O vale das lenhas amarelas, ou simplesmente “Las Leñas” como é conhecido hoje, sempre foi considerado um lugar especial. No passado, por prover alimento ao fogo dos índios mapuche – a tal lenha amarela, coli mamil na língua local –, que viviam ali, aos pés dos Andes argentinos, no século 19. Hoje, por dispor de 28 opções de pistas e mais de 200 “fora de pista”, como registrado pelo suíço Thomaz Perren no livro Thomas Maps (SS&CC Ediciones, 100 páginas), a esquiadores e snowboarders.
Criado pelo visionário argentino Tito Lowenstein em 1983, o complexo turístico localizado na cidade de Malargüe, na província de Mendoza, atrai amantes da neve, sobretudo brasileiros, não apenas pela grandeza de suas montanhas – batizadas com nomes de deuses da mitologia greco-romana –, mas também por duas razões contraditórias e ao mesmo tempo complementares: a paisagem inóspita (a estação foi erguida no meio de um vale no Norte da Patagônia, a 1.200 km de Buenos Aires e a menos de 1 hora da pacata Malargüe) e seu histórico de elegância. Nos anos 1980 viveu sua época de ouro. Era um local “exclusivo”, frequentado por presidentes, intelectuais e artistas. Seus sofisticados hotéis, que curiosamente recebem nomes de constelações, como Piscis, Aries, Scorpio e Acuario, eram redutos de espetáculos teatrais e festivais de jazz. Las Leñas também já foi palco de charmosos eventos esportivos, como os Jogos Panamericanos de Inverno (1990) e o Campeonato Brasileiro Amador de Ski e Snowboard (1997), que retornou ao local neste ano – foi realizado no dia 2 de agosto.
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Embora Las Leñas apresente reflexos do difícil momento econômico pelo qual passa a Argentina, a estação investe na recuperação de seu glamour. Isso se traduz na aquisição de novos e mais modernos meios de elevação – as cadeiras que levam à pista Minerva, a mais frequentada, com nível de dificuldade intermediário, conta com quatro lugares (as demais têm apenas dois) e uma esteira rolante que coloca o esquiador em sincronia com a velocidade das cadeiras, evitando trancos na hora do embarque. “Esse lift tem capacidade para transportar 2.200 pessoas por hora. Com ele, não há fila”, afirma Pablo Thomas, diretor de marketing de Las Leñas. Desde 2004, a estação também vem investindo em sistemas de segurança contra avalanches. Dispõe de um equipamento que consegue antecipar o fenômeno, quando iminente, para lidar com ele de forma controlada, prevenindo surpresas.
O local é um dos mais procurados do mundo para a prática de esqui “fora de pista” e também um dos poucos que permite essa ousadia, desde que o esquiador esteja acompanhado de um guia de montanha. As 28 pistas de esqui disponíveis atualmente em Las Leñas são resultado de um estudo de mais de cinco anos da movimentação da neve feita por um francês, de uma empresa especializada no ramo, contratada por Tito, que morou no local em um trailer amarrado a uma pedra. Detalhe: a pedra ainda está lá, próxima ao hotel Atenas. Os próprios nomes das pistas sinalizam sua complexidade. Vênus batiza uma amável pista verde (para iniciantes); já Plutão é a única preta (dificuldade extrema) da estação.
“Hoje, fui à pista preta”, orgulha-se o brasileiro Arthur Schahin, 10 anos. Ele esquia desde os 5. Talentoso, também toca piano, joga tênis e futebol. Participou do Campeonato Brasileiro Amador de Ski e Snowboard e ficou em segundo lugar na categoria Pré-Mirim – o campeão foi Juliano Iglesias, de 8. O pai de Arthur, o médico George Schahin, esteve em Las Leñas em 1987, na inauguração do elegante hotel Piscis, e diz que quase nada mudou. Exceto a quantidade de neve. “A piscina externa estava coberta de neve”, conta. Um tradicional temporal, chamado Santa Rosa, que costuma trazer nevasca e abastecer a estação com neve fofa, ainda é esperado para essa temporada, que vai até a primeira semana de outubro. Não esquiador (“Tentei, mas desisti”), George não está preocupado com a previsão do tempo. Frequenta estações de esqui por puro prazer. “Eu adoro o frio e o ambiente de neve. Aproveito para ler jornal, livros, fazer massagem.”
Existe vida além do esqui em Las Leñas. Mais do que relaxar em piscinas aquecidas, jacuzzis e saunas, disponíveis nos hotéis, é possível fazer programas bem peculiares. Um deles é visitar o Poço das Almas, a cerca de 20 minutos da estação. O lago cor de esmeralda localizado dentro de um gigantesco buraco parece ter sido causado por um meteorito – uma das lendas – e impressiona por sua formação incomum. Apesar do mito de que ele não teria fim, comunicando-se com o Oceano Pacífico, alcança “apenas” 17 m de profundidade.
Outra atração é o Hoyo en Uno, o golfe na neve, realizado aos fins de tarde – mais uma brincadeira para entreter os turistas, principalmente argentinos, que adoram o esporte – e a pista de patinação, grande novidade da temporada. O cassino está fechado. Existe um pequeno shopping, o La Pirámide, com algumas poucas lojas de esqui. Definitivamente, Las Leñas não é um templo de consumo.
De frente para os lifts – como se estivessem “de frente para o mar” –, estão os restaurantes Innsbruck, Brasero e UFO point. Todos fervem no after ski, como é chamado o período logo após o fechamento das pistas. Mas quando ainda estão abertas, as melhores opções são encontradas no alto delas: os restaurantes de montanha. O Olimpos é um deles, fica na Minerva. O carro-chefe são os pratos “al disco”, preparados em um disco de ferro sobre brasas. Há cabrito, coelho e até frango. Aos fins de semana, há degustação de vinhos. “Cada semana é de um diferente produtor da Argentina, a maioria daqui da região de Mendoza”, diz Javier Mercato, sommelier da bodega Nieto Senetiner, que trabalhava no local na primeira semana de agosto.
Para acessar os restaurantes de montanha, é preciso usar equipamentos de esqui ou de snowboard. Uma facilidade em Las Leñas é a possibilidade de sair dos hotéis já com esses equipamentos nos pés – serviço conhecido como ski in out. “Isso é incomum na Europa e principalmente nos Estados Unidos, onde normalmente as estações estão dentro de parques nacionais”, afirma Frederico Levy, exímio esquiador e proprietário da operadora de viagens na neve Interpoint.
A Interpoint se uniu à concorrente Snowtime para trazer o Campeonato Brasileiro Amador de Ski e Snowboard de volta a Las Leñas. “O evento é um celeiro que revela novos talentos”, diz Silvio Monti, conselheiro da CBDN (Confederação Brasileira de Desportos na Neve), comentarista de Olimpíadas de Inverno e proprietário da Snowtime. Essa edição contou com cerca de 40 participantes entre 8 e 68 anos e com as modalidades Slalom Gigante (ski alpino e snowboard) e Slopestyle (snowboard). Duas pistas ficaram fechadas exclusivamente para o treino dos brasileiros nos dias que antecederam o evento, que puderam contar com a orientação de treinadores oferecidos pela organização. “O esqui é um esporte que a família pode acompanhar, que todo mundo pratica junto. O amor pela neve contagia”, afirma Mariza Nobre, dona de casa e mãe dos campeões Eliza Nobre, 16, e Francisco Nobre, 14. Bicampeã Brasileira de esqui na categoria juvenil, Eliza já se profissionalizou. “Não acho um esporte perigoso. Perigoso é andar na Marginal Pinheiros, em São Paulo. Esporte só agrega coisas boas”, acredita Gisele Gaspar Alves, administradora e mãe de outros dois campeões, Gustavo Gaspar Alves, 16, e de Lucas Gaspar Alves, 14.
O que não faltam em Las Leñas são adolescentes e crianças sobre esquis. No chamado Jardín de Nieve, “niños” de 3 a 6 anos aprendem o esporte por meio de jogos e brincadeiras. Não é raro se deparar com pequenos em pistas avançadas, dando um show de habilidade. E a cada inverno é mais comum esses grandes esquiadores serem brasileiros. “Queria ver como ela se comportava na neve, e ela adorou”, conta o consultor financeiro Silvano Bernasconi carioca-suíço, Heptacampeão Brasileiro Amador de esqui (nesta edição, ele foi vencedor da concorrida categoria Master B, referente aos nascidos até 1966), e pai de Lara, 4 anos, a “musa” do campeonato. Ela (ainda) não participou, mas já deu seus primeiros e inesquecíveis passos sobre o esqui. Pelo jeito, mais uma brasileira que não conseguirá viver longe do frio.
COMO GANHEI O OURO
Fui convidada para cobrir o Campeonato Brasileiro Amador de Ski e Snowboard, realizado no dia 2 de agosto em Las Leñas, na Argentina, e acabei trazendo não apenas uma reportagem, mas uma medalha! E o mais impressionante: de ouro. Longe de mim ser atleta; sou uma típica jornalista. Mas a história é, no mínimo, curiosa.
Pela quantidade de estações de esqui em que já estive (Aspen, Vail, Heavenly, Bariloche, Valle Nevado, Farellones, El Colorado, Chillán, Chamonix e Big Bear), tanto a trabalho quanto de férias, eu deveria ser uma exímia snowboarder – modalidade que escolhi praticar quando estreei na neve, em 1999. Ando o suficiente para me divertir e diria que sou conservadora: não me arrisco em pistas vermelhas (avançadas). E esse foi o grande empurrão para eu me inscrever no campeonato. Na véspera, ele foi transferido da pista Vulcanito (vermelha) para a Minerva (azul-avermelhada), que eu descia todos os dias. E assim peguei a camisa número 18 para participar da modalidade Slalom Gigante, no dia seguinte.
Slalom Gigante é uma prova contra o tempo em que é preciso contornar cerca de 30 bandeirinhas por fora – o mais importante: não se pode perder nenhuma delas. Uma queda e isso pode ser fatal. Seriam somados os tempos de duas descidas (cada uma tem em torno de 200 m). Além de perder bandeira, outro motivo para desclassificação seria perder a ordem de largada na segunda descida – eram cerca de 40 participantes.
Em uma manhã absolutamente gelada, lá estava eu subindo por meio de uma “poma” (gancho colocado entre as pernas que leva ao cume da montanha) em direção a Minerva. Para chegar a ela, é preciso pegar dois meios de elevação. Esse era o primeiro. Quase ao final, resolvi tirar os óculos escuros que caíram no declive. Um membro do resgate conseguiu recuperá-lo, mas meu querido modelo Calvin Klein não resistiu à queda e partiu ao meio. Resultado: cheguei ao campeonato sem óculos escuros, o que não é recomendável, em geral, para esportes na neve (o branco reflete muito o sol, o que causa danos à retina).
Uma bandeira do Brasil estendida na largada acelera o coração. É um campeonato prestigiado, que acontece nesses moldes desde 2006. “Onde está seu capacete?”, me pergunta um dos organizadores, Frederico Levy. “Não tenho”, respondo. A prova estava prestes a começar. “Mas é uma exigência”, informa. Ele me empresta o dele. Por se tratar de um modelo masculino, fico com “cabeção”. Mas quem se importa? Todos os competidores descem uma vez. “É importante fazer o reconhecimento de pista”, orienta Levy. Prefiro não reconhecer ou, melhor, conhecer o que vem pela frente. Se eu percebesse que era muito difícil, talvez desistisse. Além disso, inspirada em Cesar Cielo, estava economizando energia. Tremia de frio ou de nervoso? Impossível saber. “Ei, você se esqueceu de tirar o casaco”, me lembra o amigo e competidor Arthur Schahin, 10 anos, esquiador de primeira. A camisa que exibe o número do competidor deveria ficar à mostra. Na largada, a equipe da organização ajuda a dar o impulso inicial. Peço: “Despacito, por favor” (Devagar, por favor). Não queria cair de cara. Então, começo minha odisseia. Meu foco era não perder nenhuma “porta” (bandeira). E assim fui descendo como se estivesse sozinha na pista. No meio do trajeto, como de costume, minhas pernas queimaram de cansaço. Tinha consciência de que, ao menos daquela vez, era preciso aguentar. Cruzei a linha de chegada com os braços erguidos. “Aêêe! Muito bem!”, incentivaram os outros snowboarders. Eu já estava satisfeita, mas tinha mais: a segunda descida. Decidi subir ao cume, desta vez, de lift (cadeirinha). Mais lento, porém mais confortável, daria possibilidade para eu me recompor. Lá de cima, ao avistar o campeonato, me dei conta de que o competidor número 13 se preparava para a segunda descida. Eu tinha de correr. Toda velocidade que eu havia poupado até então, apliquei assim que desembarquei do lift. Cheguei à largada justamente na minha vez. Mais uma descida. A pista parecia mais longa, cansei mais cedo. Mas faltava pouco. Cruzei a linha de chegada. Estava acabada. Aquele velho clichê, que ouvimos dos atletas, agora fazia sentido: nosso maior adversário somos nós mesmos. Havia outras mulheres na categoria Masters A (nascidas entre 1980 e 1965), excelentes esquiadoras, mas eu era a única snowboarder. Levei a medalha de ouro e ganhei uma das melhores experiências da minha vida.
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