minha infância”, afirma.
Choro e velha guarda
Voltada essencialmente para a música brasileira, a gravadora valorizou também a música instrumental, como os discos em que Arthur Moreira Lima toca choros e serestas de Ernesto Nazareth. Lançou discos ainda do flautista Altamiro Carrilho, do clarinetista Abel Ferreira, do violonista Canhoto da Paraíba e da velha guarda de escolas de samba do Rio e os tributos aos compositores Donga e Garoto. Mas os discos mais valorizados do catálogo são os dois primeiros de Cartola, que a EMI comercializa ainda hoje. Até 1974, quando estava com 66 anos, ele jamais havia gravado um disco solo. Depois dos álbuns lançados pela Marcus Pereira, Cartola fez outros dois. Ele morreu em 1980.
João Carlos Botezelli, o lendário produtor musical Pelão (leia mais sobre ele na pág.110), já havia proposto o registro de Cartola às maiores gravadoras do País, que tinham recusado o projeto. Pelão conta, no entanto, que o trabalho do qual mais se orgulha dentro da Marcus Pereira é a coleção História das Escolas de Samba. São quatro discos que reúnem a velha guarda das mais tradicionais escolas de samba do Rio: Portela, Mangueira, Salgueiro e Império Serrano.
Apesar da importância e dos elogios da crítica a muitos de seus discos, a Marcus Pereira passava por dificuldades. Para Falcão, o problema era a falta de interesse das gravadoras em distribuir o selo. Para complicar, os empréstimos públicos para a produção da série sobre música popular venciam e não havia dinheiro para saldá-los.
Marcus Vinícius de Andrade assumiu a direção artística em 1977. “Eles vinham com o padrão da publicidade. Os gastos eram gigantes para a indústria fonográfica”, conta Andrade. Ainda assim, eles conseguiram gravar nessa fase a Banda de Pífanos de Caruaru e o maestro Walter Smetak, guru dos tropicalistas, entre outros.
Em 1982, em meio a uma crise pessoal e financeira, Marcus Pereira se suicida. É o fim da gravadora. Mas não o fim da influência da Discos Marcus Pereira no surgimento de pequenos selos.
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