Nos idos de 1967, o professor Eurico desceu o rio Aquidabán desde sua nascente, na Cordilheira Amambay, até a desembocadura, no Paraguai. Seguiu mais ao sul ainda, até Talcahuano, seu destino final. Nessa expedição botânica, teve a companhia de uma índia tapieté, só dela.
No último dia dessa singular jornada, ocorreu uma Lua Azul, a segunda Lua Cheia no mesmo mês. Um evento sem qualquer significado, apenas raro. Para alguns, um sinal. Não para um cientista.
O tempo passou e 35 anos depois o professor Eurico e seu colega Lauro desciam o rio Juquiá em busca de bromélias raras, quando, certa noite, o professor Lauro comentou que a enorme Lua Cheia que despontava na mata era uma Lua Azul.
Inesperadamente, a tal índia tapieté tornou à mente do professor Eurico. Sobrevieram aromas, sensações e, curiosamente, perguntas. Como pôde ter passado um mês com uma mulher sem que soubesse o nome dela? O que falaram? Quase não falaram! Quem seria ela? Por onde andaria ela? Como seria ela hoje? Como é possível não se lembrar da despedida? Assim começou o jorro de questões, abrigadas no silêncio do rio. O colega não estranhou aquilo porque o professor Eurico sempre fora calado, reflexivo. Distraído, o professor começou a assobiar Índia, a guarânia. E assim foi rio abaixo: Quando eu for embora para bem distante, e chegar a hora de dizer adeus! Não se lembrava mesmo da despedida. Que coisa!
Foram descendo o Juquiá pelo Ribeira até Iguape e por todo o Mar Pequeno até Cananeia. Doze dias assobiando a mesma música. O professor Lauro, calejado, atribuiu aquilo aos traços obsessivos do colega. Relevou.
Quando por fim chegaram a Cananeia, recolheram as canoas e a tralha toda. Um trabalhão danado. Foram para a Pousada Maruyama e logo à celebração do fim da expedição.
Aí, sim, a índia tapieté veio à baila. O professor Eurico contou tudo, inclusive a ocorrência da Lua Azul. Lá e cá, como disse. Com a diferença que, em 67 ele estivera no rio tanto na primeira como na segunda Lua, um mês lunar. Consideraram que índias se guardam em Luas Azuis e só se revelam quando observadas. Uma possibilidade, claro. E assim foram, falando bobagem, proseando longamente, até que o professor Lauro deu um passo em falso: Se a viagem durou um mês, provavelmente dela resultou um pequeno mameluco!
Para o professor Eurico, que jamais pensara naquilo, a abstrata tapieté converteu-se abruptamente em concreta criança. E na curiosidade sobre as feições da criança. E na falta que faz um pai à criança. E na impossibilidade de reparar esse dano. E na milagrosa conversão de uma criança em um homem feito. Por que não pensara em uma mulher?
Enlevado pelo charuto, o professor Eurico seguiu em esfumaçado devaneio. O olhar paralelo, a mente distante. Por fim, deu um suspiro e pôs os pés no chão: Naqueles tempos as coisas eram assim mesmo! O companheiro, aliviado, concordou. Pediram a conta e foram dormir.
No dia seguinte não se falou em rio, nem em índia, nem em Lua Azul. Muito menos em mameluco. Pegaram a estrada e tocaram a vida em frente. A única solução conhecida para esses casos complicados.
*PhD pela Universidade de Cambridge, foi professor titular da USP. É autor dos livros Choro de Homem (Ateliê Editorial) e O Pai de Max Bauer (Ateliê Editorial/Editora Brasileiros).
Deixe um comentário