Intimidades de um compositor de real grandeza

O cantor e compositor Jards Macalé em registro do início dos anos 1970. Foto: Arquivo pessoal
O cantor e compositor Jards Macalé, em registro do início dos anos 1970. Foto: Arquivo pessoal

“Macalé tem 28 anos, e não é baiano como pensam: é carioca da Tijuca. O mulato magro, os óculos redondos, a barba encaracolada, a voz rouca, que quase nunca aparecem, não ocupam espaço. Para o público, Macalé continua sendo a imagem surgida há alguns anos, num festival de música popular: um músico exótico. A convicção ou a displicência de Macalé contribuem para manter essa imagem. Agora, quem assistiu às apresentações de Caetano viu em Macalé um músico extraordinário, maduro. Para quem tinha dele só a imagem antiga, Macalé se tornou irreconhecível, pela simplicidade e pela sobriedade de sua presença, do seu jeito de operário, de mestre-de-obra.”

No parágrafo acima, o repórter Wilson Moheardui assim descreve, com o auxílio de um belo retrato do fotógrafo Roy Bringhton, um encontro jornalístico com Jards Macalé, realizado em fevereiro de 1972, meses antes da conclusão do clássico Transa, de Caetano Veloso, também dirigido pelo músico tijucano. Intitulado Não, Absolutamente Não! Macalé, Aquele Louco? (em alusão à resposta do dono de uma loja de discos ao receber de um vendedor da gravadora RGE a oferta do compacto duplo Só Morto/Burning Night, de 1970), o texto foi publicado na revista mensal O Bondinho, suplemento cultural distribuído pela rede Pão de Açúcar de supermercados a seus clientes. Aparente contrassenso, o veículo foi um dos meios de resistência da imprensa alternativa e da contracultura brasileira naqueles dias de AI-5, de gestão assombrosa do general Médici, então presidente do País, e de censura onipresente. O excerto do repórter dá a tônica da complexidade desse personagem ímpar de nossa música popular, abordado nesta reportagem por conta de uma boa nova.

É desse período histórico, quando o compositor trafegava entre rótulos antagônicos como “mestre-de-obra” e “displicente”, “operário e maldito”, “exótico e imprescindível”, que acaba de vir à tona uma série de registros inéditos, até então mantidos em sigilo por mero perfeccionismo de Macalé. Intitulada Jards Macalé Anos 70, a revelação chega em formato de caixa com quatro CDs, por meio de esforços de um personagem reincidente quando o assunto é a preservação da história da música brasileira da segunda metade do século XX: o produtor carioca Marcelo Fróes, criador do selo Discobertas, que, antes, deixou na praça outra caixa reveladora de Macao, Direitos Humanos no Banque dos Mendigos, com a íntegra do espetáculo colaborativo idealizado pelo compositor em celebração aos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos dos Humanos, em 1974, encontro que culminou no LP duplo O Banquete dos Mendigos, com a participação de, entre outros, Raul Seixas, Gal Costa, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Edu Lobo e Dominguinhos.

Por telefone, de seu apartamento no Jardim Botânico, Macalé explica o contexto das gravações e porque as manteve por tanto tempo no anonimato. “Era a época da fita K-7, e a gente ficava registrando essas coisas, para que elas não caíssem no esquecimento, mas também para desenvolver exercícios de melodias, harmonias e letras. O que havia nessas fitas, para mim, eram apenas cacos. Algumas coisas foram aproveitadas depois e outras ficaram nas gavetas da memória. A vida seguiu e o Marcelo, de repente, cobiçou esse material. Isso aconteceu quando ele veio pegar as sobras para a caixa de inéditas d’O Banquete dos Mendigos. Quando mostrei essas gravações em K-7 e fitas de rolo de dois canais, os olhos dele brilharam. Como sempre fui muito rigoroso com esse negócio de gravação, sempre fui perfeccionista, considerava esse material apenas esboços gravados ao léu, tanto que tem coisas feitas em casa que, ao fundo, você ouve passarinhos, ouve crianças falando. Achei que isso não renderia um trabalho, mas Marcelo insistiu muito e disse a ele: ‘Ok, confio em você. Pegue aí o que achar que vale ser mostrado e faça o que quiser’. Conheço o trabalho dele há muito tempo e deixei que ele digitalizasse todo o material para, juntos, escolhermos o repertório final”.

Composta de quatro CDs, a caixa também traz reedições dos dois primeiros álbuns do compositor, Jards Macalé (1972) e Aprender a Nadar (1974), acrescidas de gravações inéditas ao vivo e demo de seis canções (Movimento dos Barcos, Rua Real Grandeza, Anjo Exterminado, Boneca Semiótica, Senhor dos Sábados e Dona do Castelo). Além das versões alternativas desses temas dos dois primeiros discos, o grande mote da caixa são os outros dois CDs, com 24 composições, 14 delas inéditas e outras dez regravadas no LP Let’s Play That (1983), ao lado de Naná Vasconcelos, e nos CDs O Q Faço é Música (1994) e Macao (2008).

Entre as inéditas, há uma série de preciosidades escritas apenas por Macalé e outras a quatro mãos. Agora, Fogo na Palha, Simplesmente, Quero Viver Sem Grilo, Kohoutec e Obstáculos levam assinatura exclusiva do compositor. Noites Alegres, Sem Assunto e Raparigas ampliam o feliz encontro do violão de Macao com os versos do poeta baiano José Carlos Capinam, parceria iniciada com duas joias do álbum de 1972, 78 Rotações e Movimento dos Barcos. Gravada por Jorge Mautner em um compacto hoje raro, lançado em 1973 pelo cantor e violinista, Planeta dos Macacos surge em versão divertida. Com Fausto Nilo, um dos expoentes da geração que modernizou a cena musical do Ceará nos anos 1970, Mulheres no Retrato cativa pela beleza dos versos e da harmonia. Outra faceta de Macalé é ampliada na caixa: o gosto por musicar poemas e textos de seus autores prediletos, caso de Luz (Ezra Pound), Transformar o Mundo (Bertolt Brecht) e Pasar La Vida (Gregório de Matos).

“Durante a leitura, esses textos chamavam minha atenção não só pela beleza da escrita, mas também pela melodia natural que havia nesses poemas. Foi isso que me levou ao desejo de musicá-los”, explica. Gravada por Clara Nunes, em 1977, por Macalé, em 1998, e por Maria Bethânia, em 2005, O Mais Que Perfeito foi escrita em “parceria” com Vinicius de Moraes, sem aviso prévio ao Poetinha, que, a despeito do segredo, amou a surpresa. “A Suzana de Moraes, filha dele e grande amiga, me mostrou esse poema e decidi musicar. Quando mostrei o resultado Vinicius adorou e passou a chamar a composição de ‘nossa cantiguinha’. Em vários encontros que depois tivemos com outros amigos ele sempre pedia ‘Macaozinho, cante aquela nossa cantiguinha’”, recorda.

Questionado se pretende rearranjar as canções inéditas para apresenta-las no palco, o compositor se mostra hesitante. “Talvez eu possa reconsiderar, mas acho que gastei todas as balas de meus trabalhos dos anos 1970”. No entanto, fala com entusiasmo maior de outro projeto. “Tem esse pessoal jovem que fez um show com novos arranjos para o meu álbum de 1972 e quero retribuir a generosidade gravando músicas deles. Gente como Kiko Dinucci, Alice Caymmi, Ava Rocha, Romulo Fróes e o Metá Metá. Essa moçada tem mandado um bom recado. E o mais incrível é que tudo o que eles fazem não está na coisa mercadológica, mesmo assim é grande a ebulição provocada por eles. Tenho agora de deixar de ser preguiçoso e trabalhar nesse projeto”, conclui sorrindo.

CONTEÚDO!Brasileiros 
– Leia O Brilhantismo Descontente de Jards Macalé, resenha do álbum homônimo de 1972
– Leia a reportagem Diários de Macalé, um relato dos bastidores do espetáculo Sinfonia de Jards


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