Nove entre dez pessoas que param o humorista e roteirista carioca Fabio Porchat nas ruas, restaurantes, shopping centers ou no trânsito engarrafado do Rio de Janeiro não o fazem porque o viram nos programas Esquenta, de Regina Casé, e Zorra Total, ou no seriado A Grande Família, todos da Rede Globo. Querem cumprimentá-lo por algum quadro seu que viram no site Porta dos Fundos, de longe o maior fenômeno da internet brasileira em quase duas décadas desse formato de mídia, com mais de dois milhões de acessos por dia. Uma audiência que cresce de modo imprevisível e acelerado, para a alegria dos cinco rapazes que o criaram e lançaram em 6 de agosto do ano passado – além de Porchat, os humoristas/roteiristas Antonio Pedro Tabet, Gregorio Duvivier, João Vicente de Castro, e o diretor Ian SBF.
No momento em que falava com a Brasileiros, às 16h30 do dia 22 de abril, Duvivier lia no marcador 225 milhões de visitas, desde a estreia. Três dias depois, eram mais oito milhões. O site se aproxima de três milhões de assinantes – pessoas que acompanham todos os quadros inéditos colocados no ar duas vezes por semana. Os vídeos podem ser acessados de três formas: pelo site do Porta dos Fundos, via Kibe Loco ou no YouTube. Com apenas oito meses no ar e 90 vídeos lançados até a primeira semana de maio, o site não precisou de muito tempo para vencer o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) no ano passado, na categoria Melhor Programa de Humor Para TV.
Se existem tantos portais de humor concorrentes, muitos deles mais antigos, por que o Porta atinge, em média, dez vezes mais o número de visualização dos demais? Primeiro, porque faz um humor diferente, sem personagens fixos e distantes do bullyng tão recorrente nos stand ups comedy e até nos programas tradicionais de TV, como Zorra Total (Globo) e A Praça é Nossa (SBT), com ofensas contra pessoas obesas, deficientes físicos, homossexuais, mulheres, favelados, idosos e nordestinos – racismo não entra porque a vigilância é maior e representa prisão não afiançável. A principal característica é o uso sem cerimônia de palavrões, mais ou menos como se fala no dia a dia entre amigos e colegas de trabalho. Isso acontece quando é pertinente, cabe na cena. Muitos quadros, portanto, nada trazem. Como o em que Noé, aquele da Bíblia, engana alguns tolos e os convence, em nome de Deus, a capturar com instrumentos rudimentares dois ursos polares para sua arca – claro que nenhum volta vivo.
Depois, vêm os temas. A maioria dos vídeos do Porta dos Fundos, de alguma forma, sacaneia com os estereótipos do machismo e com a sexualidade do homem, na contramão de clichês que sempre exploraram as neuroses femininas. Muitos brincam sem rodeios com a questão homossexual, mas não se vê nada relacionado a preconceito, como acontece em programas tradicionais de TV, “da bicha afetada”, cheia de trejeitos. Os mais vistos ligados a esse assunto são De bêbado, Batman, Nome do bebê, Meu príncipe e Casamento. Muitas mulheres, certamente, devem adorar o site por isso. João Vicente diz que o divertido é dar porrada em gente preconceituosa. Para ele, é um desafio fugir da piada pronta, da loira burra. Casamento, aliás, tornou-se um dos mais acessados por causa de um detalhe inusitado. No encerramento da gravação, diante das câmeras, o roteirista Gabriel Esteves pediu em casamento a namorada, Manu Monteiro, que faz a noiva do esquete. Tudo foi exibido enquanto passavam os créditos.
Alguns quadros se tornaram antológicos na breve história do programa. Como Ciclo da vida, que começa com um traficante cobrando pedágio em uma favela. Em seguida, ele é roubado por um miliciano, que perde seu dinheiro para um deputado e, por fim, todos são surrupiados por um pastor, que estava dentro do carro e tinha sido roubado inicialmente pelo homem do tráfico. Porchat brilha como político, que tem uma crise descontrolada de riso no horário político ao tentar ler um texto com as promessas de campanha para servir o povo. Essa é para você, com mais de 4 milhões de acesso, é genial: para acabar com o casamento, a mulher compõe uma música terrível de insultos ao marido, e canta docemente para ele, no sofá da sala. Na vida real, os dois atores – Clarice Falcão e Duvivier – namoram.
Além de boas ideias e sacadas, outros fatores explicam o êxito do grupo. Como a amizade e a afinidade que unem todos, segundo o diretor Ian SBF. Soma-se a isso o efeito coletivo, que vem do fato de que a maioria que interpreta também escreve, tem experiência como roteirista de humor. Para Tabet, todos têm senso de humor muito parecido, mas conta mesmo o fato de serem muito profissionais na execução do trabalho. E, claro, a combinação rara de talentos que o grupo conseguiu agregar. Porchat é um dos grandes nomes da nova safra do humor nacional. Não é ele, porém, quem carrega sozinho o piano em Porta dos Fundos. Tabet, por exemplo, destaca-se como humorista no papel de personagens mal humorados. Tornou-se antológica sua interpretação no vídeo em que faz o pai de um adolescente no dia em que um Batman pedófilo (Porchat) bate à sua porta em busca de seu filho.
Gregório Duvivier, filho da cantora Olivia Byington e do músico Edgar Duvivier, além de poeta com livros publicados, tem uma versatilidade impressionante para fazer rir. Além de encenar, revelou-se um promissor roteirista na Globo – é coautor das séries As Cariocas, As Brasileiras e Louco Por Elas. De aparência frágil, baixinho, dá-se bem em qualquer papel. O mesmo vale para Rafael Infante, Julia Rabello, Leticia Lima, Luis Lobianco e Marcos Veras, os mais constantes nos quadros. Há também os convidados especiais, como as atrizes Cleo Pires e Maitê Proença. O vídeo de Maitê, Maitendo fundo, é um hit, com mais de 4 milhões de acessos desde outubro, quando estreou – ela faz uma atriz que não se deu conta e assinou um contrato para fazer filme pornô.
Segundo Porchat, existem dois tipos de público do Porta dos Fundos: o que acompanha toda semana, como uma novelinha, e aquele que vai pela curiosidade ou pela indicação em redes sociais. Como o grupo virou assunto para a imprensa, não demorou a surgirem especulações sobre a ida do grupo para a televisão. Os humoristas estariam sendo assediados por emissoras abertas e fechadas. Tabet, que também fundou e mantém o bem-sucedido site de humor Kibe Loco, confirma conversas nos últimos meses com Globo, RedeTV!, Multishow e Canal Brasil, entre outros. Nada de concreto, porém, foi apresentado pelas empresas. Apenas sondagens para saber o interesse dos humoristas em trocar de plataforma de exibição. Acharam que seria fácil. Para surpresa desses executivos, não houve nenhuma disposição. E não é jogo de cena para conseguir um contrato mais vantajoso.
Diz a lógica que a TV, pelo alcance de público e de fama, óbvio, é a meta de todo humorista, inclusive para os que se lançam pela internet. Não é bem assim, para esses atenciosos rapazes. “Talvez seja possível que um dia a gente vá, mas não é um sonho nosso, estamos felizes onde estamos”, explica Duvivier, “É preciso entender que a internet não é simplesmente uma ponte para chegarmos à TV. De jeito nenhum, a internet é o fim, o ponto final”, acrescenta. Tabet reforça essa postura, diz que quer a TV como um braço do portal e não o contrário, como tradicionalmente acontece. “Sabemos que todo nosso trabalho seria pasteurizado, perderia o sentido.” Seria uma decepção para eles e para o público que os acompanha. Ian SBF acrescenta: “A gente está contente e focada na internet. As pessoas querem ver a gente assim, à vontade”.
Para João Vicente, TV e internet ainda são meios incompatíveis. “Não temos essa fome”, resume, ao ser questionado. “Todo mundo nos diz para não irmos para a TV. ‘Aquilo vai estragar vocês’, dizem”, ressalta Porchat. A explicação para essa posição é a mesma dita por todos: a liberdade de expressão que eles têm. Todos sabem que a maioria dos vídeos não seria aceita na programação da TV aberta ou mesmo fechada. Uma TV, mesmo restrita aos canais pagos, não apresentaria Happy hour, em que um chefe tenta constranger os funcionários com expressões chulas. Muito menos Sobre a mesa – na cena, uma aristocrática e refinada dona de casa explode com o marido na hora do jantar depois de ser humilhada por ele e começa a desfilar com os mínimos detalhes todas as suas fantasias sexuais – é o campeão, com mais de sete milhões de acesso.
Não quer dizer que a produtora não esteja aberta para outros projetos em televisão. Pelo contrário, tem todo interesse. Mas seria assim: o Porta dos Fundos continuaria a existir na internet e sua equipe faria coisas diferentes, como seriados, novelas de humor, etc. Quem deixaria tirar sarro das operadoras de celulares e de sinais de TV, inclusive citando o nome de cada uma? Não por acaso, no alto da home do site, o grupo se define como “um coletivo criativo que produz conteúdo audiovisual voltado para a web com qualidade de TV e liberdade editorial de internet”.
Origem
Difícil é tirar da turma do Porta dos Fundos quando exatamente tudo começou. Tabet tem a versão mais completa, com precisão de datas. Há três anos, ele e Ian SBF – que dirigia uma empresa de conteúdo – começaram a conversar sobre a produção de humor. Em 2011, veio a primeira parceria dos dois, o hilário seriado CSI Nova Iguaçu, que ele considera embrião do Porta dos Fundos. “Deu certo e a gente começou a se empolgar.” No final deste ano, Porchat e Duvivier se juntaram à dupla. João Vicente, que já trabalhava com Tabet, foi o último a chegar. Ficou acertado que cada um colocaria um pouco de dinheiro e, como Tabet e Ian tinham equipamentos de vídeo e edição, tentariam fazer o capital render ao máximo.
No decorrer do primeiro semestre do ano passado, foram produzidos e finalizados dez vídeos. O de estreia, em formato de programa de TV, funcionou como uma apresentação, com 15 minutos de duração e alguns quadros intercalados por uma paródia aos stand ups comedy. “Eu e Ian decidimos sair dos nossos trabalhos e demos um salto no abismo”, recorda João Vicente. Mas faltava um nome. Muitos foram sugeridos e logo esquecidos, pois nenhum agradou. Até que, numa das rodas de baralho frequentes da turma, Ian foi encarregado de pagar a prenda de expressar em mímica uma porta dos fundos. Depois de muitas tentativas sem sucesso, ele virou de costas e mostrou a bunda para os amigos. Por fim, desistiu e disse o termo, o que causou uma crise de risos entre os amigos. Estava escolhido nome do site, carregado de irreverência.
Desde o começo, estabeleceu-se que seriam dois vídeos inéditos por semana – segunda e quinta, pontualmente às 11 horas da manhã. “Por incrível que pareça, soubemos que esses são os momentos de maior fluxo na rede de computadores. Sexta fica mais próximo do fim de semana e o acesso cai. Três vídeos seriam demais, concluímos”, explica Duvivier. “Tudo nasceu da vontade de criar conteúdo e fazer loucuras”, destaca ele, ao ser perguntando sobre a motivação inicial. No segundo mês do site no ar, os primeiros vídeos começaram a bater a marca de um milhão de visualizações cada. “Fomos tomando um susto, a coisa foi crescendo e começou a engolir a gente. Hoje, estamos tentando controlar”, avalia Porchat. João Vicente completa: “Trabalhamos duro, embora seja sempre muito divertido”.
Duvivier atribui a Ian SBF parte da qualidade técnica dos vídeos, pela sua habilidade em nunca ter dinheiro para fazer as produções em que se mete. Já era assim no Kibe Loco. “Como não temos verba até hoje, procuramos viabilizar o vídeo a partir do roteiro. É preciso ser criativo na hora de gravar”, observa Ian SBF. Com criatividade, qualquer ambiente vira um cenário perfeito, em sua opinião. “Ele é muito esperto, faz milagres. Tanto que não temos diretor de arte”. Por isso, alguns vídeos têm um único plano-sequência, sem cortes. Isso não seria possível na TV. “A internet dá a liberdade de sermos fotógrafos, de criar na edição, na linguagem”, diz Duvivier. O apartamento de quarto e sala dele até hoje é o ponto mais usado. “Aproveitamos todos os cantos, de todas as formas”. O quadro em que um casal discute a escolha do nome do bebê, por exemplo, foi feito em sua cozinha.
Para o diretor do programa, o bom de tudo é que todos são seus próprios chefes. E como tais, fatos fora da criação também devem ser resolvidos por eles. Como conseguir liberar no final de abril dois vídeos que tinham sido bloqueados pelo sistema de filtro do Google por trazer palavras consideradas obscenas nas chamadas – Filme pornô e Homens. Ian SBF lembra que esses foram apenas dois probleminhas pontuais, pois, até o momento, o Porta dos Fundos não tem um único processo por causa de seu conteúdo, de alguém que tenha se ofendido – nem mesmo com os vídeos de religião. “A gente não se perde e não é processado porque fazemos humor com uma situação, com uma ideia, não é pessoal, com algum personagem.”
Pouco tempo passou, o sucesso veio, a equipe cresceu para 30 pessoas. Mas tudo continua muito enxuto porque a verba de produção continua limitada, mesmo com a chegada de patrocinadores. “Fizemos uma passagem numa praia, sobre a Bíblia, e viajamos até uma, o que para nós foi um luxo”, recorda Duvivier. O importante, dizem eles, é que todos recebem já há alguns meses, um salário. Para Duvivier esse era o sonho de todos, agora realizado. Ele comemora a entrada de anunciantes. “São pessoas que já sabem como é o nosso trabalho e não tentam mudar o nosso modo de criar.” No histórico, entretanto, há empresas que fizeram propostas de enfiar merchandising de forma positiva e elogiosa. “Não fazemos nada que interfira no conteúdo. Nunca vão ver a gente elogiando. No máximo, uma marca ao fundo, só servindo a cena”, explica Ian SBF.
Até completar o primeiro ano de vida, daqui a três meses, a estrada vai ser longa para o grupo. Os desafios só aumentam, mas acham que têm fôlego para muito tempo ainda. Viraram vidraça faz tempo. Comentários acusam a turma de ter o bilionário Eike Batista por trás e que pagaria ao YouTube para forjar a audiência. Pura inveja de alguns poucos chatos que se escondem em pseudônimos. Difícil mesmo é lidar com a pressão da TV. A besta está solta e quer entrar pela porta dos fundos.
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