Intolerância, aquele abraço!

Política, dizem, é a arte do possível – e é também, claramente, um teatro de aparências. Assim como o jornalismo, ela tem fome de imagens e foi a convergência dos dois, do jornalismo com a política, que produziu, num cenário de morte, um fascinante flagrante de vida. O flashback de uma amizade de décadas que a miudeza da política não consegue escamotear.

O abraço de Lula e Fernando Henrique, diante do caixão de Ruth Cardoso, exprimiu um afeto autêntico, embargado, o intercâmbio de emoções sinceras entre duas criaturas que já foram aliadas e hoje são, de fato, adversárias. Um abraço que remonta às jornadas pela redemocratização, os anos 70, a anistia, as greves no ABC, a primeira campanha de Fernando Henrique para o Senado, em 1978, a frustração das diretas já.
[nggallery id=15730]

Desta vez, ali estavam o presidente da República e o ex. Afetos privados, mas figuras públicas. Não era, portanto, um mero abraço. É sintomático que quem estivesse por assim dizer presidindo o encontro, com sua dignidade agora silenciosa, fosse Ruth Cardoso. Antropóloga, ela compreendia mais do que os demais mortais o sentido social das representações simbólicas. Haveria de saber: numa época que espetaculariza tudo, até o banal, e principalmente o vulgar, ainda existem gestos que se revestem de um manto de decência pessoal e de grandeza democrática.

Aquela surrada frase brechtiana de Galileu Galilei: “Pobre o país que precisa de heróis”. Sem heróis, pobre em mitos, que o Brasil tenha ao menos o direito a ícones. Aquele abraço é um ícone, uma imagem altamente pedagógica, ainda que cada brasileiro vá aprender ali apenas o que ele bem quiser. Será, enfim, a chance de uma concertación à espanhola? PT e PSDB se entendendo, dois pilares para o avanço institucional? Pode ser que daqui a algumas semanas o abraço de Lula e FHC não passe de um retrato na parede. Mas não vai doer. Sua força emocional, sua condição alegórica, é para sempre.

A verdade é que a política, no Brasil, não está bem na foto. Qual é a imagem, ao pé da letra, que ela nos passa, no dia a dia dos cotidianos ansiosos e dos telejornais trepidantes? A cara da política é Brasília, o picadeiro barulhento das CPIs, o tosco exibicionismo dos palanques, a inapetência de se pensar o Brasil com uma altivez cidadã que vá além das recompensas midiáticas do Jornal Nacional.

O jornalismo de massa açula os arruaceiros dos plenários, dá voz à patética bancada legislativa do botox e patrocina, nos hooligans de plantão, a ânsia do linchamento de inocentes. O saudável direito à atitude investigativa virou impenitente caça às bruxas, o prazer viscoso do escândalo pelo escândalo.

Não existem partidos, há torcidas – e esse espírito de arquibancada, convidativo à imprensa, com suas artérias de adrenalina, acabou por contagiar até mesmo aquele outro poder, que tinha, por natureza, de estar acima das paixões transitórias e muito além dos fogos de artifício. O Judiciário já não se interessa, como prioridade, em promover justiça; adora é fazer um showzinho. A começar pela mais alta das Cortes.

O Congresso é uma vitrine óbvia, o mais aberto dos poderes. Colhe os frutos e paga o preço. Mas que os meritíssimos do Supremo Tribunal Federal tenham se tornado, eles também, candidatos ao star system, a bordo daquela cenografia narcisista de suas togas esvoaçantes, já é confundir transparência com saliência. Ligam-se os spots, lá se vai todo e qualquer decoro. Juiz do Supremo em capa de revista, celebridade solúvel como a estrela da novela e o animador de auditórios – eis aí a Justiça à brasileira.

A propósito do espírito de arquibancada: o futebol ainda é tabu para os bem-pensantes, desdenhado em guetos de gente metida à besta, mas é interessante notar – com todo o respeito – que ele é igualmente capaz de instaurar símbolos. Na mesma semana daquele abraço, espanou-se a poeira de uma fotografia de 50 anos atrás, cujo vigor emblemático resistiu ao ataque fatal, esmaecido, do tempo e do sépia: Bellini levantando a taça, na Suécia, em 1958. Brasil, afinal campeão do mundo.

O capitão, em sua fotogenia de ator de Hollywood, estátua olímpica e silenciosa, como que facultava o grito calado desde muito tempo em nossa garganta de, como dizia Nelson Rodrigues, nação vira-latas. Aquela, a da Suécia, é a melhor imagem de nossa independência.

Não adianta insistir na cena, bastante edulcorada pelos pincéis de Pedro Américo, do príncipe lusitano que, em surto edípico, desembainha a espada e, às margens do Ipiranga, rompe com o reino paterno de Portugal. A simplicidade majestosa do gesto de Bellini, 136 anos depois do Grito, essa sim, resgatou o Brasil da humilhação de nação periférica e, impregnada de emoção, mostrou que, quando quer, a gente pode fazer boa figura.

Imagens falam por si, são auto-explicativas em sua atração imediata e seu potencial simbólico. É justo reconhecer que, antes daquele abraço, a própria política já foi capaz de produzi-las. Encanta, por exemplo, revisitar o retrato da posse de Jânio Quadros, em 1961. Entram na foto aquela Brasília que ainda parecia cidade cenográfica de filme de faroeste, o parlatório do Palácio do Planalto, o presidente estreante e o presidente que partia.

Você olha a foto e já nota em Jânio o inequívoco esgar de bufão, o visível pendor para o tragicômico; assim como percebe em Juscelino Kubitschek a nobreza ereta de um apóstolo da tolerância. Há um raro fato político ali, na verdade uma exceção histórica: no Brasil, um presidente passando a faixa para outro, dentro da legalidade democrática. Mas o que seduz na imagem é o patrimônio imaterial – mais do que a faixa presidencial – que JK passou a Jânio.

Juscelino foi massacrado, antes, durante e depois da Presidência. Jânio, em especial, o vilipendiou. Mas JK não ficou lá remoendo rancores. Passou o cargo para o desastrado desafeto. Enfrentou levantes militares e anistiou os revoltosos. Foi caluniado, mas a violência alheia não o paralisou. Fez o que achou que tinha de ser feito. Ousou Brasília, investiu no futuro.

Assim como JK criou uma imagem, a política é capaz de gerar a não-imagem. Em 1985, o general Figueiredo saiu pela porta dos fundos do Palácio do Planalto para não dar posse a José Sarney, o provisório que virou permanente. Da mesma forma como chegou, saiu pela porta dos fundos da História, junto com Figueiredo, a ditadura militar. Figueiredo ainda tentou se justificar, tempos depois, numa ladainha que resmungava contra Sarney queixas de traição e pretextava que Tancredo Neves, sim, era o titular, e Sarney, um mero tapa-buraco. Não houve foto, ficou, para a memória do regime fardado, apenas o vexame. Mais um.

Ruth Cardoso exerceu aquele mesmo senso de tolerância que, como em Juscelino, não prescindia de princípios. Tolerância não é complacência. De certo modo, Ruth parecia até encarnar, em meio aos políticos, a não-política. Suas fotografias, solenes ou informais, revelam que ela, em seu recato irrestrito, jamais cedeu à tentação fácil da ostentação. Rigorosa, sim, em seu modelo de militância, nunca freqüentou, porém, as arquibancadas descabeladas das facções.

Se o abraço de Lula e FHC, à frente de figura agora eternizada de Ruth Cardoso, representou a homenagem que todos os brasileiros deviam a ela, é bem provável que a própria Ruth, em sua modéstia proverbial, preferisse conferir ao gesto nobre, comovido, uma leitura menos pessoal. Supor que, mesmo no Brasil, a vida social pode se pautar pela compostura. Aquela suave, civilizada compostura que ela, Ruth, deixou registrada em cada um de seus retratos.


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.