Ilda Martins da Silva completou 81 anos no dia 30 de maio. Mais da metade desse tempo ela vem procurando pelo marido, Virgilio Gomes da Silva. Quando se despediram pela última vez, Virgilio havia levado Ilda e as crianças do casal para uma casa em São Sebastião, no litoral paulista. Disse que a repressão estava apertando o cerco e que voltaria assim que acertasse a retirada da família do País. Presa dois dias depois, na terça-feira 30 de setembro de 1969, Ilda foi torturada na Operação Bandeirantes (OBAN), onde ouviu que o marido havia sido capturado antes dela. Levada após alguns dias para o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), ela não parou de se afligir.
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“Todo mundo que estava na OBAN chegava no DOPS, mas o Virgilio não chegava.” Semanas depois, soube por outros presos políticos que o marido havia sido torturado até a morte, tornando-se o primeiro dos cerca de 150 desaparecidos políticos do País. Ilda soube ainda que durante as sevícias Virgilio se identificava como brasileiro, o que irritava os seus algozes. Em 2004, quando o laudo necrológico do marido de Ilda foi encontrado, estava registrado que o corpo de Virgilio chegara ao Instituto Médico Legal com calça verde, camisa amarela e meias vermelhas. “Meu marido nunca usou roupa colorida. Os torturadores não se contentaram em matar e sumir com o corpo dele”, diz Ilda, indignada. “Vestiram o Virgilio de verde, amarelo e vermelho, para dizer que ele era um brasileiro comunista.” Quando assiste pela tevê notícias sobre a Comissão da Verdade, Ilda se enche de esperança: “Quero saber onde o Virgilio está e quem fez isso com ele”. Por enquanto, ela só tem um atestado de morte presumida.
“O Brasil merece a verdade”, afirmou a presidenta Dilma Rousseff ao instalar a Comissão da Verdade em Brasília. “Se existem filhos sem pais, se existem pais sem túmulos, se existem túmulos sem corpos, nunca, nunca mesmo, pode existir uma história sem voz.” A referência aos desaparecidos ecoou forte em Ilda, uma mulher que estudou só até a 2a série do Ensino Fundamental e, sem o marido, teve de pedir asilo em Cuba, onde trabalhou como costureira até formar os quatro filhos engenheiros. Embora acalente em especial as famílias dos mortos e desaparecidos no período em que a tortura foi transformada em política de Estado pelo regime militar, a Comissão da Verdade interessa a todo o País. Não há como viver em harmonia se o passado recente está repleto de sombras.
O Supremo Tribunal Federal decidiu em 2010 que a Lei da Anistia, de 1979, não poderia ser alterada para permitir a punição daqueles que cometeram crimes durante a ditadura. Isso não significa, porém, que esses crimes devam continuar encobertos. Nem que as circunstâncias das mortes e da ocultação de cadáveres sejam conhecidas apenas pela “tigrada”, como eram chamados os agentes da repressão. Não por acaso, a presidenta Dilma imprimiu caráter de ato de Estado à cerimônia de instalação da comissão. Com a presença de todos os presidentes que a precederam no período democrático, exceto Itamar Franco, morto em 2011, Dilma lembrou que cada um deles havia contribuído para aquele “marco civilizatório”, como ela definiu a cerimônia.
No governo Fernando Collor de Mello foram abertos os arquivos do DOPS do Rio de Janeiro e de São Paulo. Apenas no arquivo paulista, em poder da Polícia Federal desde 1983, havia 1,5 milhão de fichas, 14 mil dossiês e 150 mil prontuários. Em 1995, o governo Fernando Henrique Cardoso reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte dos desaparecidos que se encontravam sob sua custódia. Começaram também as reparações às famílias das vítimas e aos presos e perseguidos políticos. Já o governo Luiz Inácio Lula da Silva idealizou e encaminhou ao Congresso a lei que permitiu a instalação da Comissão da Verdade.
Não foi um processo fácil. Desde que a comissão começou a ser idealizada, em 2008, dois polos opostos mediram forças. De um lado estava o então ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vanucchi. Do outro, o ministro da Defesa da época, Nelson Jobim. Enquanto Vanucchi defendia a apuração dos crimes e a possibilidade de levar os acusados a julgamento, Jobim representava os interesses dos militares. A ala de farda não aceitava a possibilidade de responsabilização e exigiu que, em vez de esclarecer apenas os casos ocorridos durante o regime militar (1964-1985), a comissão analisasse os fatos de 1946 a 1988. Conseguiu ainda retirar do texto preliminar o termo “repressão política” e abrir brechas para que também pudessem ser investigadas violações cometidas pelos integrantes dos grupos armados de resistência à ditadura.
A lei que instituiu a Comissão da Verdade, promulgada por Dilma em novembro do ano passado, é clara em seus objetivos. Entre eles, está “promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior”. O foco dos trabalhos, porém, será dado pela comissão. “Existe apenas um lado nessa realidade, que foi reconhecido em 1995. O Estado cometeu crimes, violando os direitos humanos, e é obrigação do Estado buscar a verdade a respeito disso”, disse o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, logo depois de ser nomeado para a comissão. Fundador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Pinheiro preside a comissão da ONU sobre as violações na Síria, encarregada de fazer uma investigação especial do massacre de 108 pessoas, 49 delas crianças, em Hula. No Brasil, Pinheiro integra um grupo de profissionais com reconhecida atuação na área de direitos humanos. São eles: o ex-ministro José Carlos Dias, o ex-procurador-geral da República Cláudio Fonteles, o ministro do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp, o jurista José Paulo Cavalcanti Filho, a psicanalista Maria Rita Kehl e a advogada Rosa Maria Cardoso da Cunha, que defendeu Dilma e outros presos políticos durante a ditadura.
Instalado no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília, o grupo contará com infraestrutura cedida pelo governo, mas terá autonomia de atuação. “É uma comissão de Estado que não se subordina a ninguém”, disse o ministro Gilson Dipp, o primeiro coordenador da comissão. “Não foi pedido nada a não ser cumprirmos a lei, para que recuperemos a história e a memória do Brasil.” Em um primeiro momento, a prioridade é trabalhar em conjunto com duas comissões já existentes, a de Anistia e a de Mortos e Desaparecidos. Apenas a Comissão de Anistia, criada em 1995, tem um acervo de 70 mil processos de pedidos de reparação analisados no decorrer dos últimos dez anos.
Com dois anos para concluir a investigação, o grupo de especialistas brasileiros nomeado pela presidenta Dilma integra a 41a Comissão da Verdade criada no mundo. A primeira foi instalada em 1974, durante o governo do ditador Idi Amin, para investigar os desaparecidos do país nos três anos anteriores. Não passou de uma tentativa de Amin, mais tarde conhecido como o “Senhor do Horror”, de responder às críticas contra o seu regime. A maioria das comissões, no entanto, ajudou a elucidar casos de violência praticados durante períodos de exceção. Em alguns países, o relatório da comissão recomendou a abertura de ações para responsabilizar criminalmente os responsáveis pelas violações aos direitos humanos.
Na Argentina, um dos países que levam os torturadores à Justiça, o número de mortos pelo regime militar é estimado em 30 mil. Criada assim que a ditadura terminou, a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas concluiu que 8.690 haviam sido mortos, entre 1976 e 1983, mas seus corpos nunca foram encontrados. O drama provocado pela mais sangrenta ditadura da América Latina acaba de ser reavivado no país, com o lançamento de um livro no qual o ex-ditador Jorge Videla admite pela primeira vez a morte e desaparecimento de “sete mil ou oito mil pessoas”, cujos corpos ele teria feito desaparecer para “não provocar protestos dentro e fora do país”. Com a onda de indignação que se formou no país, Videla tentou minimizar as declarações, divulgando que os números eram uma “conclusão pessoal” do jornalista Ceferino Reato, autor do livro Disposición Final. Ocorre que o jornalista garante que o próprio Videla revisou as anotações que serviram de base para o livro. As entrevistas só não foram registradas em áudio porque gravações não são permitidas no presídio militar de Campo de Mayo, onde Videla cumpre pena de prisão perpétua.
O embate entre algozes, vítimas, pesquisadores e investigadores de períodos de exceção é sempre marcado por versões conflituosas. Não será diferente no Brasil. Caberá aos integrantes da Comissão da Verdade esclarecer o que de fato aconteceu na história recente do País. Aqui, não há certeza nem quanto ao número de vítimas dos agentes do Estado. Estima-se que sejam entre 400 e 500 pessoas, cerca de 150 delas desaparecidas. As vítimas da esquerda armada, por sua vez, seriam 120, de acordo com o grupo Terrorismo Nunca Mais, criado como contraponto ao Tortura Nunca Mais, que atua em defesa dos direitos humanos.
Na caserna, é crescente a preocupação com os trabalhos da Comissão da Verdade, apesar de a presidenta Dilma ter afirmado que a iniciativa não era movida pelo revanchismo. Como os oficiais da ativa são proibidos de expressar suas posições publicamente, oficiais reformados do Clube Naval do Rio de Janeiro anunciaram que haviam formado uma “comissão paralela” para acompanhar os trabalhos do grupo nomeado pela Presidência da República.
Em movimento contrário, rapazes e moças reunidos no movimento Levante Popular da Juventude decidiram que “se não tem Justiça, tem escracho”. Desde março, eles promovem manifestações em frente à casa de torturadores e de profissionais aliados à ditadura, como legistas que assinaram laudos falsos. Inspirados em movimento similar ocorrido na Argentina, eles não pretendem parar enquanto os vizinhos de torturadores não souberem quem mora na casa ao lado.
Ilda, a viúva do primeiro desaparecido político brasileiro, ainda não viu os torturadores de seu marido virarem alvo de escracho. Mas não perde a esperança. A morte de Virgilio Gomes da Silva, o Jonas, não foi um “acidente de trabalho”. Virgilio foi preso 25 dias depois do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, no Rio. Militante da Aliança Libertadora Nacional, ele havia sido o comandante operacional do sequestro, que repercutiu no mundo todo e culminou com a libertação de 15 presos políticos. Capturado no centro de São Paulo, Virgilio passou quase 12 horas seguidas sob tortura e morreu de traumatismo craniano. Embora seu corpo tenha sido identificado no IML, foi enterrado como indigente. Ilda ficou nove meses presa, apesar de não existir acusação nem processo contra ela.
“Na verdade, eu não fui presa. Fui sequestrada”, afirma. Só depois de quatro meses de cadeia ela conseguiu receber a visita dos filhos. Sem emprego depois de sair da prisão, Ilda conseguiu asilo em Cuba, depois de passar um ano no Chile. Na ilha, trabalhou como costureira e só voltou ao Brasil nos anos 1990, depois de os quatro filhos terminarem o curso de Engenharia. De lá para cá, passou vários dias acompanhando as escavações no cemitério de Vila Formosa, para onde o corpo de Virgilio teria sido levado, segundo o laudo necrológico encontrado em 2004. Por enquanto, não sabe sequer se a indicação do laudo está correta. Há quase 43 anos Ilda está à espera de notícias.
PELO MUNDO
Como funcionaram outras comissões da verdade
ÁFRICA DO SUL A mais famosa comissão da verdade do mundo foi criada 18 meses depois que Nelson Mandela assumiu como presidente da África do Sul. Chamada Comissão da Verdade e da Reconciliação (CVR), registrou o testemunho de 22 mil vítimas e de 7 mil perpetradores de violações graves aos direitos humanos entre 1960 e 1994, durante o apartheid, o regime de segregação racial. O foco da CVR estava nos crimes praticados pelos agentes dos governos da minoria branca, mas abusos cometidos por militantes negros também foram investigados. As audiências foram públicas. Em nome da reconciliação nacional, a CVR optou por conceder anistia aos envolvidos em violações que confessassem seus crimes.
ARGENTINA Assim que terminou a mais sangrenta ditadura da América Latina, o presidente Raúl Alfonsín criou a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), em dezembro de 1983. A CONADEP atuou por nove meses e documentou a existência de 380 centros clandestinos de detenção e o desaparecimento de 8.690 pessoas durante a ditadura militar (1976-1983). No relatório final, Nunca Más, a CONADEP recomendou que os responsáveis pelos crimes fossem processados na Justiça. Em 1986, as ações foram canceladas por uma anistia geral, mas a lei foi anulada em 2005. Com isso, o julgamento de militares e de agentes civis do Estado envolvidos com sequestros, tortura e mortes voltou a tramitar na Justiça.
CHILE Os crimes cometidos por agentes do regime do general Augusto Pinochet, entre 1973 e 1990, foram investigados por duas comissões da verdade. A primeira, criada logo após a queda de Pinochet, investigou 2.920 casos de assassinatos e desaparecimentos. A segunda comissão, nomeada em 2003, tratou de cerca de 27 mil denúncias de outras violações, incluindo a tortura. No final, houve pedido de desculpas do Estado, reparações financeiras e punições. Mais de 500 acusados foram julgados. Pinochet escapava dos processos alegando fragilidade mental. Preso em Londres por ordem do juiz espanhol Baltasar Garzón, voltou ao Chile. Estava em prisão domiciliar, devido a ação na qual era acusado pela morte de nove oposicionistas, quando morreu em 2006.
EL SALVADOR A Comissão da Verdade foi criada em 1992, durante os acordos para encerrar uma guerra civil que durou 12 anos, deixou 75 mil mortos e oito mil desaparecidos. Intermediada pela ONU, funcionou oito meses, em San Salvador e em Nova York, nos Estados Unidos. Formada por três personalidades estrangeiras, a comissão analisou tanto as ações dos agentes do Estado quanto as da guerrilha de esquerda. Concluiu que agentes do Estado cometeram a maioria dos 22 mil casos de tortura e execuções. Não houve punição, pois o Congresso aprovou uma anistia geral. A comissão se manifestou contra o perdão e responsabilizou perpetradores, como o major do Exército Roberto D’Aubuisson, que mandou assassinar o arcebispo Óscar Romero enquanto ele celebrava uma missa.
PERU Criada em 2001 para investigar o mais violento período da história do país, entre 1980 e 2000, a Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR) ouviu 17 mil testemunhas e contabilizou 69,3 mil mortos no período. A maioria das vítimas eram moradores da zona rural. Depois de dois anos de trabalho, a CVR concluiu que o grupo terrorista Sendero Luminoso tinha sido responsável por 54% dos casos de vítimas fatais. O presidente Alberto Fujimori, que havia fugido do país, também foi responsabilizado por mortes e sequestros. Extraditado posteriormente, Fujimori cumpre, desde 2009, pena de 25 anos de prisão pelos crimes. Outros acusados estão em processo de julgamento, pois no Peru não há lei de anistia.
TIMOR LESTE Colônia de Portugal até 1975, o país foi ocupado pela Indonésia assim que negociou a Independência. Vinte e cinco anos depois, por meio de plebiscito organizado pela ONU, reconquistou a Independência. Mas as milícias indonésias atemorizaram a população até o último momento. Quando os capacetes azuis da ONU intervieram no país, só encontraram destruição. A comissão criada em 2000 concluiu que 18,6 mil pessoas morreram nos conflitos, 70% delas vítimas das forças indonésias e seus aliados locais. Como as violações também envolviam países aliados da Indonésia, entre as recomendações da comissão estava reparação internacional às vítimas. No final de maio, o presidente José Ramos-Horta terminou o mandato lamentando o fato de as recomendações da comissão não terem sido seguidas.
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