“Professora, como se fala parabéns?”, pergunta uma aluna articulando bem cada palavra escolhida. “É que meu avô faz aniversário hoje”, explica. Em resposta, a professora Ana Cristina Queiroz Agria sorri, entrelaça as mãos no ar, na altura do peito e balança levemente os braços, como se celebrasse vitória. É assim que se “diz” parabéns na língua brasileira de sinais (libras), idioma dos surdos do nosso País.
Surda desde o nascimento, Ana Cristina, 44 anos, dá aula de libras nos cursos de Pedagogia e Letras – habilitação em Literatura e Língua Portuguesa – da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo. Para alunos ouvintes.
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Desde 2005, a disciplina de libras é obrigatória nos cursos de formação de professores no Brasil. “Acho importante aprendermos a língua dos sinais por causa da inclusão social, agora toda escola poderá ter alunos surdos, além de melhorar a nossa vida no dia a dia, como cidadã”, diz Gabriella Palma, 28 anos, uma das alunas de Ana Cristina. “É uma grande oportunidade termos uma professora surda, pois o mundo dela é o mundo de muitas crianças que vamos encontrar pela frente”, diz a também estudante Thauana Nigo, 27 anos. “Com ela, entendemos como os surdos têm outra compreensão das coisas”, completa Franciele Silva, 29 anos.
Na classe, quando a professora quer se referir à Franciele, ela faz um gesto de avião – a aluna trabalha no setor aéreo; quando “fala” de Thauana, desenha com o dedo no ar uma sobrancelha e uma pinta – traços marcantes do rosto da moça. As alunas explicam que todos na turma têm um “sinal” que os identifica. O “batismo” ocorreu nos primeiros dias de aula, e os nomes, que na verdade são gestos, foram escolhidos coletivamente. Ao conhecer o “apelido” de cada um, se torna nítida a influência da sensibilidade e da percepção da professora. Os nomes dizem muito de como cada aluno se mostra.
Embora seja uma aula não verbal, é a que proporciona maior comunicação entre os estudantes, segundo eles mesmos. “É a que gente mais se solta, e todo mundo participa”, afirma Thauana e um grupo de amigas concorda.
Além da parte teórica, a aula de Ana Cristina é repleta de atividades, desde práticas em dupla – recurso comumente utilizado em cursos de idioma – até o velho e bom “telefone sem fio”. A missão da professora de libras, que até os 16 anos se sentiu isolada por não conhecer a língua dos sinais, vai além de ensinar uma forma de comunicação. Quer fazer com que a inclusão social de crianças surdas seja de verdade. “Imagine com a lei que exige ‘incluir’ a criança surda na sala de ouvintes? Certamente, ela vai se sentir inferior e excluída, devido à dificuldade de se comunicar”, escreveu para entrevista concedida por e-mail à Brasileiros. Uma boa questão para se levar em conta.
Brasileiros – Qual a sua história de surdez?
Ana Cristina Queiroz Agria – Nasci surda, minha mãe começou a desconfiar da minha surdez quando eu tinha entre quatro e cinco meses de vida. Ela percebia que eu não virava a cabeça para atender ao chamado, como também para qualquer outro som. Meus pais esperaram eu ter um ano para fazer exame médico para comprovar a minha surdez, pois naquela época não havia procedimento específico para detectar a surdez. Tenho dois irmãos, sou a mais velha. O do meio é ouvinte e o caçula é surdo. Não sabemos por que nascemos surdos. Fomos buscar informações na ascendência familiar e não achamos nenhum parente surdo.
Brasileiros – Você já se sentiu sozinha por não conseguir se comunicar ou por algum outro motivo relacionado à surdez?
A.C.Q.A. – Sim, até conhecer a língua brasileira de sinais quando eu tinha 16 anos. Antes, vivia solitária, sempre fui a única aluna surda na sala de aula com ouvintes e minha família também é de ouvintes. Até que um dia, fui conhecer a comunidade surda e foi nesse momento que ocorreu uma libertação para mim: pude compreender que era diferente, mas não deficiente, e comecei a ter minha própria identidade. Também passei a conhecer a cultura surda e aceitei como importante para meu desenvolvimento pessoal, o que me trouxe uma autoestima positiva.
Brasileiros – Como foi sua infância?
A.C.Q.A. – Aparentemente, tive uma infância normal, mas apesar de brincar no prédio com outras crianças ouvintes, me sentia diferente e não conseguia entender corretamente as brincadeiras. Na verdade, tinha pouco tempo para brincar, pois tinha de ir a duas escolas: regular e especializada, para fazer fono. Eu odiava ir à escola, sempre ficava perdida na sala de aula regular e me esforçava muito para acompanhar a leitura labial. Eu queria desistir e só não saí por exigência de meus pais. Nem quero me lembrar disso porque sofro, mais ainda quando vejo alunos surdos incluídos na sala de aula regular sem intérpretes.
Brasileiros – Em sua opinião, libras deveria ser uma disciplina na educação básica das escolas?
A.C.Q.A. – Sim, muito importante, não só na educação básica, mas também na educação infantil e até superior. O Decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005, determina que todos os cursos de magistério devem incluir a disciplina libras como obrigatória e que os cursos de magistério em nível médio e superior devem ensinar libras, incluindo os cursos de licenciatura nas diferentes áreas do conhecimento e o de Pedagogia para que a sociedade tome conhecimento da oficialização das libras e possibilite assim a ampliação de novos caminhos que permitam uma mudança da visão do surdo e da surdez.
Brasileiros – O que você sugere para melhorar a inclusão de surdos na sociedade?
A.C.Q.A. – Há mais de oito anos que trabalho como pedagoga e professora, vejo que é possível fazer a inclusão na sociedade, mas não na educação básica. A maioria das crianças surdas, em torno de 95%, vem de famílias de ouvintes e não tiveram a oportunidade de adquirir sua língua materna e natural, a língua de sinais, devido ao fato de as famílias não terem informação e orientação em aprender a língua de sinais para se comunicar com os filhos. A orientação recebida era de uma concepção somente patológica. Então, os pais descobrem tardiamente que a língua de sinais é a que assegura uma comunicação completa e integral. Diferentemente da língua oral, a língua de sinais permite às crianças surdas em idade precoce se comunicar com os pais plenamente, desde que ambos adquiram-na rapidamente. O fato é que muitas crianças surdas têm grandes dificuldades para perceber e produzir a língua oral, uma vez que não ouvem os sons da fala. Esperar vários anos para alcançar um nível satisfatório que pode não ser alcançado, e negar durante esse tempo o acesso da criança surda a uma língua que satisfaça as suas necessidades (a língua de sinais) é praticamente aceitar o risco de um atraso no seu desenvolvimento linguístico, cognitivo, social e pessoal. As escolas recebem crianças surdas, que não conhecem a língua dos sinais e têm identidade negativa, e os pais ficam psicologicamente rejeitados ou com culpa. Os professores ouvintes, que não têm conhecimento profundo sobre língua de sinais, acabam por não conseguir ensinar a seu aluno surdo os conhecimentos que os ouvintes têm na escola regular; isso causa um grande atraso ao acesso do aluno surdo ao currículo e disciplinas. Imagine com a lei que exige “incluir” a criança surda na sala de ouvintes? Certamente, ela vai se sentir inferior e excluída devido à dificuldade de se comunicar. Há muita contradição entre lei da inclusão e decreto de libras. Temos de dar o direito para a criança surda crescer bilíngue-bicultural. Há pouco tempo, fui com a comunidade surda de São Paulo defender as propostas para implantação da educação bilíngue de surdos na Conferência Nacional da Educação. Explicamos que a criança deve ficar na sala de alunos surdos até a 4a série para desenvolvimento da linguagem. A partir da 5a série, eles ficam preparados para ir à escola inclusiva com intérprete de libras. Não conseguimos fazer valer nosso direito por causa da manipulação dos dirigentes que nem conhecem a nossa cultura, a língua de sinais e a identidade surda do Brasil e do mundo. Há alguns anos, fomos às ruas para impedir o fechamento das salas especiais devido à lei da inclusão em vigor. Alguns direitos foram conquistados, mas outros não, depende de cada escola. Outro dia, eu estava dando aula de libras na sala inclusiva para crianças ouvintes aprenderem a se comunicar com crianças surdas e fiquei pasma ao ver um aluno deficiente intelectual fora da sala da aula perambulando no corredor, pois a professora não consegue dar atenção para ele, uma vez que na sala dela tem 37 alunos! Que tipo de inclusão é essa? No discurso tudo é bom, unido, bonito… Mas, por trás, os diferentes ficam excluídos. As autoridades devem ver isso para sentir a realidade e a falta de consideração e respeito por professores e alunos. A escola e professores devem reivindicar intérpretes de libras para as aulas frequentadas por alunos surdos, que, em suas turmas, devem formar trios ou grupos maiores, de forma a estabelecer comunicação entre si e com os ouvintes. Não queremos contestar por contestar e sim mostrar o caminho certo para minimizar os problemas sérios, que permeiam a aprendizagem da criança surda.
Brasileiros – Quais são as diferenças entre libras e as outras línguas de sinais utilizadas por surdos em outros países? Não é uma língua universal?
A.C.Q.A. – Nenhuma língua, seja oral-auditiva ou visual-espacial, é universal. Como os ouvintes têm outras línguas como inglês, francês, alemão, os surdos tem ASL (American Sign Language), LSF (Língua de Sinais Francesa), LGP (Língua Gestual Portuguesa), entre outras.
Brasileiros – Qual o maior obstáculo que você já enfrentou?
A.C.Q.A. – Eu vejo que os obstáculos são enfrentados diariamente e nós escolhemos entre vencer ou perder. Uma das dificuldades de nós surdos é não ter como telefonar. Eu moro sozinha com meu marido surdo, não tenho como telefonar para marcar consulta médica, pagar contas, pedir uma pizza. Tenho de pedir um favor para alguém ouvinte fazer a ligação. Existe a lei de acessibilidade, porém ainda não está aplicada na prática.
Brasileiros – Qual o seu maior desafio hoje?
A.C.Q.A. – Procuro fazer parte da luta pelos direitos da comunidade surda e que sempre ocupei um espaço em qualquer área da surdez que faço não só de discurso, mas de prática, de vivência, de apoio real para conquistar as mudanças. As consequências políticas e pedagógicas levaram a considerar uma proposta bilíngue para os surdos, como ocorre com outras minorias sociais e culturais. A surdez nunca foi um problema para nós surdos e, sim, para a sociedade, que tem dificuldade em aceitar e conviver com nossa diferença. Isso mostra uma grande fragilidade para lidar com o desconhecido, o diferente.
Brasileiros – Qual o seu maior sonho?
A.C.Q.A. – São tantos… Um deles é conquistar a ampliação de espaços para surdos na área escolar, social e profissional com a proposta baseada no pressuposto de que os surdos fazem parte de uma comunidade minoritária, com valores, cultura e língua próprios e não como deficientes a serem curados ou transformados em ouvintes-falantes. Nós sonhamos em viver com respeito à nossa diferença.
Brasileiros – Você já sofreu preconceito?
A.C.Q.A. – Eu penso que não é problema de preconceito e, sim, falta de conhecimento e informação. O preconceito acontece quando as pessoas pensam sem tomar conhecimento sobre a surdez.
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