Humildade e humor: dois caminhos para a felicidade

De vez em quando, faz bem sair de circulação, nem que seja por pouco tempo. Nas 48 horas que passei em retiro espiritual, sem notebook nem celular, com meus colegas de Grupo de Oração, durante o último fim de semana, numa pousada em Tremembé, no interior de São Paulo, o tema que discutimos foi a alegria de viver.

Nosso grupo, que já completou 30 anos, tem gente de variadas idades, religiões, profissões e experiências, sobrevive sem regras, estatutos ou compromissos. O que nos une é apenas a vontade comum de refletir sobre os rumos da nossa caminhada pela vida.

Como em todos os retiros, cada um de nós leva textos para ajudar nesta reflexão. Trouxe para compartilhar com vocês um destes textos: “Humildade e humor como características da existência cristã”, quarto capítulo do livro “Espiritualidade a partir de si mesmo” (Editora Vozes, 2004), de Anselm Grün e Meinrad Dufner, dois beneditinos que vivem na Alemanha.

Pessoas muito alegres não são necessariamente felizes – e vice-versa. Grün e Dufner nos ajudam a entender a diferença entre estes dois sentimentos – a alegria, voltada para fora, e a felicidade, para o consumo interno. Uma passagem, que está na página 113 do livro, nos indica os caminhos:

Uma espiritualidade que se deixa orientar pela humildade não faz de nós pessoas que se diminuem artificialmente, que pedem desculpas pelo fato de estar no mundo. Pelo contrário, a humildade leva à verdade interior, à despreocupação e ao bom humor. No humor está presente a antevisão de que tudo pode existir em nós, de que somos feitos de barro e que, por isso, não podemos nos espantar com nada que é terreno.

O humor é estarmos reconciliados com nossa condição humana, com nossa condição terrena, com nossa fragilidade. No humor está presente a aceitação de mim assim como eu sou.

Outro autor, Henrich Lützeler, citado pelos beneditinos alemães, acha que o humor tem a ver com o desmascarar a realidade:

As figuras mais importantes do humorismo – por exemplo, Aristófanes, Shakespeare, Cervantes, Molière – eram pessoas realistas, e nada do que faz parte do homem lhes era estranho. Por trás de mil disfarces, por trás de resplendentes bastidores e de palavras altissonantes, eles infalivelmente apanhavam o que existe de mais humano.

No humor, reencontramos a reta medida de nós mesmos e nos libertamos por inteiro do emocionalismo em que tanto gostamos de nos sentir os tais.

De todas as formas de humor, a mais simples para alcançarmos a felicidade que, ao final das contas, é o objetivo primeiro e último de todos nós nesta terra do bom Deus é, a meu ver, a autoironia ou autogozação, como queiram. É a capacidade que temos de rir de nós mesmos, brincar com nossos defeitos, em vez de sofrer com eles.

Penso que existe a boa humildade, que é altiva na alegria, por conhecermos nossos limites e não querermos ser mais do que somos, satisfeitos com o que temos. E tem a humildade ruim, que é servil e triste. A este respeito escrevem Grün e Meinrad:

Nós entendemos a humildade antes de tudo como uma atitude religiosa, não haveremos então de associar-lhe idéias negativas, como “dobrar o espinhaço”, rastejar, fugir às exigências da vida, um secreto egoísmo disfarçado de falsa modéstia.

Claro que a alegria e a felicidade jamais serão sentimentos permanentes e imutáveis, por mais que procuremos cultivá-los para o nosso próprio bem e o de quem conosco convive – exatamente porque dependemos também do humor dos outros e das circunstâncias que nos cercam a cada momento.

Entre a vida idealizada dos retiros e a vida real do nosso dia a dia, a felicidade é uma busca permanente, que depende de um conjunto de fatos concretos e não se subordina apenas a nossos desejos.

Por exemplo: fui informado agora há pouco dos resultados de exames que faço todo ano desde que os médicos me extirparam a tireoide (havia suspeita de câncer, felizmente não confirmada). Trata-se de uma pequena glândula localizada ao pé do pescoço, que controla o metabolismo do corpo e regula orgãos como o coração, o cérebro, o fígado e os rins.

Por isso, tenho que tomar pelo resto da vida um comprimido de remédio todo dia logo ao acordar. Nas raríssimas vezes em que me esqueço de fazê-lo, com o passar das horas do dia vou perdendo as forças e o humor, como uma lâmpada que vai ficando mais fraca com a queda de voltagem.

Desta vez, os exames mostraram alterações graves em relação aos exames anteriores. Minha médica imediatamente aumentou a dosagem do remédio que tomarei a partir de amanhã, mas o simples fato de saber do problema já alterou meu humor, é claro.

Entre as belas reflexões do nosso retiro e a dura verdade científica, a alma e o corpo balançam. Nosso grande desafio é encontrar o ponto de equilíbrio entre os exames médicos e a prática da espiritualidade.


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