Impacto internacional

Paulo Abrão diz que o desrespeito ao resultado eleitoral de 2014 será visto com desconfiança. Foto: Rodrigo Farhat
Paulo Abrão diz que o desrespeito ao resultado eleitoral de 2014 será visto com desconfiança. Foto: Rodrigo Farhat

Quando o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da Lei da Anistia, em abril de 2010, perdoando crimes cometidos por agentes do Estado durante a ditadura militar, emitiu-se um forte sinal de tolerância com o golpismo – fenômeno que acomete o País atualmente. É o que defende Paulo Abrão, presidente da Comissão da Anistia do Brasil e diretor do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul. “É preciso compreender que a condenação moral da impunidade ditatorial do passado é, na verdade, uma proposta de compromisso político com o futuro democrático do País. É o que chamamos de construção das garantias de não repetição”, diz ele, que foi secretário Nacional da Justiça de Dilma Rousseff  entre 2011 e 2014.

Para Abrão, sem crime de responsabilidade cometido por Dilma, não existe justificativa legal para o impeachment. O possível afastamento da petista seria um “novo tipo de golpe, pós-moderno” – e essa ruptura democrática não seria tolerada pela comunidade internacional.

Brasileiros – O Brasil soube lidar com seu passado de ditadura militar? Acredita que a ameaça à democracia hoje está relacionada à falta de punição e esclarecimento sobre esse período?

Paulo Abrão – A vigência da Lei de Anistia presume uma legitimidade da ordem jurídica do Estado de Exceção. Quando o STF declarou a sua constitucionalidade, emitiu um forte sinal de tolerância com o golpismo. É preciso compreender que a condenação moral da impunidade ditatorial do passado é, na verdade, uma proposta de compromisso político com o futuro democrático do País. É o que chamamos de construção das garantias de não repetição. 

Qual o impacto dessa crise política na relação do Brasil com os demais países do Mercosul? 
Todas as principais autoridades internacionais estão atentas. Qualquer saída da crise que desrespeite o resultado eleitoral naturalmente será vista com desconfiança. A comunidade internacional não tolera mais rupturas democráticas. Nessa hipótese, vamos passar um tempo dando explicações, sofrer sanções políticas, mas também econômicas, pois quase todos os atuais acordos comerciais contêm cláusulas democráticas. Além disso, serão acionadas as cortes internacionais de direitos humanos e o Brasil passará a imagem de um país fora da legalidade internacional.

Qual é sua opinião sobre um possível impeachment de Dilma? É uma opção legítima?
Não há previsão constitucional de uso de impeachment por razões políticas ou pelo “conjunto das circunstâncias”. Somente se for por crime de responsabilidade, por desvio de função. Impeachment fora dessa regra é golpe de novo tipo, “pós-moderno”. É preciso respeitar os procedimentos do regime presidencialista. Se impeachment for visto como remédio para governo impopular ou sem maioria parlamentar, ou para resolver o problema da corrupção sistêmica, nossa história democrática será a de uma panaceia de sucessivas interrupções de mandatos. As ditas alegadas “pedaladas fiscais” não são crimes de responsabilidade previstas na Lei do Impeachment. E na doutrina penal não existe crime por analogia. Seria um escárnio um país com problemas tão graves de desigualdade ter a presidenta deposta por ter feito operações de crédito para assegurar a periodicidade do pagamento dos programas sociais para as populações mais pobres. Além de golpe ilegal, é golpe ilegal contra os pobres. É preciso senso de responsabilidade, pois um impeachment nesses termos e com uma sociedade dividida nas ruas é uma aposta em um conflito social absolutamente indesejável.

Qual pode ser a saída democrática para a crise política que vivemos?
Nosso desafio político atual eclodiu nos protestos de 2013 e foi sintetizado em um pessimismo desorganizado e generalizado. Os atos exigiam melhoria nos serviços públicos, novos direitos e um sistema político mais ético. Cá entre nós, uma agenda política da esquerda. Naquele momento, a saída para o governo não era ter confrontado os manifestantes, apelando à ordem e à segurança pública, mas justamente ter aproveitado o clima político favorável de exigência por mudanças para forçar o equilíbrio da sua coalizão para o lado dessas lutas que confrontavam interesses dos setores oligárquicos da sociedade. Aquela pulsão social veio de uma elevação da autoestima da população durante o próprio governo Lula que acabou se esbarrando, por diversos motivos, na descontinuidade ou desaceleração das transformações sociais no período seguinte. O PT e parte da esquerda, atuando na defensiva por serem base do governo, não compreenderam a energia renovadora daqueles protestos. Ocorre que a esquerda tem a sua identidade histórica forjada na capacidade catalisadora das demandas diretas da sociedade.  Perder essa vocação faz envelhecer e também gera enfraquecimento político. Não se perde apenas base social, mas também apoio e confiança política das forças que orbitam ao redor pelo interesse de coligar-se a essa capacidade. Se o País vencer a falácia ofuscante do impeachment como uma solução para todos os males, o governo e a esquerda terão uma nova chance. Depois de garantir o respeito à legalidade, o segundo passo deverá ser, sob novas condições políticas, se reorganizar para apresentar propostas que se comuniquem com as causas da rejeição generalizada à política.

Como se daria essa reorganização?
A reorganização deverá anunciar lealdade às forças que lhe garantem sustentação: fidelizar-se ao conjunto parlamentar que efetivamente permanecer ao seu lado, incluída a oposição de esquerda, e valorizar de fato toda a base social que sair em sua defesa, internalizando de forma sincera as suas agendas e reivindicações. Mas para isso as lideranças centrais do governo vão precisar ter a clareza de que a conjuntura exige um governo com perfil claro, renovado, altivo e diferente do que foi até agora. Nós chegamos ao fim do primeiro ciclo democrático pós-ditadura, em razão do esgotamento do seu modo de produção político-eleitoral: as coalizões centristas não programáticas, fidelizadas por meio de distribuição de cargos e pelo financiamento ilícito das campanhas eleitorais. Não se trata, portanto, de apenas ganhar tempo para melhorar a situação econômica do País. É necessário pensar uma agenda estrutural de preparação do País para algo melhor do que aquilo que aí está, seja no campo econômico, seja no campo político. Considerando que política é correlação de forças, está configurada uma força liberadora nas ruas para romper com esse modelo. O governo pode aproveitar essa energia, fazer uma sinalização às ruas e pressionar o Congresso para uma reforma política, que seja resultado de uma intensa agenda de debates nacionais.

Na hipótese de a oposição conservadora subir ao poder, ela poderia cumprir essa tarefa?
Não. Primeiro, porque a hipótese de isso acontecer antes de 2018 depende dessa manobra de ruptura democrática. E essa mácula não pacificará o País, pelo contrário. Segundo, porque o projeto da oposição conservadora não se acopla coerentemente com os desafios reais. Reduzir obsessivamente o tamanho do Estado, diminuir programas sociais e fazer ajuste fiscal à custa dos direitos das classes mais baixas é incompatível com a demanda por mais direitos e por melhores serviços públicos. Resultaria em um aprofundamento da crise atual. O grupo que tenta derrubar Dilma também não tem resposta para a crise ética, especialmente se a Lava Jato prosseguir. É evidente que esse hipotético governo teria mais benevolência por parte da mídia e isso modula o humor social. Mas seria puro simulacro de mudança. 

O que achou da nomeação de Lula como ministro-chefe da Casa Civil? Faz sentido Gilmar Mendes considerá-la “obstrução de Justiça”?
Qualquer cidadão é inocente até que se prove o contrário. Até o momento, Lula não é formalmente réu em nenhuma ação, nenhuma denúncia foi aceita por nenhum juiz. Sendo ministro, não há interrupção no prosseguimento das investigações de nenhuma denúncia contra ele que agora tramita junto ao STF, que, a propósito, não prevê a possibilidade de recursos, o que é menos vantajoso para qualquer investigado.  O STF demonstrou muito rigor no julgamento da AP 470 e dizer que Lula está escolhendo um “foro privilegiado” é duvidar da idoneidade dos ministros do STF.

E sobre a decisão de Teori Zavascki, considerando ilegal a divulgação dos áudios e devolvendo ao Supremo a decisão de quem continuará as investigações de Lula?
Foi uma decisão para tentar normalizar o devido processo legal e minorar os efeitos danosos que o juiz Moro produziu na Operação Lava Jato ao romper as barreiras da legalidade. É o melhor que poderia acontecer em favor da preservação da credibilidade com o sistema de Justiça porque com aquele episódio o juiz Moro perdeu a imparcialidade para julgar Lula. 

Qual a sua avaliação sobre a atuação do juiz Sergio Moro à frente da Lava Jato?
Renomados juristas estão denunciando problemas de relativização da presunção da inocência, cerceamento à ampla defesa, o uso de prisões preventivas para forçar delações premiadas, vazamentos ilegais por meio de relações obscuras com a imprensa e, principalmente, seletividade nas investigações. Isso preocupa, pois são situações típicas de processos penais de exceção ou de um Estado Policial. No combate à corrupção, tão importante quanto as ações concretas é a legitimidade de quem as executa. A instrumentalização política da Lava Jato no episódio da desnecessária condução coercitiva do ex-presidente, a divulgação ilegal de escuta telefônica presidencial sem remeter imediatamente os autos ao juízo competente, a juntada ao processo e divulgação de outras escutas que não possuem relevância processual sem lastro judicial, tudo isso na antevéspera de manifestações públicas convocadas pela oposição – o juiz enviou carta aos manifestantes! –, nivelaram a operação por baixo. Isso é uma lástima porque todos saudamos o curso institucional de uma ação investigativa contra a corrupção com todo o rigor e para atingir quem quer que seja. E muitos ainda acreditam que a Lava Jato é uma investigação realmente abrangente e independente para alcançar todas as práticas ilícitas de financiamento eleitoral de todos os governos e partidos. Outros apostam que, na hipótese da derrubada do atual governo, haverá o início do seu esvaziamento ou que o objetivo é apenas criminalizar o PT e a esquerda. O tempo vai nos responder.

Sobre a radicalização política no País, como chegamos a esse nível de intolerância? Qual o papel da imprensa nesse processo?
O autoritarismo é a negação do reconhecimento do outro. E boa parte da imprensa tradicional se pautou pelo antipetismo, apelando a todo tipo de casuísmo para vender a ideia de que o PT é o eixo do mal. As linhas editoriais naturalizaram manifestações de ódio e de intolerância, expressões pejorativas. No uso dessa linguagem confundiram oposição com agressão. Enquanto isso, o governo não se esforçou seriamente por uma lei de democratização das comunicações. Um dos reflexos é que a despolitização dos protestos incorporou a lógica do preconceito, para muito além do livre direito à crítica e de manifestação contra o governo. A repressão está aumentando, partidos e agremiações políticas têm suas sedes atacadas, padres são agredidos em missas, lideranças comunistas e populares são assassinados, universidades voltam a demitir por critério ideológico, emerge uma violência sexista contra a presidenta, elaboram listas de “supostos comunistas”, recrudescem as violações contra as minorias e há até agressão a ministro do Supremo. As pessoas voltaram a ser hostilizadas por pertencerem a um grupo político, religioso ou  por terem um pensamento. É desolador atestar que o fascismo acordou e já tem representantes no Congresso. O fascismo é contagiante e é urgente refletir seriamente sobre o sentido das coisas que têm sido ditas e sobre o não-dito que está ficando no subterrâneo dos discursos. 


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