“Jihad Civil” e Oriente Médio em tempos de transformação

Desde dezembro de 2010, o Oriente Médio vive uma fase de agitação política. Tunísia, Egito e Líbia levam adiante o processo de substituição dos autocratas que ali governaram por décadas. Na Síria, o que havia começado como um movimento pacífico de demandas políticas e sociais se converte em guerra civil sangrenta com capacidade de desestabilizar vários dos Estados vizinhos. Marrocos, Jordânia e Bahrein tiveram suas manifestações abortadas.

Se a imprensa local censurada não dava mostras de que as revoltas eram iminentes, a música, o cinema e a literatura da região davam boas pistas da crescente insatisfação. Na Tunísia, o rap de El General tratava do sofrimento do povo, das “pessoas morrendo de fome que querem trabalhar para sobreviver, mas cujas vozes não são ouvidas”, e da “roubalheira direta que dominava o país”. No Egito, o livro depois transformado em filme, O Edifício Yacoubian, de Alaa Al Aswany, apresentava as diversas peças das insatisfações da população: repressão policial, dificuldades econômicas, constrangimento sexual e corrupção, entre outras questões. No livro No País dos Homens, de Hisham Matar, a história do menino Suleiman expunha a crueldade da Líbia de Muammar Kadafi. Desaparecimentos inexplicáveis de pessoas e execuções televisionadas faziam com que parte expressiva da população vivesse “uma espécie de pânico silencioso” ou ficasse ansiosa para “olhar para baixo e ver o país feito um mapa distante”, simplesmente abandonando-o.

Os relatórios sobre o desenvolvimento humano no mundo árabe, elaborados pelo Programa das Nações Unidas de Desenvolvimento (PNUD) a partir de 2002, apontavam sobretudo para os déficits de liberdade humana, de empoderamento das mulheres e de produção de conhecimento. Elaborados por intelectuais árabes, já falavam da necessidade de uma reforma vinda de dentro, baseada em autocrítica rigorosa. Autores como o egípcio Bahgat Korany falavam claramente em uma “panela de pressão” correlacionando essas questões com o grande número de jovens com estudos, mas sem emprego e com o amplo acesso a TVs a cabo e internet. Não se previu que o estopim seria o ato desesperado de um jovem verdureiro, que atearia fogo em seu próprio corpo, morrendo em razão disso. Um homem comum, mas com o qual todos se identificaram. Acadêmicos, políticos, jornalistas ou diplomatas não conseguiram prever que as revoltas estourariam. Elas realmente pegaram a todos de surpresa.

O ato de autoimolação praticado pelo tunisiano Muhamed Bouazizi foi por si só um ato de extrema violência, mas levou em um primeiro momento a um clamor basicamente pacífico pela saída dos autocratas de plantão, começando por Zine al-Abidine Ben Ali, na Tunísia. Foi a reação violenta dos regimes que levou à espiral de violência, bastante forte no caso líbio e extrema no caso sírio, mas também presente nos demais.

A chamada Primavera Árabe ainda se desenrola no Oriente Médio e desafia os estudiosos mais empenhados em prever seus caminhos. O caso atual do Egito talvez seja o de maior dramaticidade: se por um lado parecia indicar que a Irmandade Muçulmana ao decidir entrar no jogo político iria seguir as regras democráticas, neste exato momento coloca essa questão em dúvida e mais uma vez milhares de pessoas saem às ruas e as tensões se renovam. O desenrolar do caso sírio também merece ser acompanhado de perto, uma vez que, como dito, algumas de suas questões têm peso regional mais amplo, como a questão curda e suas relações com o Irã.

Historiadores normalmente não são treinados para fazer prognósticos e o Oriente Médio, em especial, tem especificidades difíceis de apreender. Arrisco aqui, porém, destacar o que acredito merecer maior atenção e, quem sabe, apoio, nos próximos anos na região: os movimentos não violentos.

O cinema ocidental comumentemente vilanizou árabes e muçulmanos, retratando-os como fanáticos e terroristas. Filmes que se encontram neste momento em cartaz, como Argo e Busca Implacável 2, corroboram uma longa lista de longas já analisadas pelo professor Jack Shaheen em seu trabalho Reel Bad Arabs. Existe, porém, um histórico de resistência não violenta no Oriente Médio e no mundo muçulmano mais amplo. Khan Abdul Ghaffar Khan (1890-1988) é um exemplo nesse sentido, tendo liderado cerca de cem mil pessoas de forma não violenta contra os britânicos, no que hoje são a Índia e o Paquistão. Era o contraponto muçulmano na mesma luta de Gandhi, sendo, inclusive, amigos próximos. Boicotes, greves, manifestações e outros métodos de desobediência civil e não cooperação foram usados contra o colonialismo, ocupação estrangeira, autoritarismo e injustiças estruturais na região. O intelectual iraquiano Khalid Kistainy a denomina “Jihad Civil” e ela agora ganha novo ímpeto.

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Vale tratar aqui de três situações recentes em que manifestações não violentas mostram-se presentes no Oriente Médio: entre israelenses e palestinos, na Onda Verde iraniana, de 2009, e nos primórdios da Primavera Árabe, no Egito. Em todos os casos, os conceitos e métodos de desobediência civil analisados e pregados pelo cientista político norte-americano Gene Sharp em seus escritos são comumente lembrados. Também são citados os ensinamentos de Mahatma Gandhi, Martin Luther King e Nelson Mandela.

Os casos Israel-palestinos e Israel-países árabes-muçulmanos são basicamente cobertos pela mídia tradicional sob a ótica da violência eterna e ausência de diálogos. Desde 2003, a ONG Just Vision, que conta com a carioca Julia Bacha em sua equipe, justamente dedica-se a lançar luz, mormente por documentários e projetos educativos, a casos de palestinos e israelenses que buscam pontos de encontro, de diálogo, mais do que a manutenção do ciclo sem fim de violência de ambas as partes. E são muitos. Pessoas comuns, boa parte com tragédias pessoais que vão desde a perda de entes queridos a suas próprias prisões, que perceberam que a violência só gera mais violência, sendo necessário mudar a tática na busca por uma solução definitiva da questão.

Em Encounter Point, de 2007, chamavam atenção para organizações como o Fórum de Famílias Enlutadas, o projeto Sementes da Paz e a revista Fronteiras. O primeiro juntava israelenses e palestinos que perderam entes queridos na busca comum por conforto, reconhecendo a dor do outro. Já o segundo tinha o intento de unir jovens palestinos e israelenses em atividades lúdicas de integração, permitindo que simplesmente se conhecessem e não calcificassem estereótipos uns dos outros. Por fim, um periódico publicado tanto em Israel como nos territórios ocupados. As preocupações, nesses casos, eram conhecer o outro e buscar a coexistência.

Já o episódio da resistência da aldeia Budrus, em 2003, à construção do muro israelense cortando seu terreno ao meio foi retratado em documentário de mesmo nome, em 2010, e ganhou inúmeros prêmios. O caso uniu palestinos de diversas bandeiras políticas, ativistas internacionais e mesmo muitos israelenses, e convenceu o governo israelense a mudar o traçado original do muro. Foi totalmente não violento.

Depois de ouvir pela enésima vez conversas entre israelenses convictos de que uma guerra com o Irã era iminente, o designer gráfico israelense Ronny Edry resolveu criar em março deste ano no Facebook um perfil chamado Israel Loves Iran. Cansado do discurso fatalista a esse respeito, resolveu fazer algo usando seu instrumento de trabalho: imagens. Inicialmente, postou uma foto sua com sua filha com o escrito Israel Ama o Irã, em inglês. Seu ponto era que simplesmente não conhecia iranianos, não podendo assim odiá-los. Quase imediatamente, iranianos começaram a reagir postando também fotos, mensagens e afins, assim como pessoas de diversos lugares do mundo. Ronny serviu o Exército israelense na unidade de paraquedistas e não se considera um ingênuo. Sua percepção é sobre a necessidade de um esforço em mudar os estereótipos de ambos os lados e que isso requer coragem. Busca, desde então, de toda forma conhecer o outro, virtual e literalmente. Os acessos semanais a seu perfil são da ordem de um milhão e perfis parecidos vêm sendo criados, como Iran Loves Israel e Israel Loves Palestine.

O verão iraniano de 2009 foi também bastante acalorado em termos políticos. Em junho ocorreram eleições presidenciais, nas quais parte expressiva da população se mobilizou na campanha de Mir-Hossein Mousavi. O verde era a cor de sua campanha e acabou por dar o nome ao movimento de indignação nacional que se estabeleceu com a declarada vitória de Mahmoud Ahmadinejad em 12 de junho, que se acreditava ter sido fraudada. A população saiu às ruas de forma pacífica, demandando por respeito a seus direitos civis e políticos. Muitos eram os cartazes com os simples escritos: Onde está o meu voto?.

Os protestos incomodaram o regime, que reagiu de maneira violenta, levando à repressão severa, com muitos casos de prisão, tortura e estupro. Muitos ainda permanecem encarcerados em prisões ou em seus domicílios, outros tantos fugiram do país. O que é interessante ressaltar e acompanhar desse caso iraniano é que ainda persistem ações de desobediência civil que vêm desafiando o governo. Desde pequenos atos como slogans antigoverno escritos em notas de dinheiro a ações mais ousadas, como marcar com tinta verde fotos de vítimas ou as casas de membros da milícia basiji ou boicotar produtos que façam propaganda na TV estatal ou empresas que sejam fornecedoras do regime. O governo não pode cortar de maneira indefinida o acesso da população a internet e telefone sem que se autoprejudique, e a manutenção do aparato de coerção é também cara.

Por fim, a Primavera Árabe. O descontentamento e a busca por meios de derrubar Hosni Mubarak já estavam na cabeça de jovens como o egípcio Maha Ahmed. No final da década passada, já se empenhavam em ler, debater e mesmo travar conhecimento direto com Gene Sharp e com experiências bem-sucedidas do uso de suas táticas, como o caso do Otpor na Sérvia, que derrubou o ditador Slobodan Milosevic, em 2000. A faísca liberada pela revolta na Tunísia foi interpretada como o incentivo para tomar ruas e praças no Egito, apelando para participação ativa da população, fazendo largo uso da tecnologia para se organizar e divulgar suas ideias e eventos, e também cooptando soldados. A manifestação diária ao longo de 18 dias, entre janeiro e fevereiro de 2011, de fato levou à renúncia de Mubarak e, a partir de então, o Egito vive nova fase em sua história política, com alguns usos pontuais de violência e retrocessos, como se acompanha no momento. Talvez o fato de Mubarak ter renunciado, mais do que ter suas bases de apoio totalmente retiradas, como prega Gene Sharp, e talvez devido à sociedade civil ter mais certeza do que não quer – autocracia – que de como se organizar para buscar uma sociedade mais democrática e plural explique os reveses momentâneos com a Irmandade Muçulmana no poder. Grupos seculares fazem largo uso agora das mesmas táticas usadas no início de 2011.

É provável que o Oriente Médio ainda vivencie momentos políticos tensos pelos próximos anos. Existe forte ação contrarrevolucionária na região dos países do Golfo e a inserção de Marrocos e Jordânia no Conselho de Cooperação do Golfo pode ser lida sob essa perspectiva. A Turquia, governada pelo Partido Justiça e Desenvolvimento, o AKP, desde 2002, vem se mostrando como inspiração de um possível modelo de islã político democrático a ser seguido, mas seu ativismo no Oriente Médio vem sendo questionado internamente em função dos muitos problemas na Síria e temores em relação à questão curda. O regime iraniano esforça-se para não perder a Síria e reforça suas ligações com Hezbollah e Hamas. A não solução da questão palestina, sobretudo, bem como a apreensão em relação ao programa nuclear iraniano, mantém Israel em estado de alerta.

Em todos os casos, persistem componentes violentos. O que se procurou aqui, porém, é ressaltar a existência de movimentos na região que lutam contra a ocupação, por reformas políticas ou por total derrubada de regimes autoritários, de maneira pacífica, mas não ingênua. Existe a consciência de que se precisa organizar em torno de estratégias e táticas, e buscar a participação ampla dos cidadãos para que a democracia se estabeleça de maneira sustentável. Apostaria minhas fichas nos próximos anos na sociedade civil do Oriente Médio e em seu esforço por retirar a região do posto de mais autocrática do planeta.


*Monique Sochaczewski é doutora em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC-FGV e também professora da Escola Superior de História e Ciências Sociais da FGV


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