Iberê ficcionista

Imagine a cena: sentado em uma imponente nuvem, Deus e um par de assistentes celestiais que seguram dois sacos, um deles preenchido com todos os nomes dos seres humanos viventes na Terra e o outro com milhares de malefícios, decidem o destino de alguns pobres-diabos daqui de baixo. Um deles, descrito no conto Sacos de Deus, escrito por Iberê Camargo, recebe do Criador a triste sina de padecer, com o perdão da chula expressão, de “dor-de-cu”. “No mesmo instante, o sorteado sente uma terrível fisgada no cu e se contorce. Assim começam os nossos padecimentos sem explicação, sem causas. Chamam a isso de destino”, conclui Iberê no conto.

Sacos de Deus revela um autor de humor ácido e espirituoso. É um dos nove contos que compõem No Andar do Tempo. Publicada em 1988 pela editora L&PM, em parceria com a Fundação Iberê Camargo, sediada em Porto Alegre (RS), a coletânea revelou, sete anos antes da morte de Iberê, um dos maiores artistas do País, a faceta de grande ficcionista do pintor gaúcho. A obra volta agora às livrarias do País por iniciativa da Cosac Naify, que reeditou No Andar do Tempo, com as 11 ilustrações originais, acrescidas da reprodução de manuscritos.

A alusão ao tempo, explícita desde o título, é evidenciada na maioria dos contos reunidos no livro, como na narrativa O Mosquito, em que o protagonista, diante do espelho do banheiro fazendo a barba, divaga sobre seu poder de exterminar um mosquito e ser “dono” de seu tempo. Em O Rato (cujo manuscrito original em italiano e ilustrações são reproduzidos em fac-símile na nova edição), outro personagem, embora carregado de solidariedade com o drama do abjeto animal, também experimenta a mesma sensação de poder sobre o destino de um rato. Em O Relógio, conto escrito nos anos 1950 que encerra o livro, Savino vive um sombrio drama: ao encarar o desafio de limpar a latrina do fundo de seu quintal e lidar com centenas de aranhas que habitam a madeira carcomida e úmida, deixa cair no fundo da fossa o relógio de prata que herdou da avó. Passa dias agônicos em busca do objeto para concluir, transtornado: “O tempo, o tempo…”.

Em Acidente em Angra, espécie de ficção científica, Iberê eleva as parábolas futuristas de Ray Bradbury (mestre do gênero, que morreu em junho de 2012) a um humor escatológico, ao apresentar ao leitor a usina Merda Vaporizada Aérea – MVA.  Baseada em Angra, balneário de águas térmicas no Rio Grande do Sul, a MVA desenvolveu, em 1969, um sistema “agrometereológico” que adubaria os campos e potencializaria a produção agrária do Estado. A solução para turbinar a fertilidade das terras gaúchas viria da conversão dos excrementos da população em potentes nuvens comandadas remotamente e direcionadas a diferentes destinos geográficos.

No Andar do Tempo ainda reúne contos amenos, de saborosa invenção, como O Vampiro Mamão, em que Iberê dá vida a um atípico vampiro obcecado por leite, que desafia o coronel da cidade ao sugar todo o leite produzido por sua mulher e matar, de inanição, ao longo de 14 anos, seus 13 filhos. “A língua longa e estreita, franjada na ponta, lambia gulosa, no preâmbulo do repasto, o bico da mama. De braços abertos, na sua tradicional capa negra, era um grande pássaro que penetrava pelo vão de uma janela ou pela bandeirola de uma porta”, assim descreve Iberê, Mamaqui, como era chamado pelo povo, assombrado, seu astuto vampiro mamífero.

 


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