O que o setor privado tem feito para atender às pessoas da base da pirâmide socioeconômica do País e que ainda não fazem parte da nova classe média brasileira? Não me refiro aqui às doações ou às ações de responsabilidade social, mas a modelos de negócios que oferecem serviços qualificados e acessíveis para 42% da população brasileira, que recebe menos de dois salários mínimos de renda familiar.
Essa pergunta tem implicações claras para o público de menor renda. Afinal, devido às falhas de mercado, essas pessoas precisam criar estratégias informais para acessar serviços e bens de consumo que têm um impacto direto no incremento de renda e na sua qualidade de vida, tais como instrumentos financeiros, energia elétrica, internet, creches para os filhos, consulta médica com especialistas, entre outros.
Nos mais variados temas com os quais trabalhamos, seja em inclusão financeira, tecnologia, moradia, nutrição e empreendedorismo, não podemos deixar de constatar o impressionante processo de mobilidade social que vivenciamos nos últimos anos. A ascensão de aproximadamente 35 milhões de brasileiros que saíram da pobreza e ingressaram no grupo com faixa de renda entre R$ 1 mil e R$ 4 mil teve inúmeros reflexos na sociedade brasileira, permitindo o acesso a certa modernidade de consumo, que inclui moradia e crédito.
Mas é preciso ir além. Precisamos olhar para esse segmento da população não só como consumidores, mas também como cidadãos e parceiros de negócios. Nessa área também existem grandes oportunidades de negócios para as empresas em parceria com o setor público e o terceiro setor.
Afinal, o crescimento no rendimento de trabalho (29,2%) aconteceu de maneira mais expressiva entre pessoas que pertencem aos 10% da população com ganhos mais baixos. Nesse processo, houve uma redução proporcional em relação ao incremento da renda de acordo com a classe social. Em outras palavras, enquanto o topo da pirâmide tem um crescimento europeu, a base tem um crescimento chinês.
Além disso, os jovens da base da pirâmide são formadores de opinião importantes e atuam como porta de entrada para a inovação nos domicílios de menor renda. Batalhadores, começam a trabalhar cedo, estudam em escolas públicas de baixa qualidade e compensam a falta de capital cultural e econômico com esforço pessoal e dupla jornada. Demonstram grande interesse em melhorar seu capital social e humano e têm como prioridade investir em educação (40%). Também fazem parte da lista meios de transporte (20%) e tecnologia (12%), como indica pesquisa realizada pela consultoria Plano CDE.
Esses jovens querem ter acesso à educação e uma parcela deles já investe nisso. Um em cada cinco alunos no Brasil frequenta uma escola privada, um sistema que cobre mais de 50 milhões de estudantes. Jovens com renda familiar entre R$ 1.246 e R$ 2.490 respondem por 26% do total de matrículas (3.052 mil) no sistema privado de ensino. No Ensino Fundamental, existem quatro milhões de estudantes em escolas privadas, sendo que 44% deles têm renda familiar inferior a R$ 2.490.
Inovar para a base da pirâmide significa pensar em escala. Existem hoje no Brasil 75,9 milhões de famílias que vivem com menos de R$ 1.300 de renda familiar (um pouco mais de dois salários mínimos). Entre elas, 28,8 milhões ganham menos de um salário mínimo, segundo dados da PNAD 2011. Atender a esse público requer modelos inovadores capazes de solucionar necessidades estruturais, de reduzir custo sem comprometer qualidade para criar produtos e serviços mais acessíveis.
E por que o setor privado? Por sua habilidade de inovar, de ganhar escala e criar iniciativas autossustentáveis. Existem também algumas iniciativas do setor privado que, além do lucro, têm como meta gerar impacto social positivo, contribuindo efetivamente para inserir largas camadas da população na sua cadeia de valor e melhorar a qualidade de vida dos mais pobres.
Inovar para a base da pirâmide exige rever paradigmas. O mercado da base da pirâmide oferece um espaço promissor para desenvolver modelos de negócios capazes de responder ao não consumo e à falta de acesso a soluções adequadas para pessoas que estão mal servidas. Isso envolve uma inovação disruptiva no modelo de negócios que ajude a criar um novo mercado ou uma nova cadeia de valor. Em geral, essas ideias transformadoras surgem do processo de cocriação, que inclui um diálogo profundo entre detentores do conhecimento técnico (executivos e empreendedores) e aqueles que têm conhecimento de causa (parceiros de negócios e público-alvo). A partir dessa troca, surge a embedded innovation (inovação incorporada), isto é, a inovação feita com a base da pirâmide e não só para a base da pirâmide. Ao incorporar o “olhar de dentro”, esse processo cria novos paradigmas, produz relevância e gera valor compartilhado.
Algumas empresas abraçaram essa oportunidade e incorporaram uma forma de inovar nas suas práticas de negócios. Na Índia, onde 700 milhões de pessoas não podem pagar por serviços de cardiologia e pré-natal, a GE criou uma incubadora de baixo custo (Lullaby) para hospitais que não conseguiam atender ao grande número de bebês prematuros. Também desenvolveu um aparelho de eletrocardiograma portátil, que oferece serviço de diagnóstico mais preciso e barato para os mais pobres. Ao atender esse mercado, a unidade de serviços de saúde da GE não só ajudou a solucionar um problema, como também obteve um crescimento de 20% no último ano, chegando a faturar US$ 300 milhões.
Em serviços financeiros, um caso emblemático é o do M-Pesa, no Quênia e na Tanzânia. Esse sistema de transferência eletrônica de dinheiro entre usuários de celulares permite que instituições de microfinanças ofereçam taxas de empréstimo mais competitivas para o usuário, reduzam o custo de transação e os ajudem a controlar melhor as suas finanças. Hoje, aproximadamente um terço do PIB do Quênia passa por esse sistema.
Vale lembrar também uma iniciativa da rede atacadista Tenda no Brasil que, em parceria com BID/OMJ, investe na formação e capacitação de microempreendedores da base da pirâmide com dificuldade em acessar crédito, para operacionalizar atividades cotidianas e expandir seus negócios. Para isso, irá envolver seis mil desses empreendedores em um programa de capacitação e troca de experiências, gerando valor compartilhado para a empresa e seus clientes.
É latente a demanda por produtos e serviços que atendam às questões estruturais e que melhorem a qualidade de vida da base da pirâmide. O desafio colocado pelo recente processo de mobilidade social requer uma atenção especial para um público ainda pouco conhecido e uma visão ampliada para desenvolver soluções inovadoras alinhadas com a dinâmica social desse segmento da população. As empresas que não seguirem essa tendência perdem a oportunidade de ampliar seus negócios e de ajudar a mudar a vida de milhões de pessoas que fazem parte deste novo Brasil.
*Luciana Aguiar é sócia-diretora da consultoria Plano CDE
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