Impressões de um pirracento

Millôr me recebeu para falar de livros, autores e tradutores. Parte de nossa conversa foi publicada na saudosa Entrelivros. A que segue aqui é inédita. Nosso encontro aconteceu em 2005, quando ele se definiu como um leitor esperto, daqueles que sabem separar bem o que é vendido pela mídia e pela intelectualidade e o que realmente vale a pena ser lido e respeitado.

Gonçalo Junior – Algum livro ou autor é um embuste que não merece a fama que desfruta?
Millôr Fernandes – Não me lembro de um nome, mas tem uma porção de gente metida a escrever livros que não passa de embuste. Mas não são expressões consideradas definitivas na literatura. É evidente que Paulo Coelho é um embuste em sentido mais amplo, que são os livros de autoajuda, embora nem todos sejam chamados assim. As pessoas acreditam neles e, estimuladas, vão a cartomantes. Nesse sentido, acho que Paulo Coelho é um embuste especial. No mundo inteiro existem sujeitos que vendem de dois a quatro milhões desses livros. Ele estourou em um mercado gigantesco, seus livros caíram mais no gosto dos leitores.

G.J. – O senhor leu algum livro dele?
M.F. –
Li o último e escrevi uma nota para a Veja. Não ia sair dos meus afazeres para falar mal de Paulo Coelho. Toco no nome dele aqui ocasionalmente, trato de tema geral. Ele faz um marketing tremendo. A nota que fiz se chama Zahir (título do livro) e reproduzi 10 ou 15 linhas sobre Borges, que escreveu um conto com esse nome e são dez páginas primorosas, densas. Não sei se Paulo Coelho se inspirou em Jorge Luis Borges. Não falei do nome de Paulo Coelho. Apenas comentei sobre Borges.

G.J. – Tem algum romance inacabado?
M.F. – Não, nunca escrevi um romance. Só brinquei que iria escrever um e até publiquei uma página em um jornal. Mas desisti. Para que esse esforço? Queria mostrar só uma moça parada na calçada, sem outros personagens. Não sabia nem para onde ia. Não pretendo escrever nada. Sou um profissional, ganho a vida escrevendo. Tem pessoas que gostam de fazer romances. No meu caso, as pessoas leem tanto que acabam concluindo que têm de gostar de mim.

G.J. – Mas o senhor chegou a ganhar um concurso de contos com A Cigarra. Tinha pretensões literárias?
M.F. – Nunca tive. Sempre procuro ver as coisas com as quais fui agraciado. Tive muitas pessoas a meu lado, sobretudo o público feminino, gostando de mim e me protegendo. Quando fui para O Cruzeiro, grande revista do passado, tive essa sorte. Nunca pensei no que ia ser quando crescer e já trabalhava como jornalista aos 14 anos. Entrava no laboratório fotográfico e mexia nas químicas. Também ia à bolandeira mexer nos tipos. Como os quadros eram pequenos e faltava alguma coisa para preencher a página, fazia uma tradução, um texto. E isso deu uma amplitude à minha profissão. Sempre fiz tudo para ganhar a vida e tive o natural orgasmo de fazer coisas e mais coisas. Então, apareceu esse concurso, que dava um prêmio de 100 Réis, se não me engano, com o qual não se comprava nada de tão pouco. Sem ninguém por trás de mim, mandei o conto e ganhei.

G.J. – Do que tratava o conto?
M.F. – Não tenho a menor ideia. Naquela época, ainda me chamava Milton Fernandes.

G.J. – O senhor teve acesso a livros na infância e adolescência?
M.F. – Não. No Meier (Rio), lia no máximo os romances da Editora Vecchi, que distribuíam para empregadas domésticas ou donas de casas cujo nível intelectual não era superior ao da empregada. Eram semanais e bem fininhos. Duas ou três edições depois, eles suspendiam e vinham buscar o dinheiro, se a pessoa quisesse continuar a receber. Ocasionalmente, foram aparecendo algumas coisas. Eu me lembro de ter lido Manuel Bandeira, não toda a obra, mas um fragmento, um poema. Depois, quando comecei a estudar à noite, a coisa mudou. Lembro-me de um livro em inglês que me foi dado de presente por três ou quatro colegas, eu não tinha dinheiro para comprar. O que mostra que eles também eram pobres. Aí, eu ia para a Biblioteca Nacional. Ficava indignado porque no sábado e no domingo, quando tinha mais tempo para ler, estava fechada. E, durante a semana, fechava cedo. Em O Cruzeiro, sempre sobravam livros. Em seguida, comecei a traduzir textos e livros.

G.J. – Simultaneamente traduzia quadrinhos para O Gury?
M.F. – Sim. Eu tinha 16 para 17 anos. Traduzia com outros nomes. Lembro-me de Nunca Saí de Casa, de Bob Hope (1945), que trazia o diário que ele fazia sobre a guerra. Minha primeira tradução foi A Estirpe do Dragão (1942), de Pearl S. Buck, que ganhou o Prêmio Nobel. Fiz também O Último Trem de Berlim (1943), escrito por Howard K. Smith, um jornalista que narrava como havia sido o surgimento do nazismo e como fugiu da capital alemã. Esse também não era romance.

G.J. – Nunca quis traduzir romances?
M.F. – Sou um profissional, sempre fiz o que me encomendaram. Sobre minhas traduções de teatro, tem uma curiosidade: ninguém nunca contestou. A última que fiz foi Medeia, a pedido de Renata Sorrah, com Bia Lessa. Não fui ver. Não quero fazer mais traduções porque o teatro virou outra coisa na qual o autor foi relegado e não ganha dinheiro. Tudo é subvencionado e a bilheteria não interessa mais. Minhas peças foram todas encomendadas, exceto uma que escrevi e considero a melhor, Flávia, Cabeça, Tronco e Membros, com 23 personagens. Essa sim, criei com pretensão e só uns 20 anos depois foi encenada. Fez algum sucesso, ficou uns seis meses em cartaz. Fui ver o ensaio e não voltei.

G.J. – No tempo de O Cruzeiro e da imprensa carioca dos anos 1940-50, o senhor conviveu com escritores. Tornou-se amigo deles?
M.F. – Nássara, por exemplo, até o fim da vida. Durante um bom tempo, ele nos abandonou. Depois, com O Pasquim, nós o recuperamos. Era um desenhista extraordinário. Em caricatura, não existe alguém tão original quanto ele no mundo. Com 80 anos e surdo, andava conosco sempre com um sorriso bonito. Certa vez, alugamos uma Kombi e fomos para a Quinta da Boa Vista almoçar – eu, Chico Caruso, Jaguar e outros. Como ele adorava falar, guardávamos um papel para anotar perguntas. Quando estávamos chegando, Jaguar atirou pela janela a folha com as perguntas e disse: “Isso que é jogar conversa fora”. Trabalhei anos com Nelson Rodrigues. Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Sérgio Porto, Antônio Maria, todos amigos.

G.J. – O senhor lê páginas literárias nos jornais?
M.F. – Leio poucos jornais de São Paulo, não por preconceito. No Rio, leio O Globo, Jornal do Brasil e O Dia, que não tem voz nessa área literária. Mas isso já me ocupa muito tempo. Não pego os jornais paulistanos porque tem tanta coisa interessante que, se abrir, estou perdido. No Rio, pelo que conheço, não existe vida literária na imprensa. Tem Wilson Martins, que escreve na rotina de bom analisador, mas que não faz com que eu corra para lê-lo. No passado, tínhamos grandes críticos: Álvaro Lins, Brito Broca, Otto Maria Carpaeux. Mas, como não sou do ramo, lia só de passagem. Hoje, não há crítica, mas não me importa. Sou um existencialista, fico mais preocupado com minha vida.

G.J. – No começo, como disse, chegou a traduzir alguns livros…
M.F. – Para ganhar dinheiro. No começo, recebia tão pouco que minha moeda passou a ser a página de tradução. Precisava pegar um táxi e pensava: “Xi, gastei duas páginas de tradução” ou “Gastei três páginas num almoço”.

G.J. – O senhor disse que achava a Academia Brasileira de Letras uma “besteirada”, que não vestiria o fardão nem diante do espelho. E em um baile de carnaval?
M.F. – Nem isso. Há muito tempo não tenho nem gravata. Só três ou quatro pares de sapato, e o mais novo tem dez anos. Gostaria, sim, de receber o Nobel para recusar. Ficaria muito satisfeito. Claro, mandaria buscar o prêmio de US$ 1 milhão. Depois, dispensaria a honraria.


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