No afogueado verão catarinense, uma capivara rechonchuda chapinhava nas águas do rio que banha Jaraguá do Sul. Em sobressalto, ela desembestou para a sombra da margem, querendo escapulir do que havia enxergado lá no alto da ponte: uma fileira de gringos branquelos – todos de fraque naquele calor de rachar – havia se paralisado diante de um inédito bicho “ruivo” tão ali, quase ao alcance da mão. Recém-chegados da invernal Europa, Ásia, Canadá e Estados Unidos, os músicos já vinham se encantando com a exuberância da Mata Atlântica que envolve a cidade, salpicada de manacás em todos os tons de roxo e de embiras prateadas. Mais duas quadras já terão nova surpresa: o imponente teatro da Sociedade de Cultura Artística – SCAR, de Jaraguá do Sul, onde acontecerá a temporada de concertos. Irsinnig! Dieses Brasilien ist wirklich überrascheud?”, exclama um violinista da Filarmônica de Berlim, ou seja: “Ehhh! Não é mesmo surpreendente esse Brasil?”.

Maestros, instrumentistas, professores de música e compositores ficarão tocados para sempre com a experiência catarinense nas duas semanas do Festival de Música de Santa Catarina, em Jaraguá do Sul, de 20 janeiro a 2 fevereiro. No sétimo Femusc, em 2012, foram mais de 80 espetáculos de música de qualidade – da clássica à contemporânea – com entrada franca para um público de 30 mil espectadores, seminários, aulas e master class com 80 renomados professores, 500 estudantes e a participação de 20 países, entre eles: Armênia, China, Geórgia, Austrália, Cuba, Turquia, Bulgária, Colômbia, Peru, Costa Rica, Alemanha, Haiti, Zimbábue, Inglaterra, Argentina e Estados Unidos. Isso sem contar uma centena de apresentações em ruas, praças, shoppings, igrejas, museus, asilos, hospitais e escolas de Jaraguá do Sul, além de apresentações nas cidades vizinhas, como Joinville, Blumenau, Brusque, Timbó, Pomerode e São Francisco do Sul. E a cada ano tem mais.

No palco do SCAR se apresentam ícones da música internacional, como Andrés Cárdenes, de Cuba, o costarriquenho Mario Ulloa e o pianista gaúcho Alexandre Dossin, vencedor de importantes concursos internacionais. Encerraram o festival no ano passado o pianista João Carlos Martins e o compositor recifense Marlos Nobre, considerado sucessor natural do grande músico brasileiro Carlos Gomes.

Terminado o festival, todos estarão dispostos a retornar no ano seguinte. Mas não será tão simples assim, pois a cada ano é preciso passar pelo crivo do maestro Alex Klein, idealizador e diretor artístico do Femusc. Como assim? Não são todos bambambãs, pinçados nas melhores orquestras do mundo? O gaúcho Klein, que já foi o principal oboísta da Orquestra Sinfônica de Chicago, o único brasileiro a ganhar o Grammy de música erudita, é exigente e avesso a estrelismos: “O professor não é um semideus, não pode intimidar os alunos. Já disse tchau a muitos amigos, professores e músicos, que foram considerados arrogantes, chatos ou indiferentes. Tivemos excelentes professores que tão logo terminavam as aulas se fechavam no quarto do hotel. Não servem. Quero que eles participem da vida dos alunos, almoçando e jantando juntos, e depois ainda estiquem para uma cervejinha ou balada”.

Cita ainda alguns exemplos, como o do professor de tuba, mestre do Mozarteum, que acompanhava os jovens, tocando com eles à noite nas ruas e bares da cidade. O carioca Daniel Guedes, com mestrado e bacharelado em Nova York, depois de vibrar com ímpeto as cordas de seu violino no palco do teatro em Jaraguá, foi tocar para os motoristas das vans e ônibus que não puderam ver o espetáculo. Outra lição ainda pode partir dos alunos. Foi quando o armênio Onur Seçki convidou turcos e americanos para tamborilar seu darbuka, ou derbake, instrumento de percussão. Klein se emociona: “De repente, o milagre aconteceu: armênios e turcos cantando e tocando juntos. Esse cara tem um santo dentro dele”.

Hoje, regente titular da Orquestra Sinfônica da Paraíba, Klein tampouco aprecia maestros ditadores, que em vez de batuta pensam empunhar uma baioneta: “O maestro é, para mim, um coadjuvante. E, mais, a orquestra não precisa de um maestro para funcionar. Aliás, a orquestra sem um condutor é uma experiência genial”.

Ideias e ideais
O diferencial do Femusc vai além de não se importar com a nacionalidade ou condição social das pessoas para obter uma vaga. As inscrições são aceitas por ordem de chegada e não entra no mérito a qualidade da gravação enviada, já que isso é quase impossível para os menos favorecidos. Em contrapartida, não é raro o caso de jovens que se conhecem no festival, criam um duo ou um quarteto e começam a carreira como profissionais de uma orquestra. Os maiores talentos ganham bolsas de estudo para o exterior e todos recebem um questionário no qual, anonimamente, opinam sobre a organização do festival e sobre os professores.

Foi assim que, ano a ano, o Femusc se formatou como modelo único, um microcosmo da sociedade onde uma utopia acontece. Quanto ao repertório, Klein só define 5% dele para cada temporada. No restante, os alunos decidem o que querem ouvir ou tocar. Ao selecionar uma peça especial, Klein atônito soube que, no Brasil, quase não havia harpas. Uma das razões é porque são instrumentos caríssimos, algo em torno de R$ 50 mil. O maestro pediu, então, o apoio de um empresário da cidade, Wander Weege, que presenteou a SCAR com 17 harpas. “O fabricante ficou tão feliz que nos deu até uma de brinde”, lembra Klein, com sonora gargalhada. Hoje, Jaraguá do Sul é o maior centro de harpas da América Latina e a carioca Vanja Ferreira, considerada a maior intérprete de harpa no Brasil, dá aulas durante o Femusc.

Nem as crianças escapam dessa sanha musical: há a Colônia de Férias, o Femuskinho, para mais de 130 crianças com idades entre 5 e 13 anos, vindas de Jaraguá e arredores. “Os guris devem escolher seus instrumentos sem a interferência dos adultos. Cada um aprende a contar uma história utilizando-se de um instrumento, e isso vai ajudar a entender o que se passa no palco”, explica o maestro. Na festa de encerramento, essas crianças que, 15 dias antes, talvez nunca tivessem tido contato mais próximo com a música, se apresentam tocando flauta ou algum instrumento de corda.

Klein também gosta de desafiar os jovens alunos. Encerrando o festival, eles executaramm A Sagração da Primavera, de Stravinsky (1882-1971), obra que influenciou todo o século 20, dando origem ao modernismo na música: “É praticamente impossível fazer Sagração com apenas cinco ensaios, mas é uma provocação bem-intencionada”.

Sagração brasileira
Klein afirma que, apesar dos esforços, “em duas semanas ainda não eliminamos o complexo de inferioridade dos nossos jovens, mas já começam a ter uma atitude diferente. Eles se sentem valorizados e iguais. E, o melhor, expressam nossa brasilidade. Tá funcionando”. Ele ilustra com alguns casos, como o de Dora Utermöhl de Queirós, 24, nascida em Getulio Vargas (RS). Nessa cidade não tem escola de música nem orquestra. A única atividade musical ali era um coral onde ela participava com o irmão. Certo dia, um músico lhe deu um vídeo de Mstislav Rostropovich (1927-2007), tido o maior violoncelista do século 20. Foi uma epifania para Dora, e ela seguiu para Erechim atrás de um professor. Lá, encontrou apenas um, que conseguiu para ela uma viola toda estranha, feita por um colono, e na qual poderia praticar.

Em 2006, Dora se matriculou no Femusc, levando aquela viola “desproporcionada”, como ela definia. “Vi que era o que eu queria para minha vida. Tive insights vendo os concertos. Os professores foram receptivos, me valorizando e entusiasmando, e conheci colegas de instrumento. Fui morar em Porto Alegre e entrei para a faculdade de música. No Femusc, tive aulas com o professor Fabio Presgrave, que dava aulas em Natal, Rio Grande do Norte, onde tem um projeto de música com as crianças e um festival. Em 2012, Fabio me convidou para trabalhar com ele”, finaliza Dora.

Estudantes como Diana Ramirez, 20, violino, e José Arturo Calvo Gonzalez, 22, guitarra clássica, ambos da Costa Rica, atestam: “Aqui parece outro mundo, crescemos como músicos e também como pessoas. Foi uma experiência enriquecedora e fantástica, pois a música quebra barreiras culturais. Klein é um grande líder, tem uma energia forte. É um sonhador que consegue realizar as coisas. O Brasil deve se orgulhar muito do trabalho feito no Femusc”.

Para o maestro argentino Norberto Garcia, esse festival é um intercâmbio de ideias e tendências. “Tivemos a ideia de agregar uma história teatral. Chamo o Femusc de congresso da humanidade. Aqui, percebemos como a juventude sente necessidade de se juntar para tocar em espaços públicos. Aliás, não só os jovens, a humanidade está precisando de outros modos de conviver. Na Argentina, ainda não consigo fazer o tanto que faço aqui.” Garcia se refere, entre outras coisas, às fantasias que veste para reger os concertos para as famílias: vira um astronauta para conduzir a peça Assim Falou Zaratustra, que ficou conhecida por ser a trilha sonora do filme Odisseia no Espaço, ou ainda como camponês espanhol para conduzir a obra Don Quixote, ambas de Richard Strauss. Esses concertos para famílias, segundo Klein: “Ajudam os jovens músicos a aceitarem a realidade de que o futuro de suas carreiras depende de habilidade de criar novas audiências”.

Por tudo isso, Klein sente-se em casa no Femusc. E mais, talvez ele mergulhe tão intensamente nesse trabalhão danado só para sentir a energia do último concerto, quando rege a megaorquestra, com todos os alunos preenchendo cada palmo do palco de Jaraguá do Sul. Também para os ouvintes é algo imperdível. Nada se compara à emoção de assistir ao vivo àquela música. As boas vibrações que dali emanam produzem felicidade plena. Já quase no final dessa apresentação, os jovens rufam os tambores, assobiam, dão vivas, batem os pés. Parece que o mundo vem abaixo. Jogam para o alto as partituras, que redemoinham sobre a orquestra. Piú forte, fortíssimo, in dolce jubilo! Arrebatam. Divino pandemônio dessa sagração brasileira. Bravíssimo!


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