Tem gente que não gosta de mudar de casa porque dá muito trabalho tirar tudo das estantes, das paredes e dos armários, coisas que a gente fica guardando e nem lembra, separando o que fica e o que vai para o lixo, mas estou gostando muito destes dias de arrumação geral.
Até que fiz poucas mudanças de casa na minha vida adulta. Quando casei, fui morar literalmente no Paraíso (é o nome de um bairro aqui de São Paulo). De lá a família mudou para Bonn, na então Alemanha Ocidental (havia ainda duas Alemanhas), onde fui correspondente do Jornal do Brasil e assim conheci a Europa dos meus pais fazendo reportagens.
Voltamos para morar no Butantã, e lá passamos trinta belos anos no casarão que construímos (tinha até horta, pomar e galinheiro no tempo em que as filhas eram pequenas).
Esta semana chegou a hora de mudar de novo. Em 2005, um ciclo da vida tinha se encerrado. Com a morte de minha mãe, colocamos a casa à venda e fomos morar provisoriamente num apartamento alugado no Jardim Paulista, onde tinha passado parte da infância e agora viviam minhas duas filhas, a poucas quadras de distância.
A ideia era ficar por aqui mesmo, um pedaço de São Paulo em que ainda dá para fazer quase tudo a pé, como numa cidade do interior, mas demorou bem mais do que a gente esperava para conseguirmos vender a casa e mais ainda comprarmos um apartamento do nosso gosto.
Achamos no final do ano passado um bem pertinho de onde moramos. Estava meio detonado, pedindo uma reforma geral, coisa que me apavora, mas minha mulher gosta. Por coincidência, o jovem que cuidou da obra, logo descobrimos, era filho do engenheiro que tinha construído a nossa casa.
Ficou tudo uma beleza, do jeito que a gente queria. Como o novo fica a uma apenas quadra do apartamento velho, pela primeira vez pude acompanhar o dia a dia de uma obra e até dar uns palpites. Dizem que reforma dá até separação de casal, mas no nosso caso foi um belo trabalho de parceria, nos entendemos bem até nos mínimos detalhes.
Agora, que já está tudo encaixotado, só esperando o caminhão da mudança, marcado para sexta-feira, fico olhando para as paredes e estantes vazias do escritório.
Lá se vão para a casa nova, que espero seja a última, milhares de fotografias e filmes, o convite de casamento dos meus pais (em 1945, bem quando a guerra tinha acabado de acabar, oferecendo um café da manhã após a cerimônia), os originais dos meus 19 livros, recortes das mais de três mil reportagens que já escrevi, crachás de empresas e das coberturas que fiz pelo mundo inteiro (entre elas, as da morte de dois Papas e duas Copas do Mundo, passando pela Campanha das Diretas, corridas de Fórmula-1, eleições aqui e lá fora), diplomas de prêmios, troféus e medalhas, faixas e camisas do São Paulo campeão, uma vasta coleção de bonés, desenhos das filhas e um esboço de Oscar Niemeyer, gravuras do Zélio, um manuscrito da Elis Regina votando em Dom Paulo, Dom Hélder e em mim no Premio Carlito Maia, em 1982, um pôster da campanha presidencial de 1989, na ilha de Alcântara, e uma velhíssima máquina de escrever Remington, que ganhei de presente naquele ano quando completei 25 anos de jornalismo (em outubro agora, já vou fazer 45, o tempo passa) – todas estas pequenas coisas, enfim, que resumem a vida de qualquer um de nós.
Esta Remington é especial, como todas as outras inutilidades que a gente vai carregando de um lado para outro. Já na reta final da campanha para presidente de 1989, a primeira eleição direta desde o golpe de 1964, fomos almoçar num restaurante no interior de Minas que também vendia velharias.
Entre elas, estava esta máquina de escrever, já meio enferrujada, que eu logo cobicei, mas meus colegas não me deixaram levar porque ainda tínhamos muitos comícios pela frente. Como carregá-la?
Já tinha até me esquecido da dita cuja, quando no final da festa no Bar Avenida, poucos dias antes da eleição, o então candidato Lula e a turma da campanha subiu ao palco para me entregar o presente. Eles tinham comprado a máquina sem eu saber.
A relíquia parece que pesa uma tonelada e não tem indicação de modelo – deveria ser o único fabricado nesta época imemorial. Foi comprada na Casa Pratt e nela se lê: “Made at Ilion, N.Y., U.S.A”.
Fico pensando como e quando chegou ao Brasil, quem a comprou primeiro, por quantas mãos já passou, o que nela foi escrito. Quando chegou para mim, já não escrevia mais, mas foi a única máquina que guardei comigo. Minha mulher deu um trato nela e agora vai ficar na sala da casa nova ao lado dos retratos da família.
Bons tempos, aqueles Bons tempos, esses Os tempos da vida dependem de cada um de nós, não das circunstâncias do momento. Tudo passa, eu sei, mas o caminho percorrido fica na nossa alma, lembrança revivida cada vez que se vai mudar de casa. Ontem só não foi melhor do que poderá ser amanhã para quem nunca perde a fé na profissão de jornalista, nos brasileiros e na vida.
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