O pianista Marcelo Bratke viu um novo mundo se revelar para ele aos 44 anos, quando foi submetido a uma cirurgia, em Boston, nos Estados Unidos. O procedimento devolveu-lhe a visão, então reduzida a 2% no olho direito e 8% no esquerdo, em decorrência de uma rara doença congênita. Bratke surpreendeu a todos quando fez o anúncio da boa nova, em 2006. Ninguém desconfiava que um dos maiores pianistas do País era praticamente cego. Das boas experiências decorrentes de enxergar plenamente, a possibilidade de, enfim, descobrir o próprio rosto e ter reveladas as feições da artista plástica Mariannita Luzzati, sua companheira há mais de 20 anos, foram insuperáveis para ele. E foi ao lado de Mariannita que o pianista atravessou o ano de 2012 propondo a contemplação da música e da natureza com o Cinemúsica.
Idealizado por Mariannita, o projeto levou a dez penitenciárias masculinas e femininas, do Estado de São Paulo, peças eruditas e populares de Heitor Villa-Lobos, Ernesto Nazareth e Tom Jobim, fundidas a uma série de imagens da exuberante natureza do Brasil, captadas, editadas e dirigidas por Mariannita. “Com esse projeto, eu pretendia abrir uma janela aos detentos. Os filmes que exibimos não tinham nada de urbano e eu queria levá-los a um estado de meditação por meio da música e da natureza”, explica Mariannita. Já na primeira apresentação, na Penitenciária Feminina do Butantã, na capital paulista, a recepção calorosa e emotiva das detentas surpreendeu o casal: “Quando surgiu a primeira cena de mar, eu ouvi suspiros e teve início um choro coletivo, pois muitas delas não viam o mar havia muito tempo. Uma reação que nunca aconteceu em concertos meus”, avalia Bratke.
O Cinemúsica foi levado a penitenciárias nas quais detentos que cometeram crimes considerados leves, como furto e estelionato, cumprem pena, mas também aconteceram em unidades de segurança máxima como o Tremembé II, na cidade do Vale do Paraíba de mesmo nome, onde Bratke, cumprindo o ritual de convidar para o bis presos que tiveram alguma experiência musical, dividiu palco com Cristian Cravinhos, irmão de Daniel e coautor do homicídio do casal Manfred e Marísia Von Richthofen, em 2002, que também resultou na condenação da filha do casal, Suzane. “O Cristian tocou Tchaikovsky ao piano. Depois, executei um tema do Ernesto Nazareth e ele tocou pandeiro comigo. Na penitenciária de Bauru, sediada em uma extinta universidade agrícola, o anfiteatro que comporta 500 pessoas estava lotado e foi tomado pelos detentos entoando cantigas de ninar do Villa-Lobos”, recorda Bratke.
Sem fazer julgamento, o casal dispensou o mesmo tratamento a homens e mulheres. Postura decisiva para atrair a curiosidade dos detentos. “Aos poucos, criávamos uma relação de confiança. Muitas apresentações iniciavam com a metade dos lugares ocupados, mas, à medida que tudo ia acontecendo, você percebia que eles, encantados com o que viam, saíam às pressas para chamar os outros presos”, recorda Mariannita.
Logo após encerrar a maratona do Cinemúsica, Bratke apresentou o concerto From New York to Rio, em um dos templos mundiais da música erudita, o Queen Elizabeth Hall, em Londres. Espontaneamente, repetiu maneirismos que adquiriu em contato com os detentos: “Comecei a conversar com a plateia como se estivesse falando com os presos. O público interagiu e foi um dos concertos de maior sucesso que tive em Londres.”
O Cinemúsica ganhou registro documental e acabou se desdobrando em outros dois projetos, o Tom Jobim Plural, dedicado ao maestro carioca, e o Semana de Arte Moderna de 22, que celebra a obra de Heitor Villa-Lobos Em novembro, alternando os dois concertos multimídia, Bratke e Mariannita se apresentarão, no dia 18, em Belo Horizonte, no Sesc Palladium, e em Brasília, no Teatro Nacional, no dia 20. Em São Paulo, o Cinemúsica será apresentado em diversos teatros da rede FIESP-SESI. Na capital, a apresentação será em 13 de novembro. Nos dia 28, 29 e 30, a experiência será levada, no interior paulista, para Franca, Birigui e Ribeirão Preto, respectivamente. “Parte do público se cansou do formato enciclopédico dos concertos, tenho apostado em novas formas e o Cinemúsica tem sido uma experiência incrível. O encontro de imagens com som provoca reações sensoriais e sensibiliza a plateia.” Em 2013, Bratke deve abrir novas janelas para transformar o mundo a sua volta, que há tão pouco tempo passou a enxergar.
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