A imigração está no foco das discussões mundiais. É cada vez maior o número de pessoas que deixam para trás uma vida de penúria e embarcam em uma verdadeira aventura – muitas vezes com final nada feliz – para tentar a sorte em um país desenvolvido. O governo brasileiro estima que entre 3 e 4 milhões de pessoas tenham partido para viver em território estrangeiro. Em meio a calorosas discussões, o Parlamento Europeu se reuniu no dia 18 de junho para aprovar novas regras de imigração. A partir de 2010, os imigrantes ilegais residentes na União Européia terão de sete a 30 dias para deixar o país voluntariamente. Caso contrário, poderão ficar detidos por até seis meses – período prorrogável por mais 18 meses, em casos excepcionais. Se forem expulsos, ficarão proibidos de retornar durante cinco anos. Até então, cada país fazia as suas próprias regras.
Em comunicado oficial, o Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, lamenta a decisão. “O Brasil, país que deu acolhida a milhões de imigrantes e descendentes hoje harmoniosamente integrados na sociedade brasileira, lamenta uma decisão que contribui para criar percepção negativa da migração…” Para discutir a situação dos imigrantes brasileiros, será realizado em julho, no Rio de Janeiro, um seminário promovido pelo ministério das relações exteriores com a presença de especialistas, chefes dos postos consulares e representantes da sociedade civil.
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O objetivo é debater a realidade dos imigrantes, quais os maiores problemas enfrentados e o que pode ser feito para evitar que os brasileiros padeçam fora do Brasil e consigam o apoio necessário. Para ilustrar o evento, brasileiros que vivem em terras estrangeiras contarão suas experiências, muitas vezes, constrangedoras. histórias assim existem aos montes. Entre os lugares que mais concentram brasileiros atualmente está a Espanha, país que no início do ano causou um desconforto diplomático ao impedir a entrada de brasileiros em seu território.
Três mulheres. Três brasileiras. Três histórias que se cruzam com a de milhares de brasileiros que partem para a Espanha em busca de uma vida melhor, uma vida normal. A imigração de brasileiros assim como a de outros estrangeiros para a Espanha é um fenômeno recente. Explodiu nos últimos sete, oito anos. Coincidiu com a dificuldade de imigrar para os Estados Unidos depois dos atentados de 11 de setembro, com a exigência do visto para o México, o que dificultou a entrada pela fronteira dos EUA, com o crescimento econômico espanhol, a demanda principalmente na construção civil, e com a vantagem salarial da Espanha em relação a Portugal, até então um dos principais destinos de brasileiros na Europa.
Hoje, segundo dados oficiais das autoridades espanholas, os brasileiros somam 120 mil (esse número também inclui quem tem dupla nacionalidade). De 2006 para 2007, só em Madri, o número de brasileiros cresceu 18%. Estão, junto com os paraguaios e os romenos, entre os três grupos de imigrantes que mais aumentaram a presença na capital espanhola no último ano.
O demógrafo Duval Fernandes, da PUC de Minas Gerais, está traçando o perfil do imigrante na Espanha. Passou cinco meses em Madri e entrevistou 404 brasileiros. A maioria vem do Paraná, de São Paulo e de Minas Gerais e tem entre 20 e 34 anos. As mulheres representam 60% do total – uma estatística que quebra uma tradição da imigração brasileira. “Se olharmos as imigrações para Estados Unidos, Portugal, Paraguai e Japão, principais destinos de brasileiros, os homens sempre foram maioria.” Outro dado que impressionou o demógrafo: 42% dos entrevistados nunca tinham saído de suas cidades de origem antes de imigrarem para a Espanha. “As pessoas vêm enganadas, iludidas com as histórias dos primos, dos vizinhos, achando que vai ser fácil melhorar de vida, não imaginam o que vão ter de enfrentar. A volta sempre faz parte de todo trajeto”, afirma o professor Fernandes.
O regresso é mesmo o maior desejo de Leila, a moça das caipirinhas na foto ao lado. Muito mudou desde que veio pela primeira vez para a Espanha, há oito anos. Hoje, nada de uvas. Ela e o marido já têm três casas no Brasil, um lote, carro, moto e dinheiro guardado. Conseguiram trazer as filhas pequenas. O pai de Leila veio para cuidar das crianças. Acabou ganhando tanto dinheiro que, depois de quatro anos, comprou uma fazenda em Goiás e voltou para o Brasil. As filhas, hoje com 9 e 13 anos, também voltaram para Goiás. “Cada vez que se consegue algo, se quer mais. Queríamos uma casa, já temos três… É a ambição, quanto mais se tem, mais se quer.” Apesar de morar numa casa de três andares, Leila, que trabalhou em fábricas de doces, em lojas, e hoje serve caipirinhas no Oba Oba, um dos bares brasileiros mais antigos de Madri, tem um sonho: “Meu maior desejo é voltar para o Brasil e reunir a família. Sei que é impossível porque o meu marido considera a Espanha a sua mãe adotiva, foi aqui que ele conseguiu tudo o que tem na vida.”
“Quem chegou há oito anos se deu bem, quem chegou há quatro também ganhou dinheiro, mas quem chegou de setembro do ano passado para cá já está arrependido”, afirma a brasileira Izildinha, a Zizi, considerada por muitos a mãe dos imigrantes brasileiros em Madri. Zizi coordena El Camino, a primeira ONG destinada a orientar e amparar os brasileiros. A desaceleração da economia, a crise imobiliária e o baque na construção civil afetaram o mercado de trabalho. “Não existe mais o subemprego e há um excesso de imigrantes de vários países. A construção civil parou. Não há trabalho para os homens”, diz Zizi, confirmando o resultado da pesquisa de Fernandes. As mulheres vêm primeiro e conseguem logo emprego como domésticas, internas, como são chamadas na Espanha. Trabalham de segunda a sábado “internas” na casa da patroa e têm folga aos domingos. “Mas para o homem está muito difícil”, explica Zizi. “Há três anos, um pedreiro podia ganhar de 80 a 100 euros por dia. Agora, se conseguir entre 6 e 18 euros, é muito. E tem cem pessoas disputando uma vaga. Meu objetivo não é dar roupa nem comida, mas inserir todos no mercado de trabalho. E impedir que mais venham.” El Camino recebe pedidos de ajuda e denúncias de abuso contra os imigrantes em Madri, Toledo, Marbella, Barcelona, Escalona. “Às vezes recebo 160 chamadas telefônicas por dia. Acredito que haja muito mais do que 120 mil brasileiros. Muitas vezes só consigo dormir por uma hora. Fico contando quantos jovens já pus para trabalhar, quantos ainda faltam e me pergunto: quem vou ajudar hoje? Se a pessoa fala comigo ainda no Brasil, eu a convenço a não vir. As pessoas saem do interior do Brasil, chegam ao aeroporto com 50 euros, sem falar uma palavra de espanhol. São enganadas por máfias de brasileiros que vendem documentos falsos, passam fome. Chegam com “hotel” comprado no Brasil e, quando vão ver, o lugar é um sótão cheio de ratos. Vêem estes anúncios nos pontos de ônibus aqui em Madri e, quando chegam para alugar um quarto, acabam presos num esquema de prostituição. Já tirei brasileiras de apartamentos onde eram forçadas a dormir com vários homens por noite para pagar o quarto em que estavam. Aqui, se você não tem dinheiro no fim do mês, vai para o olho da rua. Não tem conversa. Ainda tem os patrões que empregam imigrantes sem documentos e depois dão o calote.”
Um ano e meio depois de bater tantas palmas, as mãos de Glauce agora acariciam a barriga de quase nove meses de gravidez. Ela, que estudava direito em Rondônia, espera, junto com o marido, Paulo, o nascimento da primeira filha, que já tem nome espanhol, Alejandra. Como a maioria dos sem papel na Espanha, o casal divide o apartamento com outros imigrantes. São cinco quartos, um banheiro. Alejandra vai viver com os pais num quarto de 3 por 5 metros. O casal paga pela habitación (como se diz em espanhol) 350 euros por mês (quase R$ 900). Primeiro, eles foram para Portugal, depois, os amigos os chamaram para a Espanha, onde, enquanto Glauce batia palmas em Madri, Paulo trabalhava quase 18 horas por dia numa obra na cidade de Alicante. Agora, com a crise na construção civil, Paulo conseguiu emprego numa lanchonete. Glauce também. Tiveram sorte. Juntos ganham mais ou menos 2 mil euros por mês (pouco mais de R$ 5 mil). Pela lei espanhola, como mãe de uma criança nascida no país, Glauce não pode ser expulsa. “Quando eu cheguei, nem sabia falar espanhol e ficava cinco horas seguidas batendo palmas. Eu vim para cá por amor, por causa do Paulo. Eu quero um dia voltar a estudar. Mas a minha filha vai ser espanhola também, vai ter as portas mais abertas para o mundo. Não me arrependo.”
À sala compartilhada do apartamento que eles chamam de piso (como os espanhóis) vão chegando os amigos. Todos de Rondônia. Todos com histórias para contar. Marciano foi o primeiro do grupo a trocar Portugal pela Espanha. “Vim sem eira nem beira, vim como um maluco”, confessa. “Só não morri de fome porque um equatoriano me ajudou.” “Ele nos enganou, mentiu”, ri bem-humorado o outro amigo, Fernando, que quando chegou foi trabalhar com Paulo em Alicante enquanto a mulher, Luciamara, batia palmas com Glauce em Madri. Marciano retruca dizendo que, nos bons tempos, chegou a ganhar 2.400 euros por mês trabalhando como peão. “Trabalhávamos até 1 da manhã”, lembra. “Você chegava endividado. Mas trabalhava seis meses, 12 horas por dia, e juntava dinheiro a rodo. Se você tem um emprego, come bem, vive bem”, conclui, taxativo. “Olha, a gente aqui na Espanha aprende a ser mais humilde, a dividir, você vive num apartamento com outras cinco famílias, um banheiro é dividido por seis ou mais pessoas”, relativiza Fernando. O irmão de Fernando, que também se chama Paulo, era agricultor em Rondônia. “O meio ambiente não deixa a gente trabalhar”, começa Paulo. “Eu sou multado pelo Ibama, não tenho dinheiro para pagar, sou preso. O grande latifundiário também é multado, mas tem amigos no Ibama e não tem de pagar. O Brasil é um país de poucas oportunidades. Fui ao médico em Rondônia, tinha cólica renal e ele me receitou paracetamol, você acredita? Eu não precisava ir ao médico para isso. Para tudo tem de ter um padrinho”, afirma Paulo, revoltado. A mulher, Sandra, acaba de chegar de Rondônia. Estava sofrendo de depressão e está à base de medicamentos. Os dois não têm emprego. “Vim pelo meu filho”, explica Paulo. Leandro, de 16 anos, está sentado, calado, ao lado dos pais. Não larga a câmera de vídeo com a qual registra a conversa na sala. “Ele está na escola, estuda.” A filha ainda está no Brasil, longe dos pais.
E que conselho o grupo de Rondônia daria aos brasileiros que querem imigrar? Todos se olham, sorrindo. “Não adianta dizer para os outros não virem. Eles não acreditam. Acham que você está ganhando muito dinheiro e que não quer que outros ganhem. Não acreditam que a vida é difícil”, explica, resignado, Fernando. No caso de Marciano, os dias na Espanha estão no fim. Depois de quatro anos, já com casa em Rondônia, vai voltar para o Brasil com a mulher e o filho recém-nascido. Mas quem disse que a volta é definitiva? Os olhos de Marciano brilham ao confessar que não sabe se vai ficar em Rondônia. Estados Unidos? “Como é a vida lá?”, pergunta, curioso, já pensando num próximo destino.
Em Madri, o destino dos brasileiros são os bairros de Oporto, Plaza Elíptica, Carabanchel, Abrantes, Aluche. Impossível andar nas linhas 5, 6 ou 11 do metrô da capital espanhola e não ouvir mais histórias em bom português. Dos 260 mil habitantes de Carabanchel, 25% são imigrantes. O governo da capital tenta responder à nova realidade. Em 1999, 150 mil estrangeiros viviam em Madri, hoje são 1,6 milhão – dez vezes mais. Quando Elayne Meireles Bezerra saiu do Rio de Janeiro para a Espanha, há 12 anos, quase não se ouvia português nas ruas de Madri. Elayne chegou sem papéis. “Tive de fazer tudo sozinha, me virava para descobrir como me legalizar, fiquei quatro anos e meio em situação irregular e levei mais de um ano pra resolver tudo. Foi difícil, principalmente quando trouxe meus filhos. Eu me perguntava o que vim fazer aqui.” Hoje Elayne trabalha numa empresa especializada em ajudar imigrantes a regularizar a sua situação. “Os brasileiros são muito mal informados sobre o que precisam para regularizar a situação. Se fossem mais bem informados, veriam que não é tão caro nem tão complicado se legalizar”, acredita Elayne. “No domingo, continua o espanhol Ángel González, dono da agência, ficamos das 4 da tarde até 7 e meia da noite com um brasileiro que veio de Toledo porque caiu no golpe de um advogado que lhe vendeu documentos falsos. Não cobramos nada pela consulta. Atendemos pelo telefone e agora vamos lançar uma revista para tirar dúvidas.” Eles acreditam que Madri não estava preparada para essa onda de imigrantes. E que a imprensa só ajuda a aumentar o preconceito. “Na escola, minha filha de 14 anos tem amigos de várias partes do mundo, todos convivem bem. As crianças têm outra cabeça.” A sócia, a espanhola Esther García, concorda e conta que o filho de 7 anos veio um dia chorando da escola porque a amiguinha iria voltar para seu país de origem. “Esta relação com chineses, sul-americanos, romenos, nigerianos… Este futuro é importante.”
Hoje, 15% das crianças matriculadas nas escolas públicas de Madri são filhas de imigrantes. Em 2004, existiam na cidade três centros de atenção ao imigrante; hoje, são 26. Gabriel Fernández Rojas é o diretor de Imigração da Consejería de Imigración y Cooperación, órgão criado há três anos para cuidar da situação dos imigrantes em Madri. “Trabalhamos com 80 ONGs que lidam diretamente com imigrantes”, explica Fernández Rojas. “Nossa prioridade é incorporá-los ao mercado de trabalho, mas principalmente incorporar a segunda geração, que já nasceu aqui ou sofreu uma ruptura familiar. Muitos são adolescentes, órfãos de pais vivos, passaram anos em seu país de origem longe dos pais, que mandavam dinheiro e tudo para os filhos. Quando o pai e a mãe finalmente os trazem para a Espanha, eles estão ansiosos por carinho, atenção e conforto e não encontram nada disso pois, aqui, os pais trabalham duro o dia inteiro e vivem com muito mais sacrifício. Ser adolescente já é complicado em qualquer lugar, ainda mais nessas circunstâncias.” Fernández Rojas garante que a Espanha não quer repetir os erros que França, Inglaterra e Alemanha cometeram em relação aos imigrantes. “Foi uma política de exclusão, eles achavam que esses imigrantes viriam e voltariam para os seus países, o que não aconteceu.” Desde que a imigração entrou na arena política, o assunto não sai dos jornais. Segundo o cônsul brasileiro em Madri, Gelson Fonseca Jr., desde que a imigração virou tema de campanha na última eleição, os brasileiros deixaram de ser invisíveis. “Hoje, na Espanha, nenhuma comunidade de imigrantes é invisível”, afirma Fonseca. Alguns países da União Européia não vêem com bons olhos o fato de a Espanha ter políticas menos restritivas aos imigrantes. “Os espanhóis sempre imigraram e sempre foram bem recebidos em outros países, é natural que recebam melhor os imigrantes”, argumenta Fernández Rojas. O fato de a metade deles ser de países ibero-americanos também ajuda na integração, acredita o diretor de Imigração.
A entrada no país é mais fácil do que em outros países europeus (depois dos incidentes no início do ano, o número de brasileiros barrados quando chegam ao aeroporto caiu de 15 para três por dia). O imigrante, depois de provar junto à prefeitura que tem um domicílio de residência (o registro é chamado de empadronamento) na cidade, tem acesso ao sistema de saúde público e os filhos têm direito a educação gratuita. Depois de três anos trabalhando ilegalmente, um imigrante pode começar a regularizar sua situação. Países como a Itália temem um fluxo de imigrantes via Espanha. E o preoconceito aumenta. Segundo uma pesquisa de opinião publicada no jornal espanhol El País, em maio de 2008, 26% dos espanhóis citaram a imigração como um dos principais problemas do país. Em 2000, uma pesquisa do Center for Imigration Studies mostrava que 95% dos espanhóis eram mais liberais, achavam que uma pessoa deveria ter a liberdade de viver em qualquer país de sua escolha. Para o diretor de Imigração da Consejería, o crescimento da intolerância está ligado à difusão dos estereótipos. “Um deles é o de que o imigrante tira os recursos da população local, que com o imigrante o serviço de saúde piora. Olha, os imigrantes têm em média 30 anos de idade, não vão tanto ao médico assim. Outro que tentamos derrubar é o de que a delinqüência está associada à imigração. Isso é injusto”, afirma, categórico, Fernández Rojas. “Em qualquer sociedade vai sempre haver um x por cento da população que vai para a delinqüência. Saiu outro dia no jornal que nos centros de detenção há mais imigrantes que espanhóis. Ora, para se ter a liberdade condicional, precisa-se provar o domicílio, se o imigrante não é empadronado ou não tem família aqui, acaba ficando preso sem direito a fiança. Associar a delinqüência ao aumento da imigração é uma injustiça”, repete. “Os imigrantes fazem parte do crescimento econômico espanhol, foram eles que construíram o metrô, as estradas, o aeroporto, os novos edifícios; eles trazem uma diversidade cultural para a cidade onde hoje mora gente de 168 países; 30% têm curso universitário”, conclui o diretor de Imigração, que tenta também vencer o medo do imigrante sem papel de se aproximar da Consejería. Hoje, dos imigrantes empadronados (registrados junto à prefeitura), 60% são legais e 40%, ilegais. “Eles têm de entender que não precisam ter medo. Só revelamos a condição deles se recebemos ordem judicial”, explica.
São quase 9 horas da noite de um domingo em Madri e a Igreja Internacional de Madri em Oporto está lotada de brasileiros, a maioria sem papéis. O púlpito parece um palco. Em vez da cruz, uma bateria. A música ecoa entre a platéia que, a cada palavra do pastor Sérgio, aplaude. Microfone em mãos, o pastor do Paraná, que também chegou à Espanha sem papel, fala aos mais de 200 fiéis: “Pode ser que você não tenha papel aqui na Espanha, mas tem papel no reino de Deus”. O sermão é repleto de referências à situação do imigrante sem autorização de trabalho.
“Tem crise na Espanha. A sua família no Brasil diz que o Zapatero (primeiro-ministro espanhol) não vai fazer nada por você. O mundo grita crise, você grita Cristo!”, grita o pastor, empolgando a platéia. “Você chegou a esta nação, as coisas ainda não aconteceram, ainda não começaram a ser como você quer. Nas situações adversas, Deus nos surpreende: entra para decidir, para ganhar, para fazer você vencedor.” Os fiéis reagem com mais aplausos, desta vez de pé. “O espírito vai chacoalhar nossa vida, mudar nossa sorte. Nesta semana, Deus vai mudar sua história nesta nação. Eu não sou mais fracassado, eu não sou derrotado. Eu quero ir mais alto, eu preciso ir mais alto.” Mais aplausos.
“A Igreja não pode viver no mundo real só com espírito”, diz o pastor Sérgio em entrevista a Brasileiros. “A minha mulher, que também é pastora, tem uma rede de 30 mulheres espanholas que nos ajudam a arranjar emprego para brasileiros. O que traz o brasileiro para a Espanha é o dinheiro. E a má informação. Eles pensam que você chega aqui de manhã, fica rico ao meio-dia e volta à noite para o Brasil.” Segundo o pastor Sérgio, por semana, de 850 a 900 brasileiros passam pela Igreja, que também atende a um grande grupo de filipinos. A cada culto em português, a Igreja recebe de oito a 15 novos fiéis. “Temos gente de todas as classes sociais. Psicólogas fazendo faxina e gente formada em direito trabalhando como pintor de parede.” Indago se ele não acha que o culto pode incentivar os brasileiros a não regularizarem sua situação. O pastor afirma que não apóia a imigração ilegal, nem a compra de documentos falsos. Ele mesmo já tem a sua situação regularizada. “Os sem papel se sentem o refugo da sociedade, desprezados. Mostramos que eles têm valor, por isso digo que eles não têm papel aqui mas têm no reino de Deus. As pessoas estão frustradas. Eu não sou o Super-Homem, nem minha mulher a Mulher Maravilha, temos de os munir de armas para que eles possam combater a depressão.” Quando pergunto sobre a cobrança do dízimo, o pastor diz que é necessária para cobrir os custos da Igreja, aluguel e, segundo ele, um advogado que esclarece as dúvidas dos imigrantes.
Helena e Tina são amigas de Umuarama, no Paraná. Vieram juntas ao culto. Helena conta que fez de tudo, “limpei bumbum de velho, fiz limpeza”. Há quatro meses vem à Igreja que o pastor Sérgio fundou há três anos. O que as traz aqui é a palavra. “O governo brasileiro deveria ajudar as pessoas a virem para cá”, afirma, convicta, Helena, já dentro do metrô a caminho de casa. Tina reage às gargalhadas: “Tá maluca? Aí vem o Brasil inteiro”.
“Eu não tenho igreja, eu não cobro dízimo. Só peço aos brasileiros que não venham sofrer aqui”, implora Zizi, da El Camino, numa verdadeira peregrinação pelas ruas de Madri. Ela vai à Consejería, entra em canteiro de obras para checar se imigrantes estão sendo explorados. Mexe no lixo até encontrar roupas e, quando esbarra num estrado de cama, liga imediatamente para algum imigrante vir buscar. Andar pelas ruas de Abrantes ou Carabanchel com Zizi é como andar ao lado do prefeito de uma cidade do interior. Todo mundo a conhece. Em dois minutos de caminhada, encontramos Manuel e um amigo. Os dois vieram com as mulheres de Rondônia. Manuel chegou há um ano e meio. Não tem documentos para trabalhar. Hoje, os quatro estão vivendo temporariamente na casa de Zizi. Ela chegou a abrigar 25 brasileiros de uma só vez. Quase foi expulsa pelos vizinhos. Hoje, batalha por fundos para criar um centro de abrigo com dormitórios. Já conseguiu financiamento para um curso de culinária, os imigrantes já têm aulas de espanhol, a ONG acaba de receber uma doação de 40 computadores para aulas de informática. “É preciso treiná-los e capacitá-los para o mercado de trabalho. Meu objetivo é que todo brasileiro tenha uma ocupação e regularize seus status.” Segundo Zizi, El Camino já atendeu 672 imigrantes. Só 12 estão sem emprego. As atividades variam: guarda-vida nas piscinas no verão, distribuidor de panfletos, doméstica, e por aí vai. O marido, um missionário espanhol, tem um caminhão de mudanças e também dá trabalho aos imigrantes. É com o dinheiro das mudanças e da venda de produtos de limpeza que o casal mantém a ONG. Enquanto Zizi explica como funciona El Camino, outro brasileiro passa e cumprimenta. Também é de Rondônia. Todos riem. “Até os seis filhos do vice-prefeito de Urupá, em Rondônia, estão na Espanha”, diz, sorrindo. Zizi completa: “Tem cidades inteiras aqui. Jaru, Presidente Médici, Ouro Preto do Oeste”. “A gente vem iludido”, desabafa Manuel. “Dizem que é muito bom, que você vai ganhar muito dinheiro. Se soubesse o que iria enfrentar, não teria vindo. Agora só quero recuperar o que gastei para vir para cá.”
A diarista Elizabeth não conhece Zizi, mas também veio para Madri depois de uma tragédia. Há sete anos, quando o filho morreu de um ataque do coração, Elizabeth deixou o Rio de Janeiro para fugir das lembranças. Os tempos eram outros e em três dias conseguiu emprego. Hoje, legalizada, trabalha de dia como doméstica e à noite num restaurante. “Como vim sozinha, compensou. Juntei dinheiro. Tenho duas lojas no Rio de Janeiro. Uma de roupa e uma casa de lanches. Beta, como todos a chamam, acha que o fator sorte é fundamental e concorda com Zizi. Se pudesse dar um conselho para quem está no Brasil, diria: “Não venha. Você vai sofrer demais. Quando cheguei, ninguém corria atrás da gente na rua. Hoje, no metrô, na cabine telefônica, na lanchonete, a polícia vem atrás do imigrante ilegal. Há sete anos, a gente andava na rua numa boa”.
Na fila do Consulado brasileiro, as histórias se repetem. Sandra chegou às 6 da manhã para adiantar a papelada de casamento. “A vida no Brasil não dá para nada. O salário acaba antes do fim do mês, as pessoas fazem faculdade para depois não ganharem nada. Se a pessoa tem cabeça, vale a pena vir para cá”, afirma Sandra. Sandra é de Maceió, vivia no Rio de Janeiro e já é a segunda vez que mora na Espanha. O sonho de ter um passaporte europeu vai se concretizar com o casamento com um português. “Aqui a gente não vive, a gente trabalha. Olha as minhas unhas…”, fala, mostrando as mãos. “Eu trabalho na barra (bar/balcão) de uma lanchonete das 3 da tarde às 3 da noite. Eu ralo mesmo. Mas compensa. Meus filhos no Brasil têm tudo. Minha filha toma conta da loja de chocolate que tenho na Tijuca, no Rio de Janeiro. Eu vim pelos meus três filhos. Quando os deixei no Rio, entrei no avião sem alma. Não tenho vida, mas meus filhos têm tudo”, repete, orgulhosa. “Se você tem coragem para sair do seu país, tem de ralar. Não me arrependo, mas quem acha que vai fazer a vida em dois anos está muito enganado”, conclui.
Nos últimos meses, aumentou no Consulado brasileiro a quantidade de telefonemas de imigrantes ilegais pedindo informações sobre como voltar para o Brasil. Zizi também diz que conseguiu dinheiro para pôr no avião de volta para o Brasil três pessoas em uma semana. “Em geral, são pessoas mais velhas.” Os mais jovens insistem. “Ninguém gosta de admitir o fracasso.” Liamara tem pouco mais de 20 anos, chegou há menos de um ano. Vive o dilema: voltar ou ficar? “Choro todos os dias com saudades dos meus pais. Um dia, logo quando cheguei, estava almoçando e não conseguia parar de chorar pensando que eu deveria estar trabalhando em frente a um computador e não fazendo faxina. Para quê?”
Na contramão de tantas histórias de imigrantes sem papel, a filial do tradicional restaurante Rubaiyat em um bairro chique de Madri parece um oásis. Dos 105 empregados, 70 são brasileiros. Segundo o gerente, todos legalizados. Na cozinha, o sorriso é fácil. Ao contrário dos brasileiros que chegaram a Madri direto de cidades do interior, a maioria que trabalha aqui já morava em São Paulo, vinda do Norte e do Nordeste. Do outro lado da cidade, num açougue em Aluche, o brasileiro Gilberto também sorri, todo feliz. Desde os 10 anos trabalhava com corte de carne no interior de São Paulo e veio de Sorocaba com a autorização de trabalho do empregador espanhol. Agora, a mulher e o filho estão a caminho. Já a colega de trabalho Andréa, de 22 anos, não se conforma de ter parado de estudar direito em Rondônia. E, como tantos outros brasileiros, só pensa em voltar. “Aqui eu não vivo, só trabalho.”
Quando esta reportagem for publicada, Alejandra, filha de Glauce e Paulo, já terá nascido. Leila estará visitando as filhas no Brasil. Elayne continuará sonhando em levar o marido espanhol para conhecer o Brasil. Zizi estará no Rio de Janeiro onde, pela primeira vez, terá a chance de expor em público as histórias trágicas que fazem parte do seu dia-a-dia no seminário que o Ministério das Relações Exteriores organiza para discutir a situação de imigrantes brasileiros pelo mundo. Quem sabe Marciano estará contente com a família em Rondônia? Liamara já terá decidido se volta para casa? E a mulher de Paulo, Sandra, já terá saído da depressão? São muitas interrogações, histórias, sonhos, frustrações, medos. Mas, acima de tudo, o que esses brasileiros e brasileiras tiveram e têm é a coragem de contrariar o destino, de lutar por uma vida melhor, por uma vida normal.
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