Invasão estrangeira

O idioma português nunca teve tanta concorrência no Brasil como na temporada desta Copa do Mundo. São Paulo, por exemplo, tornou-se uma Torre de Babel nos dias que antecederam a partida inaugural, entre Brasil e Croácia, na Arena Corinthians, em Itaquera, porque os estrangeiros que chegavam à cidade corriam para fotografar o estádio ou mesmo interagir com a multidão que se formava nos arredores. A Companhia de Engenharia de Tráfego precisou fechar as principais ruas da Vila Madalena, bairro boêmio da Zona Oeste, porque não havia espaço para os variados torcedores que lotaram as calçadas. “Nunca vi tanto gringo aqui”, disse a estudante Luna Baban, em um dos fins de semana do torneio. O Rio de Janeiro, por sua vez, viveu um carnaval fora de época depois de 12 de junho, e a Praia de Copacabana, na Zona Sul, virou ponto de encontro oficial dos estrangeiros que assistiram às partidas de suas Seleções no Maracanã.

Em capitais como Manaus, Cuiabá e Porto Alegre, a movimentação também foi grande: as cidades registraram o maior número de turistas internacionais de suas histórias no mês passado.

Antes da Copa, o Ministério do Turismo projetava 600 mil visitantes do exterior durante o evento, mas a expectativa foi superada. O Rio foi o destino preferido dos gringos: 423 mil deles estiveram na cidade, contra 258 mil que foram para São Paulo e 207 mil que viajaram à Brasília. Os hotéis reservaram 340 mil leitos pelo País até o dia 12 de junho, um acréscimo de cem mil diárias a mais do que o setor tem normalmente, segundo o Fórum de Operadores Hoteleiros do Brasil (FOHB). Recife, Cuiabá e Rio foram as três cidades com maior procura de hospedagem durante o Mundial.

A FIFA, organizadora do torneio, também conta seus recordes com o Brasil. A entidade recebeu o maior número de solicitações de ingressos para partidas de um Mundial de sua história, com aproximadamente oito milhões de pedidos e quase três milhões de bilhetes vendidos. Os norte-americanos foram os estrangeiros que mais compraram entradas: cerca de 200 mil, seguido de argentinos, com 61 mil, e alemães e ingleses, com 58 mil. Entre os turistas, no entanto, 70% eram de latino-americanos ansiosos pelo retorno de uma Copa para este lado do mundo (a última aconteceu há 28 anos, em 1986, no México), e até agora os jornais de Buenos Aires repercutem o fato de o Maracanã ter registrado – na estreia da Seleção Argentina contra a Bósnia, no dia 15 último – mais pessoas que a final do Mundial de 1978, disputado na Argentina e vencido pelo time azul e branco: 71.483 espectadores.

Com esses números, ficou difícil ouvir só português por todos os cantos do País. Além dos estádios, eles ocuparam as ruas, os bares, as praias, os pontos turísticos e até os supermercados. No dia do jogo inaugural da Copa, um grupo de jovens croatas enchia um carrinho de guloseimas e bebidas em um supermercado paulistano. Na fila para pagar a compra, brasileiros e croatas se preparavam com simpatia para o duelo que aconteceria horas mais tarde. Tudo na tranquilidade. A seguir, a vibração e a animação dos torcedores estrangeiros por capitais brasileiras que sediam o maior torneio de futebol do mundo.

SÃO PAULO

José Ignácio Olarte (esq), Rolando Aguilar (centro) e Ricardo Sánchez (dir)
Olarte, Aguilar e Sanchéz felizes na entrada do Itaquerão
Olarte, Sanchéz e Aguilar voaram duas horas de Bogotá, capital colombiana, até Letícia, na fronteira com o Brasil, de onde passaram para o lado de cá via Tabatinga, no Amazonas. Lá, fizeram amizade com um barqueiro e viajaram até Manaus de graça. “De noite, fazia muito frio, mas tudo bem. Queríamos ver nossa Seleção”, diz Sanchéz. De Manaus, pegaram outra embarcação e gastaram mais cinco dias para chegar a Porto Velho, em Rondônia. Sem dinheiro para chegar a São Paulo, começaram a limpar para-brisas dos carros nos faróis da cidade. A estratégia deu certo: arrecadaram R$ 1.500, usados em três passagens de ônibus. Foram 6.634 km e 17 dias de viagem. Cansados? “Ainda temos a Copa inteira para aproveitar”, disse Aguilar, em frente ao Itaquerão, na Zona Leste.

Na Zona Oeste, no final da Rua Lisboa, ladeira acima, foi possível encontrar duas nações reunidas. À direita os alemães, com os olhos voltados para o telão instalado no Instituto Goethe. À esquerda, o cheiro de empanadas e um convite colombiano. Era dia de partida nervosa entre Alemanha e Gana. Thomas Bauer, 49, torcia pela Seleção de seu país. Vive há 15 anos no Brasil, mas não nega: “Eu me sinto bem aqui, o povo é acolhedor, mas preciso ir sempre para minha terra. É a coisa da raiz”. Fim de jogo, 2 a 2. Os goles na cerveja gelada aliviava o desconforto do empate no público – 200 pessoas, entre brasileiros, alemães e jornalistas que registravam as reações. Do outro lado da rua, Magdalena Torres, 38, comanda o bar colombiano. Ela e seus familiares estão no Brasil há 15 anos. As semelhanças e diferenças entre as culturas dos países foram os motivos de abrir, há um ano e meio, o ponto. “De boca em boca, conquistamos clientes fiéis e agora estamos ampliando os negócios.” Pudera. Aquelas arepas recheadas com queijo coalho ou os chips de banana da terra para comer com guacamole… Difícil resistir. É a Copa das Copas.

RIO DE JANEIRO

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Torcedores em um bar da cidade
Praias vazias, calçadão também. O que aconteceu com o Rio? A Copa aconteceu! Durante o torneio, a Cidade Maravilhosa virou mais um QG dos gringos. Das 64 partidas, sete aconteceram no gramado do Maracanã. Mas o Rio não hospedou só turistas estrangeiros, cariocas e brasileiros de outros Estados passaram por lá. Segundo o Ministério do Turismo, a cidade recebeu mais de 400 mil estrangeiros e quase 1 milhão de brasileiros. Nessa circunstância, faltaram ingressos e, nessa hora, qualquer bar se transforma em estádio. Nas calçadas, vale torcer e provocar, os preços são melhores que os oficiais e o clima é descontraído. O chileno Pedro Gonzalez, 22 anos, escolheu um bar no Baixo Gávea para assistir ao jogo entre Chile e Espanha – 2 a 0 para o Chile. “Sou apaixonado por futebol e não consegui ingresso. Mesmo assim, vim para cá porque, para mim, o Rio é a cidade que mais respira o torneio.” Em companhia de amigos, o grupo, enquanto torcia, interagia com americanos. E nessa festa da Copa no Brasil, teve até quem não gosta de futebol. O carioca Cauê Adão nunca foi ao Maracanã e não costuma assistir aos jogos pela TV, apesar de se dizer flamenguista. No entanto, tem se reunido com os amigos nos bares da cidade para curtir o “clima” do Mundial. “Aqui é mesmo a cidade maravilhosa.

FORTALEZA

4Torcedores estrangeiros, Fortaleza©José Leomar
Na falta de transporte público, torcedores optam por bicicletas coletivas para chegar ao Castelão

Quase um ano depois, a Seleção Brasileira voltou à capital cearense para repetir o duelo com a Seleção Mexicana na Arena Castelão. O primeiro encontro entre as Seleções aconteceu no ano passado, durante a Copa das Confederações, com vitória brasileira (2 a 0). Mas naquela terça-feira quente, 17 de junho último, o resultado foi outro: 0 a 0. O resultado, no entanto, não desanimou as torcidas. Um dia antes do jogo, um transatlântico atracou em Fortaleza com 3.600 mexicanos e, de acordo com a Secretaria do Turismo do Ceará, outros 12 mil estariam chegando à cidade em voos fretados, domésticos ou ônibus interestaduais, gerando um fluxo de mais de 15 mil pessoas. A administradora mexicana Francisca Cervin estava lá, ansiosa pela partida. “Estou gostando do Brasil, das pessoas, mas eu esperava uma organização melhor. Foi complicado chegar ao estádio. Está faltando transporte”, reclamou. O marido Emiliano concordou: “Este é um país que gosta muito de futebol, mas a organização está ruim. Apesar disso, está valendo a pena, a população é acolhedora”. Para driblar o calor e a eventual falta de transporte, muitos turistas optaram pelas bicicletas coletivas. Bom preço e diversão garantida. O empresário Orlando Tornato, também mexicano, parecia não estar nem aí para essas questões. “O Brasil me encanta, estou agradecido por estar aqui.” Também estava otimista: “Vai dar 3 a 0 para o México”.

CURITIBA

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Merchán, Morejón e Lugo planejaram a viagem há meses; Os irmãos Ben e Kyle Sutherland e Robert Dowling

Os turistas tinham na ponta os lugares a visitar antes ou depois dos jogos, e os parques foram a grande sensação. A família de Ariel Santos, 45, de Honduras, alugou uma van para transportar os mais de dez integrantes do grupo pelos pontos turísticos da capital do Paraná. “Esse é um verde que nos impressiona. São jardins muito bem cuidados, em que se pode passear com tranquilidade”, disse ele, a caminho da Arena da Baixada com a família toda. Os parques também entraram no roteiro dos amigos Angelo Merchán, Jhonny Morejón e Sebastián Lugo, todos com 30 anos, vindos do Equador. “Curitiba é uma cidade muito bonita”, avalia Angelo, depois de visitar o Jardim Botânico e sua icônica estufa, um dos maiores cartões-postais da cidade. O grupo planejou a viagem para o Brasil seis meses atrás, depois do sorteio dos grupos da Copa. Chegaram a pensar em dar um pulo em Florianópolis, mas a temperatura diminuiu e os termômetros chegaram a marcar 10o. “Pena que está frio. Ia ser bom conhecer uma praia brasileira.” Preferiram apostar na vida noturna da cidade, por indicação de funcionários do hostel em que ficaram hospedados, e não se arrependeram. Já os irmãos canadenses Ben e Kyle Sutherland não sentiram frio. “Não conhecíamos nada do Brasil e vamos ficar só por aqui”, diz Ben. No hostel, eles ficaram amigos do compatriota Robert Dowling, que aproveitou para conhecer também as Cataratas do Iguaçu. “Foi fantástico.”

SALVADOR

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O inglês Jonathan Lord em confraternização com brasileiros em frente à Arena Fonte Nova; O chinês Adam Southpay Chow queria saber se o clima da Copa é parecido com o do carnaval

O esquema tático da suíça Beatrice Bruxelle era simples: à falta de cardápios bilíngues, ela ficava de olhos nas mesas vizinhas. Ficou curiosa com os bolinhos de charque, mais ainda ao saber que o recheio podia ser de bacalhau, camarão, queijo e calabresa… Como dizer calabresa em inglês mesmo? “O povo é amável.” Beatrice e a família estavam pela primeira vez no Brasil, vieram para prestigiar a Seleção da Suíça, que jogou contra a França na primeira fase – 5 a 2 para os franceses. Mas não foram só os suíços que chegaram à cidade. Teve festa de todas as cores. O chinês Southpay Chow trocou sua passagem do Rio e baixou em Salvador. “É como carnaval?”, perguntou ele, apontando para um Pelourinho lotado. Sim, é meio como carnaval… E também como São João. Mas isso definitivamente não vai dar para explicar. “Estou impressionado com o acolhimento e o ambiente”, afirmou o inglês Jonathan Lord Adam, que teve aulas de português para ficar cinco semanas em Salvador. O motivo? “Animação e um calor que só se sente aqui.”

PORTO ALEGRE

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Na capital gaúcha, torcedores argentinos festejam o resultado contra a Seleção da Nigéria: 3 a 2 para os hermanos

Apesar de ser a capital brasileira mais próxima de Buenos Aires, Porto Alegre precisou se preparar para receber visitantes do país vizinho, especialmente na última semana de junho, quando a Argentina venceu a Nigéria por 3 a 2, no Estádio Beira-Rio, na primeira fase. Nos dias que antecederam a partida, a Prefeitura mudou direções de ruas, alterou linhas de ônibus e avisou a população para esperar uma “invasão” de argentinos. Teve quem se preparou para recepcioná-los na própria casa, como o aposentado Jesus A. de Souza, que abrigou três rapazes de Pilar. “Aqui em casa nós gostamos dos latino-americanos. Coleciono música argentina e uruguaia e simpatizo com a cultura deles”, disse. A imprensa local chegou a divulgar que cerca de 200 mil hermanos entrariam no Rio Grande do Sul e se encontrariam em Porto Alegre no último dia 25, no confronto com a Nigéria. Mas, de acordo com a Polícia Federal, 36.820 argentinos viajaram para a cidade durante toda a semana do jogo. A FIFA vendeu ingressos antecipados para aproximadamente 18 mil turistas argentinos e quem não conseguiu bilhetes acompanhou a partida na Fan Fest, no Anfiteatro Pôr-do-Sol, próximo do estádio, ou pelo telão que a Prefeitura instalou ao lado do evento oficial para não saturar o local. “Os argentinos deixaram muito do clima de adoração pela Seleção. Não tinha como não se contagiar com a animação e felicidade deles”, disse a estudante Bianca Molina.

BRASÍLIA

Biólogo e policial suíços.
O biólogo Giorgio Leoni e o policial Alberto Salamina em total clima de confraternização, em Brasília

A invasão multicolorida e racial também tomou conta de Brasília antes, durante e depois da partida entre Suíça e Equador (2 a 1 para os suíços). “Gostamos de futebol e adoramos viajar. Juntar as duas coisas é perfeito”, diz a suíça Ivina, que estava na cidade com três amigos, todos de Genebra. Mas quem chamava mesmo a atenção do lado de fora do Mané Garrincha era uma dupla vestida de macacões vermelhos com dezenas de cruzes brancas. Para completar o traje, bandeiras brasileiras na barra. “Você gostou? Eu e o Alberto bolamos essa roupa e, pelas reações, acertamos”, disse o biólogo Giorgio Leoni. Ele e Alberto Salamina, policial, já tinham planos para o futuro. “Daqui vamos para Salvador e, depois, Manaus, que deve ser o ponto alto da viagem para mim.” Do lado adversário, estavam os equatorianos Jorge Bonnard, que veio de Quito em um charter direto para Brasília, e Diego Tobar, 25, que pegou a estrada em dois SUVs com cinco amigos. Eles andaram nove mil km até Brasília. “Aproveitamos para visitar muitas cidades no caminho.” Outro equatoriano feliz era Gerardo Andrade, 56. Nascido na pequena cidade de Bahia de Carequez, no litoral, ele mora há mais de 20 anos em Porto Rico. Foi de lá que ele e o filho Carlos, 18 anos, saíram de avião. “Vim para dar uma força a meu pai, que queria estar neste Mundial.”


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