Se fosse um filme, com a licença poética do mundo pós-moderno, o nome da personagem seria Julieta. Porém, a primeira mulher a assumir uma das 15 cadeiras do Superior Tribunal Militar (STM) – e também deve ser a primeira a presidir a Corte a partir de 2014 – se chama Maria Elizabeth Rocha Teixeira. Explica-se o apelo shakespeariano: o currículo minucioso estampado na página da Corte mais alta das Forças Armadas quase fica para um segundo plano na entrevista que a magistrada concedeu à Brasileiros, num final de semana de dezembro, em São Paulo: “Eu me casei com Romeu (o general de Exército Romeu Costa Ribeiro Bastos), que é maravilhoso. E se você me perguntar qual é a grande vitória da minha vida, não diria que é ser a primeira mulher ministra em um tribunal militar de homens. A grande vitória é ter um casamento feliz. Em um mundo tão cheio de gente, encontrar a pessoa da sua vida e ser feliz ao lado dela, e ainda assim poder viver o amor pela sua vida profissional, isso é ser feliz”.
Romeu e Beth se conheceram há 27 anos, na salada dos professores da Faculdade Cândido Mendes, em Ipanema, Rio de Janeiro. Ele, professor de Álgebra Linear. Ela, que sempre foi péssima em Álgebra, lecionava Direito Constitucional. Prestes a completar bodas de prata, o casal vive em Brasília – ele na reserva, ela mais ativa do que nunca. Aos 52 anos, além do tribunal, Beth leciona Direito para cursos de mestrado e doutorado, além de fazer pós-doutorado na Universidade Clássica de Lisboa.
Pouco mencionado na mídia, o STM é a Corte mais antiga do País. Foi criado em 1808, tão logo a família real chegou ao Brasil. E hoje, de todos, certamente é o que tem a situação mais confortável em termos de números de processos. Segundo a última edição do Anuário da Justiça, em 2011, o tribunal distribuiu 1.028 processos, dos quais 1.026 foram julgados – no Supremo Tribunal Federal (STF), quase cem mil autos foram a julgamento no ano passado. Sua jurisdição alcança um público de 310 mil servidores, já que o STM processa apenas crimes cometidos por militares ou contra eles – o que não inclui policiais e corpos de bombeiros, julgados pelas justiças estaduais.
A ministra Beth, como é conhecida entre os colegas, passou a ocupar um dos 15 assentos do tribunal, nomeada pelo ex-presidente Lula, em 2007. Além do currículo impecável e da carreira sólida desde a faculdade – vem da terceira geração de uma família de advogados –, passou pela Câmara dos Deputados, onde também assessorou a liderança do PT, e foi subchefe de Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República.
Em sua nova posição, a ministra Beth não atacou de feminista, mas tampouco baixou a cabeça ante o mundo masculino. Tinha a seu favor o conhecimento dos costumes militares, pois, na ocasião da sua posse, completava 20 anos de casamento. Em outubro de 2009, com dois anos de casa, levou ao plenário do tribunal voto favorável – e conseguiu apoio dos colegas – a uma servidora militar que queria estender seu plano de saúde à companheira.
Cinco meses depois, voltou à carga. Agora, com uma posição ainda mais ousada: a defesa do homossexualismo nas Forças Armadas. “Na esteira do pensamento de Boaventura Souza Santos: Temos o direito de reivindicar a igualdade sempre que a diferença nos inferioriza e temos o direito de reivindicar a diferença sempre que a igualdade nos descaracteriza. Eu ouvi o filósofo”, afirma. Ficou vencida na votação.
“Brigo pelo fortalecimento das garantias e dos direitos fundamentais. Basicamente, essa é a minha bandeira. Não tenho dúvida em anular processos, sentenças, quando entendo que direitos fundamentais dos réus foram desrespeitados”, diz a magistrada. Anulou um processo porque tinha como base um dispositivo do Código Penal Militar, de 1969, segundo o qual o silêncio do réu pode ser interpretado em prejuízo dele. Tal entendimento, explica a ministra, vai contra a Constituição, que é de 1988. “Não só anulei a decisão do juiz, como também declarei revogado esse dispositivo. E o Tribunal me acompanhou.”
Em março, o general do Exército Raymundo Nonato Cerqueira deverá assumir a presidência do STM, tendo como vice a ministra Beth – a conjugação de um militar e um civil no comando da Corte faz parte do desenho de comando do tribunal. Como Cerqueira completará 70 anos em pleno mandato, o que implica aposentadoria compulsória, o caminho normal é, de junho de 2014 a março do ano seguinte, Beth ser a primeira mulher na presidência da Corte.
“Desígnios insondáveis, que nos surpreendem em passo a passo do mundo. E, como eu sempre tenho dito: todos os poderes às mulheres, na esperança de um mundo mais igualitário”, vaticina o ministro do STF Marco Aurélio Mello, que, na primeira passagem no Tribunal Superior Eleitoral, em 1996, teve Beth como assessora especial.
“Beth funciona como um ingrediente de temperança na Corte militar. Estudiosa e aplicada, com o respeito que conquistou, ela consegue conciliar firmeza e rigor, agindo com elegância e suavidade”, diz a amiga Kátia Cubel, diretora da Engenho Comunicação, empresa de Brasília. Como enfrentar esse mundo de homens? “Como mulher, uai!”, responde, em mais um ataque de mineirice, aproveitando para arrumar os cabelos e revelar outro traço marcante: a vaidade.
Beth fala sobre algumas bandeiras quando assumir como vice do general Cerqueira. Primeiro, firmeza nas votações progressistas. “Além disso, um dos meus projetos é, ao lado do presidente, lutar pela superação do estigma de ‘justiça corporativa’. As estatísticas da Justiça Militar Federal revelam o seu rigor na aplicação da lei penal”, planeja. Cerqueira, além de reafirmar a competência técnica da colega, ressalta a sensibilidade do olhar feminino, que levaria a Corte a “especial dinâmica e apropriado equilíbrio entre a razão e os sentimentos humanos, elementos que, invariavelmente, permeiam e influenciam os julgamentos em todos os tribunais”.
Ainda sobre a ministra Beth, o futuro presidente do STM respondeu à Brasileiros, via e-mail, sobre os votos da colega: “(…) Expressam, na sua essência, todas as qualidades e atributos que ornam o seu ilibado e admirável caráter, bem como o profundo conhecimento jurídico de que é possuidora, corroborado por um invejável currículo e acumulado ao longo de uma profícua carreira dedicada ao Direito”.
Enquanto as atribuições administrativas da Presidência não lhe encolhem a agenda pessoal, a ministra Beth curte seus hobbies no Planalto Central. Cinema, viagens… Atualmente, revisita a mineiridade, ao ler Os Sonhos Não Envelhecem – Histórias do Clube da Esquina, de Márcio Borges. Ao fim da entrevista, a última pergunta: “Qual seu ídolo?”. “Não tenho ídolos. Tenho um grande amor. Melhor, não?”
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