José Eli da Veiga acompanha de perto as questões do meio ambiente desde o começo dos anos 1970, quando o conceito de desenvolvimento sustentável nem existia e ele, aos 22 anos, desembarcava na França para um exílio de dez anos. Perseguido pela ditadura militar brasileira devido à militância no movimento estudantil e por atuar na direção clandestina de uma organização de esquerda,Veiga voltou para o Brasil doutor em Desenvolvimento Econômico e Social, depois da promulgação da Lei da Anistia. Nos anos seguintes, colecionou cinco pós-doutorados e foi, por três décadas, docente da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo (USP). Hoje professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da mesma universidade, Veiga criou em março deste ano o site Sustentáculos (sustentaculos.pro.br), de acesso gratuito, dirigido a professores de ensino médio que queiram se informar sobre sustentabilidade: “É todo um universo. Cada um dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável definidos em encontro da ONU envolve uma imensidão de conceitos”.
No âmbito global, a principal preocupação de Veiga é com o aquecimento provocado pela emissão de gases de efeito estufa, cuja redução foi o cerne do Acordo de Paris, que acaba de entrar em vigor. “Os países tendem a ser mais ousados na redução das emissões em função da percepção que eles têm das inovações tecnológicas”, afirma Veiga, ressaltando que a China aderiu ao acordo porque encontrou alternativa para o carvão: “Agora ela é campeã em energia eólica, em solar”. O esforço, no entanto, não é suficiente, ainda mais com as incertezas decorrentes da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. De acordo com o economista, mesmo se os países reduzirem o que prometeram, “estaremos muito mal em 2050”. No Brasil, ele aponta como uma questão ainda mais crucial o fato de 50% da população não ter acesso à rede de esgoto: “É perverso. Crianças que convivem com esgoto a céu aberto têm diarreias frequentes. Isso é gravíssimo. Até os 5 anos, as crianças que não morrem ficam com sequelas”.
Brasileiros – Como o senhor recebeu a notícia de que a Alemanha, que usa gasolina e diesel, vai banir carro a combustão a partir de 2030?
José Eli da Veiga – É uma questão de saber se vai ser possível. Fixar uma data é complicado, embora ajude a impulsionar todos os atores nessa direção. Depende muito de inovações e de uma série de variáveis econômicas. Que a tendência é essa não tem mais dúvida nenhuma. Não é só na Alemanha. Vai acontecer no mundo inteiro.
A Alemanha foi só o primeiro país a marcar data?
A Alemanha está sempre mais avançada, porque tem mais inovação tecnológica. Então a parte política pode avançar também. Em geral, o atraso político está muito correlacionado com o atraso em termos de ciência e tecnologia. E a Alemanha é vanguarda. Foi a primeira a tomar uma decisão radical em relação à energia nuclear. Eles decidiram acelerar o fim da energia nuclear logo depois de Fukushima (acidente ocorrido no Japão, depois que a Central Nuclear de Fukushima foi atingida por um tsunami, em março de 2011). Não constroem mais nada de novo e começam um plano de ir fechando as usinas nucleares mais antigas.
Vão substituir pelo quê?
Aí é que está. Falaram de uma tendência a voltar para o carvão, o que seria a pior coisa do mundo. A energia nuclear é controversa por uma série de razões, mas, do ponto de vista do aquecimento global, é benéfica. Ela emite poucos gases causadores do efeito estufa. Ficou uma controvérsia sobre a volta ao carvão, mas os últimos dados mostram que, aparentemente, os renováveis, tipo eólica e solar, começaram a ocupar o espaço da eletricidade gerada por nuclear. Por incrível que pareça, na Alemanha, que tem tão pouco sol, o setor está mais avançado.
Até que ponto avanços tecnológicos podem equacionar os problemas ambientais?
Os problemas ambientais só serão resolvidos com ciência e tecnologia. Não tem outra saída. Por isso que o Brasil tem uma situação triste. É um país que, em relação à ciência e tecnologia, é infantojuvenil. Não é uma questão de discutir o governo A ou B. Não passa por aí. A sociedade brasileira ainda não acordou para a ciência e tecnologia. E não pressiona nessa direção. Então os governos vão fazendo o que podem, do jeito que dá.
Não tem planejamento energético?
Tem um plano de ciência e tecnologia que vinha sendo elaborado. Foi até engraçado, porque ele acabou divulgado no site do ministério na manhã em que Dilma Rousseff deixou o governo.
Como o senhor avaliou esse plano?
Na verdade, é uma série de diretrizes que foram bem elaboradas com a comunidade científica. Aparentemente foi mantida, apesar de o Ministério de Ciência e Tecnologia ter sido obrigado a fazer um casamento forçado com as Comunicações e ter um ministro (Gilberto Kassab) que entende talvez de corretagem de imóveis. Ele era corretor de imóveis, não era? E virou ministro da área em ano de eleições municipais, sendo que ele é presidente de partido. A prioridade eram as eleições municipais, numa fase que juntaram dois ministérios que não conversavam.
O fato de ele ser engenheiro de formação não ajuda?
Ele não tenta dizer que entende dessa área, mas promoveu diálogos com a comunidade científica. Tem um monte de equívocos. Dos dois lados. A pressão dos cientistas era muito para manter o ministério como antes, por causa do orçamento. Mas o orçamento para pesquisas científico-tecnológicas só está parcialmente nesse ministério. Outros ministérios, como o da Educação e da Agricultura, têm grandes parcelas do orçamento. E tem também nos estados. Em São Paulo, grande parte está ligada à Fapesp. Outro problema é que, na reestruturação para juntar os dois ministérios, o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e outras agências acabaram ficando no terceiro escalão. Quando foi criado, o CNPq era ligado diretamente ao presidente. Não tinha nem ministério. O CNPq foi criado em 1951 e o ministério em 1985.
O buraco na camada de ozônio, que colocou o mundo em alerta a partir década de 1980, está aparentemente resolvido. O que aconteceu?
É um ótimo exemplo para contrastar com o que vem acontecendo há tantos anos com a questão do clima. O acordo sobre o ozônio não é só o melhor acordo ambiental. É considerado o melhor acordo de todos os tempos. Em termos de eficácia, não existe nenhum acordo internacional que seja comparado ao do ozônio.
Qual a explicação?
Quem começou a negociar foram poucos países. Era um clube de países desenvolvidos, que produzia os gases que estavam estragando a camada de ozônio. Eram basicamente alguns países europeus, os Estados Unidos e o Japão. Ao mesmo tempo, a opinião pública desses países ficou muito assustada. O problema maior era o risco de câncer de pele para quem morava no Hemisfério Norte. A opinião pública dos países implicados se mobilizou e pressionou os governos.
Ainda assim, demorou 15 anos. Por quê?
As empresas americanas foram mais ou menos rápidas a perceber que valia a pena fazer um acordo porque a inovação tecnológica estava surgindo, estava meio na prateleira. Mas as inovações tecnológicas não tinham ocorrido ainda na Europa. Quem mais resistia eram as indústrias europeias, principalmente as inglesas e francesas. O presidente Ronald Reagan teve um papel muito positivo para que o acordo fosse para a frente, contrariando inclusive o Partido Republicano. Existia um grupo no Partido Republicano que era contra, pensando que substituir determinados gases poderia dar prejuízo. Mas as empresas estavam a favor.
No caso da camada de ozônio, era mais fácil de resolver porque o buraco era reação a substâncias específicas?
Eram vários gases, denominados CFCs, cloro, flúor e carbono. Precisava substituir a produção. Na hora que as empresas francesas e inglesas alcançaram a inovação tecnológica, elas também passaram a pressionar para assinar e os governos europeus começaram a mudar de posição. E como um cara como o Reagan teve um papel tão importante para facilitar as coisas? Não dá para dizer que foi apenas por isso, mas Reagan teve câncer de pele. Era sensível à questão. O diplomata que chefiava a delegação americana contou em livro que teve momentos com a cabeça a prêmio, por causa da pressão negativa do Partido Republicano. Se não fosse o Reagan, teria tido problemas ainda mais sérios. Bom, era um grupo pequeno de países que ficou conversando por 15 anos. Só aí fizeram uma convenção, que previa um protocolo, assinado depois de alguns anos. É o Protocolo de Montreal. Fizeram de forma flexível. Os cientistas políticos falam em acordos experimentalistas, no sentido de que são flexíveis, permitem que a negociação flua. Eles comparam isso a um padrão de acordos que chamam de orquestrados. São acordos pesados, difíceis de mudar.
Quando os representantes dos países vão com propostas fechadas?
É. O Protocolo de Kyoto (acordo negociado em 1997, em Kyoto, no Japão, para redução dos gases que contribuem para o aquecimento global) quis imitar o processo de Montreal. Só que aconteceu tudo ao contrário. Foi feito às pressas, com mais de 170 países, e a convenção foi do tipo orquestrado, antigo. Então, tudo ficou travado praticamente até agora. O acordo de Paris, em dezembro de 2015, é o primeiro sinal rumo à flexibilização.
Essa é a diferença básica entre o Tratado de Kyoto e o de Paris?
Kyoto foi muito ruim. Venceu a tese de que não podia ter imposto, que tinha de criar mercados de carbono (sistema pelo qual empresas que diminuem sua emissão de gases poluentes obtém créditos que podem ser vendidos nos mercados internacionais). Agora, 20 anos depois, vemos que a contribuição desses mercados para reduzir as emissões foi mínima.
Qual a opção?
Começaram então a surgir as taxas de carbono que tinham sido praticamente vetadas em Kyoto. Alguns Estados do Canadá estão aplicando essas taxas. Para continuar emitindo gases de efeito estufa o sujeito tem de pagar. Mas esses estados canadenses não estão fazendo nada muito radical, para não perder competitividade. Se em Kyoto tivesse passado a ideia do imposto, tudo estaria acontecendo de uma forma mais coordenada. Em Kyoto venceu a tese de que só era responsável pelo aquecimento global quem se industrializou antes.
Países com alto grau de desenvolvimento?
Exatamente. Fizeram uma lista de 40 países emissores de gases que provocam aquecimento global. E impuseram limitações só a esses 40 países. Não dá para dizer que a responsabilidade é apenas deles porque eles acumularam mais gás na atmosfera desde os tempos da Revolução Industrial. Parece até justificável. Só que eles também fizeram as grandes inovações quando, por exemplo, começaram a usar petróleo. Não se pode puni-los por terem sido inovadores. Além disso, em pouco tempo ficou defasada a lista de 40 países emissores feita em Kyoto. A China, que não estava na lista, hoje é a principal emissora. Emite mais do que os Estados Unidos.
Por causa do carvão?
Carvão, petróleo, todos os fósseis. A China ainda usa muito carvão. E no surto de crescimento que teve nos últimos tempos, ela emitiu em demasia gases de efeito estufa. Nessa situação do aquecimento global, a melhor imagem é que todo mundo está no mesmo barco. O barco está fazendo água. Alguns países estão fazendo um furo enorme há não sei quanto tempo. Eles vão ter que tampar, mas enquanto isso os outros não podem continuar furando.
E a diferença para Paris?
Nas novas negociações, a China mudou de posição, porque já não pode dizer que não é uma grande emissora. A China negociou direto com os Estados Unidos. A Índia, outra grande emissora, está mais atrasada. Em Paris venceu uma ideia interessante, que vai no sentido da flexibilização, mais na linha do ozônio. Em vez de impor metas de cima para baixo, cada país dizia o que podia fazer. Mudou a lógica da convenção. Muitos países assumiram compromissos unilaterais de abaixar suas emissões. É claro que, se fizermos a conta do que eles ofereceram, ainda estaremos muito mal em 2050. Mas Paris também aprovou mecanismos de revisão. Daqui a cinco anos, vai ter uma revisão completa disso. Os países tendem a ser mais ousados na redução dos gases do efeito estufa em função da percepção que eles têm das inovações tecnológicas. A China se animou porque está bombando. Agora é campeã em eólica, em solar.
Estão saindo do carvão?
Ainda não, porque eles não podem desmobilizar todas as usinas que montaram a carvão nos últimos 30 anos. Ainda têm esse passivo, mas tudo o que é novo, principalmente na área de eletricidade, é totalmente renovável. Três anos atrás era a metade. Metade dos novos investimentos era de renováveis e metade continuava a ser de fósseis. Do ano passado para cá, alterou completamente. No mundo todo, tudo o que foi ajuntado em termos de novas instalações para gerar energia elétrica é de renovável. E na China é muito mais.
E a energia nuclear? O senhor organizou um livro com autores com posições divergentes. A que conclusão chegou?
Mudei de posição principalmente por causa de Fukushima. Do ponto de vista do clima, a energia nuclear é positiva, porque ela quase não tem emissão de gases de efeito estufa. Quais os senões? Os riscos de acontecer coisas como Chernobyl e Fukushima e morrer muita gente. E o preço, porque para fazer uma usina segura está ficando cada vez mais caro. Então estaríamos fazendo uma energia cada vez mais cara.
Como foi essa mudança?
O risco é muito menor. Fukushima, com tudo aquilo, com o maremoto que teve, se contabilizarmos os prejuízos, até em termos de vidas humanas, é muito menos do que se imaginava. Pelo cenário de Chernobyl, dava a ideia de que seria uma catástrofe tremenda.
O senhor ficou então mais a favor da usina nuclear?
É bem complicado, muito delicado, particularmente num país como o Brasil, dizer que se é a favor da energia nuclear. No atual cenário não há essa possibilidade, porque estamos praticamente estagnados, mas, se o crescimento econômico dos anos Lula tivesse continuado, teríamos que fazer uma opção. Tem que produzir eletricidade. Ou artificializar todas as bacias do Amazonas, fazer 20 hidrelétricas na Amazônia, ou fazer uma energia nuclear na beira do São Francisco.
Havia um plano nesse sentido, não?
A Eletronuclear tem isso previsto. Não chegou a ser um plano, mas teve inclusive disputa entre estados nordestinos. Antes, desastradamente, fizemos duas usinas em Angra dos Reis. Poderia ter sido feito de maneira diferente, com tecnologia mais avançada, mas com muito mais segurança. E não seria em Angra. Só mesmo uma ditadura militar para ter a descompostura de estragar aquele lugar com usina nuclear. Hoje, colegas que são radicalmente contra a energia nuclear não se importam muito que as bacias amazônicas sejam artificializadas.
Mesmo com as inundações e deslocamentos de comunidades ribeirinhas, como aconteceu em Belo Monte?
Eles dizem que, se for muito bem planejado, os impactos podem ser minimizados. Belo Monte já mostrou o rolo que é fazer um treco desses. Mas o Brasil tem tantos outros problemas, inclusive na área energética, que não faz sentido discutir energia nuclear agora.
Por que a economia está praticamente estagnada?
Se tiver uma fase de crescimento, esse dilema vai voltar. A sociedade vai ter de ser chamada a se pronunciar. Tem um problema sério nisso. Em geral quem é contra fala para construir usina na Amazônia, bem longe, para não correr o risco de ter um Chernobyl ou Fukushima no quintal deles. Parece com o aspecto que acho o mais chocante do Brasil, que não tem nada a ver com o que estamos falando.
Qual?
Um país chegar em 2016 com metade da população sem acesso ao esgoto. O que é isso? Eu disse antes que a sociedade brasileira é infantil em relação à ciência e tecnologia. Isso é grave, mas no máximo diz respeito a uma sociedade ingênua. No caso do esgoto não é assim. É perverso. É como se a sociedade brasileira tivesse prolongando a mesma atitude que teve no passado com a escravidão.
Em qual sentido?
No sentido de que todo mundo convive perfeitamente com essa realidade de termos 50% da população sem acesso ao esgoto. Não tem nenhum país latino-americano pior do que a gente. Crianças que convivem com esgoto a céu aberto têm diarreias frequentes. Diarreias frequentes até os cinco anos, isso é gravíssimo, não só porque a mortalidade infantil é altíssima, mas porque as crianças que não morrem ficam com sequelas. Considero a maior injustiça nessa sociedade e não vejo nossos cientistas políticos, nossos antropólogos falando nisso.
Nem os ambientalistas?
Os ambientalistas estão sempre denunciando essa questão, muitas vezes por um ângulo que nem citei, que é o tratamento do esgoto. Insisto que 100% da população tinha que ter acesso ao esgoto. Agora se esse esgoto depois vai ser tratado são outros 500. Do esgoto que é coletado, só 30% é tratado. O mais curioso é que essa área pode ter no futuro inúmeras inovações. De certa forma, pode ser um trunfo. Podemos fazer uma rede de esgotos pensando na possibilidade de transformar muitas estações de tratamento em produtoras de energias renováveis, por meio, principalmente de microalgas.
Transformar dejetos humanos em energia?
Já vem acontecendo. Fazem principalmente experiências de biogás, mas não é só uma questão de produzir energia renovável. Uma das experiências de vanguarda acontece na Holanda, no sentido de reclicar para extrair princípios básicos dos fertilizantes. Eles têm muito receio da dependência da agricultura holandesa em relação ao fósforo, cujas minas são muito concentradas, no Marrocos, na China. Então obtêm fósforo a partir da urina, que é recolhida em grandes eventos, como shows de rock. Vai tudo para uma central, onde eles produzem fósforo. É caro, mas é uma busca pela independência.
E a economia? Como surgiu o termo economia verde?
No começo, ninguém falava em economia verde. No que se refere à cor verde, surgiu principalmente por causa do Greenpeace, a grande inovação dos anos 1960. Depois, começaram a pipocar os partidos verdes. Refletia uma preocupação com o ambiente, com a cobertura vegetal, mas hoje sabemos que o verde é metade da conversa, talvez menos da metade, porque os oceanos são azuis, sem falar que a atmosfera também é azul. Por isso digo que a sustentabilidade é turquesa, uma mistura de azul com verde. Na verdade, é uma cor que se chama ciano.
Por que os oceanos são tão ou mais importantes que as florestas?
Eles têm um papel importante para a preservação da biosfera, principalmente no fenômeno do aquecimento global. Eles absorvem a maior parte dos gases de efeito estufa que são emitidos. Outro dia saiu um cálculo mostrando que, se não fossem os oceanos, a temperatura do planeta seria de 70 graus centígrados. Nossa espécie estaria condenada. Essa não é a única função dos oceanos. Eles têm milhões de outras funções importantes, mas estou querendo dizer que, pegando a questão principal do aquecimento global e olhando para essa questão da cor, eles se enganaram quando cravaram o verde.
Esse conhecimento estava disponível na época?
Esses modelos que permitem contabilizar quanto é absorvido pelo oceano estão ficando cada vez mais sofisticados. As coisas evoluíram. Quando eles lançaram essa palavra de ordem verde, foram esculhambados. Depois, chegou uma fase em que o pessoal achava engraçadinho. Agora virou um discurso oficial, até porque é muito mais simples se falar verde do que falar sustentável. No mercado financeiro tem uma grande inovação que são os chamados green bonds. No Brasil, chamamos de títulos verdes. Acabou de ser lançado inclusive um guia que relaciona todas as empresas brasileiras que estão nessa linha de desenvolvimento sustentável.
O que está em jogo?
É uma questão de direitos humanos. O ideal é que as futuras gerações tenham tantas ou mais oportunidades quanto nós tivemos. O ideal é que elas tenham mais e não imaginar que podemos estar reduzindo as escolhas das próximas gerações. Isso é um novo valor, que não tem nada a ver com valores da Revolução Francesa. A sustentabilidade surgiu como um novo valor, que se equivale à liberdade, igualdade, fraternidade. Eles falavam fraternidade, hoje seria solidariedade. Ou mesmo valores muito mais antigos, como o valor justiça.
As mudanças climáticas ameaçam de fato nossa existência, como influíram, por exemplo, no colapso da civilização maia?
Em princípio, se nós não fizermos nada em relação ao aquecimento global, o que os modelos científicos mostram é que nós teremos um futuro cheio de grandes incertezas. Ninguém pode afirmar que haveria um colapso do tipo que houve com os maias ou com a Ilha de Páscoa. O que cientificamente é possível afirmar é que, se chegarmos a uma elevação superior a dois graus centígrados nesse século, teremos um futuro muito complexo em relação à água, à alimentação. Alguns estudiosos falam que isso também implicaria um cenário muito mais bélico. O que eu sei é que a principal tarefa em relação à sustentabilidade é conseguir resolver essa equação do clima. Tem outras questões, como a da biodiversidade, mas, se não resolver o problema do clima, ela vai acabar condenada também.
Temos parâmetros anteriores? Seria excepcional na história do homem?
Excepcional na história da humanidade não, porque em períodos anteriores houve variações climáticas. Esse é um dos argumentos dos negacionistas, mas os climatólogos são muito enfáticos no sentido oposto. O presidente da Organização Mundial Meteorológica (Petteri Taalas), que é da ONU, citou há pouco tempo a possibilidade de cenários assustadores. Prefiro evitar esse tipo de catastrofismo. Um grupo de cientistas baseados na Suécia fala em fronteiras ecológicas. Algumas estão se aproximando. Outras, aparentemente, ultrapassamos.
Por exemplo?
O clima, a biodiversidade. Tenho a impressão de que o problema da água em termos globais não é dramático. É localizado. Tem áreas do globo que vão ter crise hídrica seriíssima.
Desenvolver de forma sustentável é diminuir a velocidade de aproximação dessas fronteiras?
Estamos falando de uma coisa sem a qual não vai ter progresso nenhum da humanidade. Estamos falando da biosfera, uma camadinha muito delicada que envolve o planeta. Se usássemos todos os arsenais atômicos que estão estocados, o planeta continuaria. Sentiria cócegas. Planeta é uma coisa completamente diferente. É uma arrogância imaginar que a humanidade pode destruir o planeta.
Mas pode modificar a superfície, certo?
Sim. A humanidade tem prazo de validade. Se continuar agredindo a biosfera como está agredindo, esse prazo fica comprometidíssimo. Se continuar assim, a espécie humana está cavando a própria cova. A biosfera é alguns quilômetros para baixo do solo e alguns quilômetros para cima. É só isso. Depende do quê? De tudo o que significa a fertilidade da terra, os recursos que usamos na energia, na mineração, etc. E do clima.
E a ideia de desenvolvimento sem crescimento?
Poderia ser um debate público na Suécia, na Dinamarca, na Noruega. Só que não é a realidade do resto do mundo. Primeiro porque a maior parte dos países precisa crescer até para comer. E tem uma categoria intermediária da qual o Brasil faz parte, que não é nem uma coisa nem outra. Estamos muito longe de poder abrir mão do crescimento. Para nós, a grande discussão é sobre a qualidade do crescimento. Crescer investindo em saneamento? Ou crescer investindo no pré-sal? Crescer usando nosso potencial solar? Se o país não fosse tão infantil com a ciência, tecnologia e inovação, nós teríamos começado a ser vanguarda na pesquisa de energia solar há 30 anos, mas hoje estamos atrasadíssimos.
Essa faixa intermediária à qual o Brasil pertence concentra o maior número de países?
Nessa situação, estão os chamados Brics, mais uns tantos emergentes, que chegariam a uns 40 países. Ainda precisam crescer. E uma estratégia de crescimento pode ser muito diferente da outra. No Brasil, a mais recente oportunidade de discutir isso foi quando saiu o Ponte para o Futuro (documento lançado pelo PMDB em outubro de 2015, com sugestões para superar a crise econômica). Esse documento mostrava quais seriam as linhas quando o atual governo assumisse. Tudo que está acontecendo agora está previsto nesse documento. Não tinha nenhuma ênfase para a questão do saneamento, mas depois Moreira Franco, que coordena essa parte de investimentos em infraestrutura, deu uma garibada. O saneamento passou a ter importância e eles estão tentando quebrar os entraves para que a iniciativa privada consiga entrar. Um dos problemas que explicam por que o Brasil ficou tão atrasado é o mito de que o saneamento tem que ser público. Pela legislação brasileira, que é absurda nesse sentido, o município tem todos os direitos sobre o que vai ser feito em termos de saneamento na cidade.
A solução tem que ser regional?
Do meu ponto de vista, teria que tirar essa autonomia do município. Até se entende que um município como São Paulo tenha autonomia em relação ao seu saneamento. Só para dar um exemplo de sua dimensão: a cidade de São Paulo é o maior mercado de Waze do mundo. O Brasil, como país, é o segundo. Os Estados Unidos estão em primeiro. É impressionante. Mas enfim, o Brasil criou essa loucura de ter cinco mil e não sei quantos municípios, que as pessoas chamam de cidade. E a Constituição deu uma tremenda de uma autonomia para o município. A decisão de dar tanto poder ao município faz com que muita gente não tenha acesso ao esgoto. Dentro do que chamamos de saneamento tem a água, o esgoto e a coleta de lixo. Dos três, acho o esgoto o principal problema.
O município seria um dos entraves para resolver o problema?
Sim. A maioria dos municípios nunca vai ter grana para fazer isso. Tem o poder, mas não tem a grana. O certo seria fazer um consórcio com outros municípios da região e procurar uma empresa que queira investir no saneamento deles. Seria uma concessão. Por enquanto está muito travado. Hoje as empresas privadas contribuem com 5% do saneamento no Brasil. Uma delas é a Odebrecht Ambiental, que acabou de ser vendida para Brookfield, que é canadense.
No bojo da Lava Jato?
É, depois da crise. Era uma empresa que começava a bombar, embora estivesse entrando nesse mercado com uma pequena fatia do universo do saneamento. Estava indo bem. A hora que abrirem licitação para o saneamento, como fazem com aeroporto, vai ter concorrência entre empresas europeias para entrar no mercado brasileiro. Lá, todo mundo já está atendido. Notei que o atual governo, com a ênfase que o grupo de Moreira Franco dá à infraestrutura, está pensando em mudar essas regras, que são impeditivas para que a iniciativa privada entre mais a fundo no saneamento.
O documento Ponte para o Futuro pouco tratou disso.
Só que, depois que assumiram o governo, começaram sinais de que eles sacaram que essa é uma área promissora, vamos dizer assim. É promissora inclusive para atrair capital. Se facilitar as coisas, as empresas privadas europeias vêm todas. Eu não quero saber a cor do gato. A calamidade é ter 50% da população brasileira sem esgoto.
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