Infância, essa prisão perpétua

Passei por uma juventude variada, podia escolher viajar, estudar, namorar, mudar de turma, casar, não casar, entrar para o movimento estudantil, ter filhos e uma carreira, sem jamais imaginar que essas escolhas seriam responsáveis pelo meu futuro, no qual também não pensava que tivesse de ser planejado, tendo em vista um objetivo que me fizesse superar a velhice, esse estado inesperado e desnecessário. Alguém já encontrou alguma sabedoria que por meio dela desse para corrigir os erros do passado? Então serve para que essa dita sabedoria da idade? Para usá-la em outra encarnação?

Terminei o Clássico, como era chamado o Ensino Médio, e fui fazer Filosofia na PUC, que eu adorava. Mas aí, uma amiga resolveu abrir uma butique comigo, bonita e moderna, contrastando com as de antigamente – e talvez a primeira reviravolta da vida já tenha começado aí. Depois de certo período, enjoamos da butique, que era, na verdade, um point do nosso grupo de 18 anos, em Copacabana, e resolvemos ir para a Europa, as duas.

Pronto. As cenas do nosso roteiro mudaram completamente e até o título poderia ter se transformado em: “Deixa a vida me levar, vida leva eu”. Nunca pensei que ela me levasse tão longe, pois fora do Brasil encontrei novas pessoas, novas opções, novos desejos, nova maneira de pensar e fiz um script completamente improvisado, que cada vez se afastava mais do argumento filosófico pensado ainda na PUC. Aquelas cenas do primeiro capítulo estavam péssimas. Aquela não era eu. Só uma coisa ainda fazia parte do tratamento original do filme: o destino marcando o roteiro com cenas inesperadas, trocando personagens, equipe, som, imagens, cenas e cenários, como em um passe de mágica.

Como eu estava longe agora daquela menina do Sion, dos amigos mais caretas e tradicionais; como tinha mudado de figurino, texto, atores coadjuvantes; como e por que o destino me levou ao cinema realista da minha vida, onde conheci o meu marido diretor, na Itália, e depois de dois anos, ainda fez com que outro cineasta, no aeroporto do Rio, me convidasse para trabalhar como atriz, coisa que jamais tinha pensado na vida.

Até que chega um dia que todo mundo fica mais velho. Nunca pensei que isso pudesse acontecer comigo e o estranho foi que, ficando mais velha, a vida me levou ao passado. Voltei a ser aquela menina do Sion, religiosa, emocionada. Optei, pela primeira vez, por uma vida certinha, mas com muito humor. Nos meus passeios, não fui mais ao Nordeste, mas a Petrópolis, onde passava as férias em Quitandinha, olhando os artistas de Hollywood no bar, tomando chocolate no D’Angelo, e fui reencontrando cenas da minha infância que voltavam de repente à minha cabeça, como “o cachorro morrido” que minha amiga de 7 anos me apontava dentro do rio ou, no nosso barquinho, os cabelos enrolados de uma mulher que morrera afogada. Mas o mais impressionante disso tudo são as “coincidências” que o meu inconsciente traz de volta, me agarrando pelas mãos ou o coração, como os cabelos da morta no lago da Quitandinha. E volto imediatamente para um passado distante, onde sou feliz com uma vida previsível, vivendo os alegres flashbacks pela frente…

*É atriz, atuou em mais de 50 filmes, 15 telenovelas e minisséries, além de peças de teatro. Também é cronista do Jornal do Brasil e autora do livro O Quebra-Cabeças (Imprensa Oficial, 2005), uma compilação de crônicas publicadas pelo jornal.


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