Homem de palavras

Bráulio Mantovani não gosta da expressão roteirista. Prefere ser chamado de escritor de cinema. Se fizermos uma lista dos dez filmes mais importantes produzidos no Brasil na última década, seu nome estará nos créditos de ao menos três: Cidade de Deus (2002), O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006) e Tropa de Elite (2007).

Formado em Literatura e Língua Portuguesa pela PUC-SP, Mantovani iniciou sua carreira como roteirista de teatro ainda nos anos 1980. Nos anos 1990, mudou-se para Nova York, onde trabalhou em produções para a TV com o diretor polonês Zbig Rybcynski. Já decidido pela carreira cinematográfica, voltou ao Brasil, onde escreveu o roteiro do premiado curta Palace II (2001), de Fernando Meirelles e Kátia Lund.

Celebrado como um dos mais criativos roteiristas do País, Mantovani aceitou abandonar por alguns instantes a finalização de seu primeiro romance, Perácio – Relato Psicótico, para conceder uma entrevista à Brasileiros, sobre sua carreira e a missão de dar continuidade à história do capitão Nascimento, na sequência de Tropa de Elite 2.

Brasileiros – Pode-se dizer que Cidade de Deus e o primeiro Tropa de Elite se completam?
Bráulio Mantovani –
Penso que os dois filmes, de alguma maneira, conversam. E talvez seja correto dizer que eles se completam. Ambos tratam dos temas da violência urbana carioca associada ao tráfico de drogas. Cidade de Deus mostra como funciona o lado dos traficantes. Tropa de Elite exibe o funcionamento da polícia. Não acho exagero dizer que os filmes são dois lados de uma mesma moeda. O próprio Padilha, quando me procurou para entrar no projeto, disse que Cidade de Deus era uma referência importante para Tropa de Elite. A forma narrativa de ambos é parecida. Eu assino ambos os roteiros, e o grande e genial Daniel Rezende montou os dois filmes. Tanto em Cidade de Deus como em Tropa de Elite, eu me envolvi na montagem, formando a trinca diretor-montador-escritor. Nos dois casos, os diretores (Fernando Meirelles e José Padilha) se comportaram da mesma forma: zero de egotrip. Tanto Meirelles como Padilha trabalham pela qualidade dos filmes, fazendo com que todos os envolvidos sintam-se autores da obra.

Brasileiros – Quais os principais desafios em trabalhar a sequência de um filme como Tropa de Elite?
B.M. –
Acho que os desafios são sempre os mesmos em qualquer filme. O primeiro é ter certeza de que há uma boa história para ser contada. O segundo, e talvez mais importante, é saber contar bem a história. Uma boa história se transforma em nada quando a narrativa não funciona. Da mesma forma, uma história banal pode se transformar em um grande filme se for narrada de maneira original. No caso de Tropa de Elite 2, nós sabíamos que a história era boa. Há tanto material original, tantos acontecimentos surpreendentes no universo da segurança pública do Rio de Janeiro, que seria falsidade dizer que é um grande desafio encontrar ali uma boa história. O mais difícil é escolher quais grandes histórias têm de ser cortadas ou abandonadas. É impossível colocar tudo aquilo em um só filme. Foi natural, portanto, partir para a sequência de Tropa de Elite. Em relação ao segundo desafio (como contar a história), Tropa de Elite 2 foi, em alguns aspectos, mais simples que outros filmes que escrevi. Nós tínhamos um personagem fantástico (Nascimento), cujas possibilidades dramáticas não tinham sido exploradas no roteiro do primeiro filme. Talvez o mais complicado tenha sido compatibilizar os desdobramentos dramáticos do personagem com as limitações da realidade. O Padilha é um cara que vem do universo do documentário. Eu sou um escritor de ficção. A realidade para mim é apenas um nutriente para a imaginação. O Padilha enfatiza os fatos, enquanto eu busco a verdade dramática na lógica da narrativa. Às vezes, essa diferença gera desentendimentos. Mas nós soubemos compatibilizar as duas visões, ajustando o drama de acordo com o que acontece na realidade. E o resultado foi muito bom. Tropa de Elite 2 é, em todos os aspectos, um filme muito superior ao primeiro.

Brasileiros – Li em uma entrevista de Maria Ribeiro que a personagem dela tinha características mais de esposa passiva. A disposição para questionar o marido teria aparecido ao longo dos ensaios para o primeiro filme. Você costuma alterar o roteiro durante o processo?
B.M. –
Não sei se ela era exatamente passiva no roteiro. Acho que ela era mais chata e “reclamona”. A Maria deu mais nuances à personagem, que ficou melhor no filme que no roteiro. Isso acontece muito, em todos os filmes. Acontece o contrário também. Quer dizer, às vezes, os atores melhoram os personagens. Às vezes, os personagens são melhores no roteiro que na tela. Trata-se de tentativa e erro. Eu gosto de participar de ensaios para polir, afinar o roteiro, mas odeio ir às filmagens. Filmagem é chato demais. É quase um mal necessário. Prefiro me concentrar na escrita e, posteriormente, participar da montagem quando me dou muito bem com o diretor e o montador.

Brasileiros – A ausência de bons diálogos sempre foi munição para a crítica negativa ao cinema nacional. Seus roteiros são notórios pelos bons diálogos.
B.M. –
Eu tento escrever diálogos que soem verdadeiros e acredito, sem nenhuma modéstia, que sou bom nisso. Os diálogos são apenas uma pequena parte do trabalho de dramaturgia. O software que eu uso para escrever roteiros produz estatísticas que permitem avaliar quanto do roteiro é ação e quanto é diálogo. Nos meus roteiros, os diálogos costumam corresponder a 25% do total do texto. O que os personagens fazem é mais importante do que o que eles dizem. De todas as formas, é fundamental escrever diálogos que funcionem e soem naturais e verdadeiros. O problema que eu vejo em muitos filmes brasileiros é que os diálogos parecem ter sido escritos em um registro linguístico mais próximo da língua escrita que da oralidade, mesmo quando tentam soar informais. É um problema de roteiro, portanto. O problema se torna pior quando os atores, ao invés de “amolecerem” as falas escritas, tendem a impostar a voz, gerando ainda mais artificialidade nos diálogos. Eu acho que isso se resolve de duas maneiras. Primeiro, é preciso apurar a audição e ficar atento à sintaxe das muitas falas cotidianas. Não é apenas no vocabulário que se manifestam os traços característicos da oralidade. A sintaxe é muito mais definidora que o vocabulário. É fácil para um ator trocar uma palavra formal por uma gíria ou expressão coloquial. Mais difícil é improvisar a construção da fala. Para escrever tanto os diálogos como as ações, o escritor precisa agir como ator. Ele precisa se colocar na pele do personagem e pensar primeiro: “O que eu faço agora?”. Depois pensar: “Preciso dizer alguma coisa?”. Em seguida, se perguntar: “O que eu quero dizer, de verdade?”. Só, então, se perguntar: “Como eu digo isso?”. Há uma diferença muito grande entre o que se diz e o que se quer dizer. Existe sempre um subtexto em qualquer fala relevante. Os escritores novatos tendem a registrar o subtexto no diálogo. Está errado. É preciso deixar espaço para o espectador entrever o verdadeiro significado de uma fala nas frestas entre as palavras.

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