Incitação à violência sexual não é protesto democrático

Foto: Roberto Stuckert Filho/ Fotos Públicas (27/05/2015)
Na mesma semana em que foi recebida com reverência por Barack Obama, Chefe de Estado da maior potência global, em seu Próprio país a presidenta Dilma Rousseff é alvo de campanha misógina (Roberto Stuckert Filho/ Fotos Públicas)

Quem acompanha a novela diária do virulento racha político instaurado no País desde as eleições presidenciais de 2014 já deve ter visto, nas redes sociais, a mais recente ação de “manifestantes” que, seis meses depois de amargar a derrota nas urnas, insistem em desestabilizar o segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff e, pior, em atentar contra sua dignidade como chefe de Estado, cidadã e mulher.

Claro, oposição enérgica sempre foi algo inerente ao processo democrático (o próprio PT personificou esse direito em inúmeros momentos pós-redemocratização), mas a mais recente forma de “protesto” (muitas aspas nessa hora) contra o governo federal atingiu tamanho grau de repugnância e excrescência que nem sequer merece ser reproduzida aqui. Tão desprezível, chega a dar saudade dos panelaços ouvidos meses atrás.

Ao leitor que ainda não teve o desprazer de topar com a imagem, uma breve descrição do “protesto”: alguns cidadãos, indignados com o que consideram uma alta descabida no preço dos combustíveis no País, decidiram afixar no bocal do tanque de combustível de seus veículos adesivos que reproduzem uma montagem da imagem da presidenta de pernas abertas, a espera de ser penetrada com a pistola manipulada pelos frentistas dos postos de abastecimento.

Desnecessária uma análise psicanalítica ou partidária. Qualquer cidadão de bom senso é capaz de compreender que a conotação sexual explícita no protesto sugere uma associação de penitência, de castigo, um “estupro” praticado pelo famigerado “cidadão de bem” que, assim, julga manifestar de forma coerente sua insatisfação com a segunda gestão da presidenta.

A questão é que não há bem algum em uma atitude sexista, abjeta e antiética como essa. O protesto, aliás, é mais uma manifestação grotesca de uma faceta assustadora: o crescente ódio de gênero em berço político. Basta lembrar o tratamento destinado por seus oponentes na corrida eleitoral de 2014 às candidatas Luciana Genro, Marina Silva e a própria presidenta. Reeleita, na primeira metade de 2015 Dilma não teve sossego e vem sendo vilipendiada com toda sorte de ofensas verbais e palavrões revestidos da mais repugnante misoginia.

O repúdio feminino à campanha deflagrada por cidadãos motorizados vem se transformando em polêmica desde ontem (1), quando a imagem do adesivo ganhou maior repercussão nos feeds das redes sociais. Condenado por mulheres e homens, o “protesto” motivou ação rigorosa da ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci, que encaminhou denúncia ao Ministério Público Federal, a AGU (Advocacia-Geral da União) e ao Ministério da Justiça. No documento, a ministra solicita que sejam impedidas a produção, a comercialização e a divulgação dos adesivos que, horas atrás, ainda estavam disponíveis para compra em sites como o Mercado Livre, ao custo médio de R$ 35. Em um dos anúncios (reproduzido abaixo), o produto era descrito com o acréscimo do slogan, aparentemente “ingênuo”, feito pelo vendedor virtual: “Se divirta protestanto!” (sic).   

O tratamento ameno atribuído a essa peça grotesca por quem a cria, revende ou replica, talvez ajude a explicar porque o Brasil ainda detém índices vergonhosos de violência contra a mulher. Indiferença embebida em muito sangue. O mais recente levantamento do Mapa da Violência, que mensurou as incidências de homicídio em 2012, revela, por exemplo, que, naquele ano, mais de 4,7 mil mulheres foram assassinadas. Número que representa a média diária de 12 homicídios, ou seja, um mulher morta a cada duas horas. Divulgado em 2014 pelo Fórum de Segurança Pública, o balanço de estupros no País em 2013 revela outro número assombroso: mais de 50 mil mulheres foram violentadas no País, mais de dez a cada hora. 

Convenhamos, brincar de protesto com uma realidade atroz como essa é, para dizer pouco, atitude canalha.
 

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Detalhes de um dos anúncios veiculados no site de compras e vendas Mercado Livre (reprodução / Mercado Livre)

EM TEMPO:

Por meio da comunicação da Secretaria de Políticas para as Mulheres, a ministra Eleonora Menicucci também divulgou uma nota de repúdio. Leia na íntegra, a seguir:

“Recebi as denúncias com muita indignação. É intolerável o material que violenta a imagem da Presidenta Dilma. Ele fere a Constituição ao desrespeitar a dignidade de uma cidadã brasileira e da instituição que ela representa, para a qual foi eleita e reeleita democraticamente. Esclareço que a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República tem como principal objetivo promover a igualdade entre homens e mulheres e combater todas as formas de preconceito e discriminação herdadas de uma sociedade patriarcal e excludente.”

Leia também, a seguir, nota conjunta da AMB (Articulação de Mulheres Brasileiras) e da AFM (Articulação Feminista Marcosul), veiculada hoje, com o apoio de entidades de quase todos os Estados do País.

Nota de repúdio à produção, divulgação e comercialização de adesivos de automóveis que atentam criminosamente contra a imagem da Presidenta Dilma Rousseff.

“Nós, da Articulação de Mulheres Brasileiras e da Articulação Feminista Marcosul, vimos a público manifestar nosso repúdio à produção, divulgação e comercialização de adesivos de automóveis que atentam criminosamente contra a imagem da Presidenta Dilma Rousseff.  Repudiamos que essa imagem seja divulgada na Internet como uma ‘forma de protesto’, e consideramos que se trata de um crime de incitação à violência sexual pelo qual devem ser responsabilizados os sites e blogs que divulgam o adesivo como ‘forma de protesto’, assim como devem ser responsabilizado o site que o comercializou e aqueles que o divulgarem. Para nós, em uma democracia, a violência contra as mulheres jamais poderá ser considerada uma forma de protesto. Violência contra as mulheres é crime! Em uma sociedade patriarcal, a violência sexual vem sendo utilizada sistematicamente para subjugar a nós mulheres, nos dominar, nos desqualificar, nos castigar pela transgressão e pela busca permanente de sermos donas de nossos projetos de existência, é roubar nossa possibilidade de existir e ser com autonomia, rompendo as regras de sujeição que o machismo nos impõe, todos os dias. A imagem veiculada no adesivo violenta a todas nós mulheres brasileiras. O recado é muito explícito: é permitido invadir, utilizar, mercantilizar, violentar, devastar o nosso corpo e a possibilidade de existirmos como seres autônomos. Trata-se, portanto, não somente de uma apologia ao estupro, mas de uma autorização tácita para se violentar todas as mulheres, inclusive como instrumento de correção. É uma violência simbólica que reduz, nós mulheres, à condição de objeto e nos retira do lugar de sujeitos. A Presidenta é vítima da violência machista. É por ser mulher que é atacada dessa forma.  Nesse sentido, não é à toa que a presidenta foi escolhida nesse contexto de avanço do conservadorismo fundamentalista patriarcal. Difundir e naturalizar o uso dessa imagem é, na nossa perspectiva, ser cúmplice da violência, é praticar o crime de incitação à violência sexual contra as mulheres, em um país em que, todos os dias, em intervalos de minutos, uma mulher é estuprada e morta pelo machismo. Ademais, depreciar essa imagem é mais que depreciar a imagem da presidenta, é desqualificar a imagem da instituição presidência, é por em questão a possibilidade das mulheres ocuparem lugares de poder. Para que a violência contra as mulheres tenha fim, é necessário enfrentar os valores e ideias que ainda naturalizam este tipo de violência e que tentam justificá-la e banalizá-la. Manifestamos nossa solidariedade feminista à Presidenta Dilma Rousseff e a todas as meninas e mulheres que são vítimas da violência patriarcal no Brasil e no mundo. Mexeu com uma, mexeu com todas!” 

Por mim, por nós e pelas outras!  Por democracia no mundo e nas nossas vidas! Fim à violência contra as mulheres!

Assinam a nota: Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), Articulação de Mulheres Brasileiras – RJ, Articulação de Mulheres do Amapá, Articulação de Mulheres do Amazonas, Articulação de Mulheres do Mato Grosso do Sul, Articulação Feminista Marcosur (AFM), Cfemea – Centro Feminista de estudos e assessoria – Brasilia, Coletivo Autônomo  Feminista Leila Diniz – RN, Cunhã Coletivo Feminista – João Pessoa –PB, Fórum Cearense de Mulheres, Fórum Goi