Às vésperas de completar 50 anos de carreira, Jorge Ben Jor pregou uma deliciosa peça em seus fãs e na imprensa: dispensou holofotes e como um “gato” – jogador de futebol que diminui a idade para ingressar tardiamente na carreira profissional – defendeu que teria feito 67 anos no final de março. Registros levantam controvérsias e levam a crer que, como mano Caetano e Gilberto Gil, também homenageados aqui, Ben Jor completou, sim, 70 anos. Com 67 ou 70, como sintetizou Orlandivo no sambalanço de mesmo nome, segue a nossa reverência a esses gigantes da música brasileira: aquele “abraço no Bengil”!
Antes de decidir se tornar Ben Jor, em 1989, escapando da semelhança de seu nome com o do guitarrista americano George Benson, Jorge Ben construiu uma carreira prolífica. Lançou mais de uma dezena de álbuns irrepreensíveis – o homônimo de 1969; Força Bruta, de 1970; Negro é Lindo, de 1971; e A Tábua de Esmeralda, de 1974; entre outros –, que beberam em fontes nobres, como a bossa nova e a tropicália, e inauguraram gêneros como o samba rock e o samba soul.
Muito antes, ele foi também o Babulina. Ganhou a alcunha quando era um tímido adolescente fissurado por bossa nova e rock’n’roll – assim pronunciava a canção Bop-A-Lena, de Ronnie Self. Nasceu em Madureira, batizado Jorge Duílio Lima Meneses, mas cresceu no Rio Comprido, bairro humilde da Zona Norte do Rio, vizinho da célebre Turma do Matoso, rua da Tijuca onde viviam os amigos Roberto, Erasmo Carlos e Tim Maia (também chamado de Babulina pelo mesmo motivo). Tornou-se grande artista, emprestando o Ben do sobrenome da mãe, a etíope Silvia Saint Ben Lima, casada com o estivador, feirante e pandeirista do bloco Cometas do Bispo, Augusto Meneses. Com essa mistura quente entre África e Brasil, Silvia e Augusto deram ao País um de seus mais expressivos artistas e símbolo de altivez e alegria para nossa negritude.
A transição do suburbano Babulina para o Jorge Ben que, em 1963, derrubou estatutos com seu álbum de estreia, Samba Esquema Novo foi um fenômeno irremediável e precoce. Talvez não tão precoce quanto desejou Ben Jor, em dias de “gato”, mas, sim, uma rápida ascensão para um artista ainda muito jovem, dentro e fora do País. Aos 18 anos, ele ganhou da mãe o primeiro violão e um método de aprendizado – essa é a história oficialmente contada desde que ele se estabeleceu com o sucesso de seu primeiro compacto contendo Mas que Nada e Por Causa de Você, Menina.
Pois é chegada a hora, caro leitor, de ir às tais contas, que levantam as suspeitas de que Jorge, aparentemente, maquiou a verdadeira idade. Se ele começou a tocar violão aos 18 anos, somados esses anos aos 1945 do nascimento, defendidos por ele, chegamos a 1963, ano de lançamento de Samba Esquema Novo, como vimos acima. Teria ele dominado os meandros do violão, criado, em tempo recorde, um novo jeito de tocar o instrumento (em um diálogo direto com as novas direções apontadas por seu mestre João Gilberto) e composto pérolas como as de sua estreia em LP aos 18 anos? Fazer isso até os 21 anos, como estávamos acostumados a crer, já era uma tremenda façanha, convenhamos. Mas Jorge pode pleitear mais três anos de juventude. Bom “poeta liberal”, como se autointitulou em Waimea 5000, de 1979, ele pode tudo. Até mesmo “voa” em A História de Jorge, funk de entortar a espinha dorsal registrado em África Brasil, álbum de 1976 que fecha um ciclo em sua carreira e marca o retorno definitivo da guitarra elétrica, assumida por ele no polêmico clássico de sua discografia, O Bidu – Silêncio no Brooklin, de 1967. No ano anterior, criticado por aparecer ao lado de jovem-guardistas e bossa-novistas, por não aderir à canção de protesto e não se decidir entre a guitarra e o violão, em entrevista para a revista Intervalo, contestando as acusações de alienação, Jorge, de maneira brilhante, fez sua própria defesa: “Recebo gelo, piadinhas, indiretas e críticas dos subversivos do samba, a turma do samba social. Não tenho nada contra eles, mas deixem que eu cante minhas composições para o público que quiser, junto com os cantores que quiser e acompanhado pelo instrumento que me for mais conveniente. Sem o pernóstico do jazz importado e de letras sociais, minha música é cantada por todo mundo. Por crianças que mal sabem falar, por jovens e por adultos. O que quer dizer: é sucesso, mesmo sofrendo esnobação e pichação dos subversivos do samba”.
Voltemos a 1962 e 1963, biênio decisivo para o surgimento de Jorge. Antes de lançar o compacto embalado pelo sucesso de Mas que Nada, canção que ganhou as paradas americanas e europeias e deu a carta de intenções de Jorge – o sambalanço misto de maracatu –, ele havia gravado um primeiro registro da música no álbum Zé Maria e seu Órgão, Tudo Azul – Balanço e Bossa, do organista Zé Maria, craque do instrumento, que embalava bailes dançantes. Pandeirista, como o pai, foi tocando o instrumento de percussão que Jorge ingressou no conjunto de Zé Maria, há 50 anos, em 1962. Pouco depois, decifrou o violão e compôs suas primeiras canções. Quando apresentou as duas canções ao organista, Zé Maria não hesitou em colocar o pandeirista, que também integrava o coro de vozes, para registrar ambas e cantá-las no álbum que estava prestes a lançar. Armando Pittigliani, diretor artístico da Philips, o homem que revelou ao País o talento de Elis Regina, ao ouvir as duas canções, tampouco vacilou, contratou Jorge e deu carta branca para que seu primeiro álbum tivesse a melhor produção e os melhores músicos – feras como o pianista Luiz Carlos Vinhas, o Copa Trio, do baterista Dom Um Romão, e o maestro Lindolfo Gaya.
Bebeto Castilho, ex-baixista do Tamba Trio, que recentemente teve sua história contada na Brasileiros, era também um protegido de Pittigliani e contratado da Philips. Conhecia Ben Jor da boêmia do Beco das Garrafas, mas passou a topar com o compositor nos corredores da gravadora, quando o Tamba gravava seu segundo álbum, Avanço, e Jorge registrava suas primeiras composições. Bebeto lembra que, certo dia, passou por uma porta, acompanhado de Luizinho Eça, pianista do Tamba, ouviu os acordes iniciais de Mas que Nada e não se conteve. Precisou conferir o que estava acontecendo ali. Vendo o entusiasmo dos dois, Ben Jor teria sugerido que o trio registrasse a deliciosa versão de Mas que Nada, lançada em Avanço. Há alguns anos, a música – que traz um econômico, mas inspirado solo de saxofone de Bebeto, também flautista do Tamba – chegou a fazer parte de uma bem-sucedida campanha internacional da Nike. Bebeto, aos 72 anos, ainda toca profissionalmente. Em seus mais de 50 anos de carreira, esteve cara a cara com centenas de músicos que marcaram a história da música brasileira. Lógico, conheceu o organista Zé Maria. Não sabe afirmar se ele está vivo, mas em conversa telefônica, recordou que certa vez foi recomendado por sua amiga, a cantora Leila, a tocar com Zé, mas o músico, desconfiado, gentilmente recusou a recomendação.
Sem maiores pistas que levassem a Zé Maria, depois de dias em busca de seu paradeiro, comentei com Bebeto que, como outros milhares de jornalistas ao longo dessas quase cinco décadas de carreira de Ben Jor, há tempos vinha tentando, sem sucesso, entrevistar o Babulina. Bebeto contemporizou e explicou: “Ih, rapaz, isso é uma coisa antiga dele. O Jorge é um sujeito muito tímido. Difícil de acreditar, mas é verdade…”.
Talvez a timidez e o desejo de não encarar o festival de celebrações que deveria ter vindo agora, mas que certamente virá quando ele, enfim, comemorar seus 70 anos, em 2015, explique a deliciosa peça pregada. De qualquer forma: Salve, Jorge!
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