Holocausto Carandiru

Imagine a cena como se fosse um filme. Centenas de policiais militares treinados para manter a ordem, alguns com apenas revólveres calibre 38 na mão, reagem a presos amotinados e, não se sabe como, fortemente armados. Entrincheirados em barricadas que montaram nos corredores de um dos pavilhões, o de número 9, eles atiram num ritmo de foguetório em dia de jogo do Brasil na Copa do Mundo. São homens acostumados a usar armas e a acertar seus alvos – assaltantes, latrocidas e exterminadores da periferia. Nada restou aos PMs senão revidar para se protegerem.

O saldo desse confronto, ocorrido no fim da tarde do dia 2 de outubro de 1992, foi dos mais estranhos. Do lado da lei, absolutamente todos os policiais saíram ilesos. Nem um dedo mindinho atingido, nem uma bota furada, nem uma farda rasgada ou um susto no quepe furado a bala. Nada. Do outro lado, 119 mortos, pelo número oficial. Os PMs estavam em dia iluminado. Mesmo de longe, conseguiram atingir no peito e na cabeça os presos que estavam dentro das celas – a maioria dos executados.

Se assistisse uma trama assim no cinema, você certamente pensaria que é mais um episódio da série “Corra que A Polícia Vem Aí” – sem Leslie Nilsen, que morreu há alguns anos. Mas essa tem sido a versão contada pela defesa dos PMs que estão sendo julgados pela morte de 70 daqueles presos, cujas fotos dos corpos arrumados lado a lado pelo pátio chocaram o mundo na época. A mesma versão que a imprensa tem acatado de forma passiva e tediosa, misto de cansaço que esses julgamentos intermináveis devem estar causando a pauteiros, jornalistas e editores. 

Vinte um anos se passaram e aquele  holocausto canibal – ops, os PMs não comeram os corpos – parece não chocar mais ninguém. O tempo ajudou. Se bem que, pouco depois, uma pesquisa que não me lembro de quem, apontou que mais de 70% da população apoiaram a matança. Afinal, bandido bom é bandido morto. O olho por olho e o dente por dente do código de Hamurabi, uma das primeiras ordenações jurídicas da humanidade, já existia na época, portanto. Hoje, está bem perto de ser formalizada por um Congresso Nacional de onde se pode esperar tudo. 

Em 20 anos, a violência no Brasil aumentou, os políticos nunca estiveram tão desmoralizados, a polícia também. A impunidade cresceu. Nesse contexto, a imprensa é reflexo da sociedade. Jornais, revistas, sites e blogs destacam o que o leitor quer de fato ver ou pensa que quer ver. Não é o meu caso. Talvez eu seja a exceção. A indiferença ante a cobertura do julgamento dos PMs reflete essa postura de descrença e descrédito das instituições. Noticia-se que a PM revidou, matou 119 homens e ninguém se posiciona criticamente no sentido de perguntar ou ressaltar: se foi assim, por que nenhum PM foi ao menos ferido?

Um fato assim nos remete à crise de valores éticos e morais que temos vivido nos últimos anos no Brasil. Em junho, acreditou-se – e continuo a acreditar – que algo estava começando a mudar com as manifestações que tomaram as ruas. No meu filme, imagino passeatas em que cidadãos de bem pedem justiça pelos mortos do Carandiru. Que essa vergonha da arbitrariedade, do abuso de poder e da certeza da impunidade seja finalmente sepultada e que seu exemplo prenuncie novos tempos. Mas, ao que parece, existem outras prioridades. Quem sabe um tema assim, no futuro, entre na pauta?  Afinal, precisamos comemorar, estamos recuperando a nossa capacidade de nos indignar com tudo que há de errado neste país.

 


Comments

2 respostas para “Holocausto Carandiru”

  1. Porque a Imprensa nunca publicou a fixa dos 111 inocentes, mortos?. Eram por acaso batedores de carteiras?, ou furtadores de super mercados, feiras livres etc. Quanto as estatísticas transcritas na imprensa sobre a opinião pública, deve ter havido um ledo engano, esse que 70% foram favoráveis a ação da PM é pura balela. Aqui na minha cidade de Santos, no mínimo na opinião do povão nas ruas, atingiu a 99% a favor da ação dos PMs.

  2. Presidio de segurança máxima. Haveria algum inocente preso por lá? Algum ladrão de galinhas ou algo semelhante? claro que não, vejo que o mínimo foi feito, o que os PMs fizeram. Isenção de culpa aos PMs. (sou apenas um cidadão civil)

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